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Alguém que ama a vida e odeia as injustiças

30 maio, 2012

Depois de Amanhã (IV)

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Recorda a noite de ontem.
Fora jantar fora com o marido. Nada mais banal e todavia tão íntimo, tão aconchegante. Aquele silêncio cúmplice que os une. Não são necessárias palavras, elas, por vezes, até quebram a harmonia.
Manuel o homem, companheiro, marido, pai e amigo. Tanto numa só pessoa.
Mas ontem, enquanto jantavam e trocavam vários monossílabos sobre a comida. Houve, a alturas tantas um olhar que a fez pensar. Manuel olhou-a como se acusasse. Foi fugaz, mas esteve lá.
Sofia sabe que ele ama o filho, mas a partilha da mulher substituída pela mãe, foi sempre algo que lhe causou algum desconforto.
Não é um homem de grandes gestos ou palavras. Simples, direto. O silêncio diz o que a boca não profere. Não sabe, ou não é capaz. Uma cultura.
Mas no seu sentir monolítico, ela sabe onde depositar a cabeça, o olhar e até as suas inseguranças. Ele está sempre ali a seu lado. Não é janota e muito menos dandy. Não é blasé. É apenas ele, Manuel Monte, o seu marido.
Apesar do seu modo simples é um sonhador, um idealista, um quase puro. Acredita nas pessoas, nos gestos e até nos sorrisos. Mais tarde, vem a ira, a raiva quando descobre que o boneco que em que confiou, seu irmão, é mesmo de papelão podre.
Mas ontem quando lhe disse:
-Mas Sofia tens mesmo que ir? Não vais desatar a correr para lá sempre que o Manel te telefonar a choramingar.
- Ó Manuel o nosso filho não choramingou, apenas me pediu um pouco de ajuda. Afinal o nosso neto nasceu há bem pouco e a Lena precisa de uma mãozinha.
 - Pois, será, mas não me convences. A tua nora não tem mãe?
-Claro que tem. A Alda já lá esteve durante quase quinze dias. Agora é a nossa vez.
-A nossa? Tem lá santa paciência que nessa eu não embarco. Vais tu, já que queres ir, e fica-te muito bem, mas minha querida, mas não contes comigo.
- O quê? Então vou sozinha?
- Ah pois.
- E o que é que vais ficar a fazer, posso saber?
- Ah essa agora. Tenho tanto que fazer! Vão ser uns dias de férias conjugais tal como fazíamos ao princípio de casados, lembraste?
- Ora se me lembro…e deixa-me que te diga, que nunca gostei lá muito da ideia.
-Pois olha, sempre me pareceu que ias a gosto, direitinha para casa dos teus pais. Tu mais o garoto.
- Manuel pensa bem, vem lá…
- Não e não. Estivemos lá quando o bebé nasceu. Demos os nossos préstimos. Agora a vida é deles. Têm que aprender. Tu também te desenvencilhaste sozinha, não desenvencilhaste? E eu também, que remédio! Porque é que agora se dá esta protecção toda aos filhos? Eles não são imbecis. Levamos uma quase vida a ensiná-los, a dar-lhes todo o tipo de ferramentas, para serem autónomos, bem sucedidos, gente melhor do que nós e continuamos com a mãozinha por cima e por baixo a segurar-lhes a vida? Olha, cá por mim, não e não. Crescer, tem que se fazer em todas as direcções. Porém tu és senhora e dona de ti, faz o que achares que deves fazer. Ponto final. Vamos falar de outra coisa.
Embora ligeiramente crispada, Sofia sabia que Manuel tinha toda a razão do mundo. Calou-se, não fez ondas. O silêncio por vezes é a melhor forma de aquiescer. Mais de um quarto de século de casada, já lhe dera os degraus para a cátedra do matrimónio.
…… ……………………………….
Sofia olha-se no espelho do seu quarto de rapariga.
Gosta do que vê. O vestido comprido cor de champanhe, corte simples mas elegante. O saiote faz-lhe o redondo das ancas. O cabelo no seu brilho dourado suporta aquele véu de renda enorme. Na mão as suas eternas rosas.
Casa-se hoje. Um dia especial. Percorre-a um frenesim. Não é ansiedade, somente a antecipação do acontecimento.
Olha-se fixa e demoradamente no espelho oval, a imagem não reflete os pensamentos. Interiormente sorri. E interroga-se: Afinal é este o dia tão especial, o dia que desde garotinha ouviu falar? Uma névoa breve tolda-lhe o olhar. Recompõe-se. Há que estar serena. Uma noiva quer-se nimbada de luz. Os eternos clichés da sociedade. Mas enfim, encolhe os ombros. Assim seja.
Debruça-se sobre a cómoda perscrutando a imagem no espelho oval. Aqueles momentos a sós são preciosos. Em breve terá que mergulhar na alegria do dia. Urge.
Deseja que termine. Sempre foi diferente. Sabe que mastigar os momentos não os faz perdurar no arco-íris do relógio. Depois, também sabe antecipadamente o que se passará. Sempre um pouco à frente do hoje. Sofia apressada. Não, ela não é apressada, apenas o hoje, foi o ontem dela, o amanhã, é o seu hoje. Naquela divisão de tempo o seu corpo senta-se, porém o espírito inquieto flui. Nunca ninguém a percebeu. Habituou-se a viver assim. E hoje, pese os seus anos ainda verdes, coabita lindamente com a dicotomia. Chamam-lhe insatisfeita, nervosa. Nada disso. No entanto, nem sequer perde tempo a explicar-se porque, sabe, não a compreenderiam, se calhar até diriam que tinha alguma pancada…não fora em vão que caíra de um escadote bem alto ainda pequeninita. Talvez fosse daí que lhe adviera esse desassossego de tempo.
Mas hoje e era o seu dia. Sofia casava-se. Apesar da liberdade que aqueles tempos continham, essa mesma liberdade acabava por exigir um invólucro. Há vinte e muitos anos casar-se era uma quase obrigação., pelo menos no meio de onde provinha. Meio arreigado de preconceitos e normas. Aquela necessidade do certinho que sempre a baralhou. A vida é um remoinho de folhas de muitos tamanhos e cores., pelo menos para ela.
Desse dia, tem, sobretudo, a memória das pessoas, da condescendência, do barulho, da norma, dos rostos felizes como se todos se tivessem casado na mesma hora e com eles. Achava tudo um pouco excessivo. Aliás as festas são excessivas mesmo que contidas. Porem é nelas que o ser humano abre a torneira da satisfação. A necessidade grupal do divertimento sempre a espantou.
Mas naquele dia, tão especial, Sofia sorriu tão beatificamente que todos a acharam uma noiva feliz, tão feliz que até estava linda. Outro dos seus grandes problemas foi perceber como o valor das palavras se alteram de acordo com o estado de espírito e sobretudo se este for coletivo.
Mas Sofia cumpriu a sua parte com muita elegância e serenidade.
Manuel.
Bem, Manuel estava irreconhecível. Elegantíssimo, todo a preceito no seu mais ínfimo detalhe. Também desempenhou o seu papel. Mais tarde quando já estavam longe daquele reboliço, ele dissera-lhe:” Pronto, já me sinto legal”.
Ainda hoje se interroga sobre o que ele quis dizer, sabendo de antemão todas as reticências que ele tinha em relação ao casamento religioso, a festas sociais. Ostentação dizia.
Porém naquele dia foi gloriosamente simpático. Disseram dele: Uma jóia de rapaz!
Um prenúncio de outros dias.
Como o tempo se foi!

24 maio, 2012

Depois de Aamanhã ( III)

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Eram quase oito da noite quando o filho nasceu. Sentiu alívio. Moveu a cabeça para o lado e viu-o no berço. Viu-o de olhos oblíquos e papudos, cabelos quase alaranjados, de punhos cerrados e tão pequenino. Destapou-o e olhou-o como se visse tudo pela primeira vez. E era a primeira vez. Tocou levemente nas perninhas, no corpo. Percorreu o polegar pela linha dos rostinho num toque infinito. Sentiu-lhe a macieza da carne e uma força que a fez parar. Ora, impressão sua. Retomou o toque e parou nas mãozinhas que teimavam em permanecer bem cerradas. Abriu-as e meticulosamente estendeu-lhe os dedinhos. Perfeitos. As unhas arranhavam. E naquela intimidade sem sons ele suspirou. Era seu. Viera dela. A sua criação. Tapou-o. Pensou. Pensou na incerteza. Pensou em tudo. Sentiu-se dorida mas feliz. Levantou-se e sorriu. A vida estava mesmo ali ao lado a desafiá-la. E ela aceitou o desafio.
Chamou-lhe Manuel, Manuel Maria, como o pai e como ela.
O tempo voou. Ele cresceu, ela amadureceu. Ele ficou homem, ela mais velha. Ele foi pai, ela avó.
O tempo sem tranca que varre a vida.
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Recorda os tempos de juventude. Enormes, quentes e cheios de promessas. Eram felizes na crença do amor, da ilusão, dos grandes cultos, dos enormes altruísmos, dos derrubar dos dogmas sociais, na construção dos ideais. A sua geração fora assim. Ela fizera parte, tivera as suas lutas, quebrara alguns tabus, sabe-se lá à custa de muita lágrima, zanga e tantos outros dramazinhos familiares. A peça da sua geração chamava-se “Flower Power” e o seu mote era make love not war. Porém fora noutro continente que a realidade do conceito se fizera, por aqui na velha Europa, e sobretudo no Portugal dos anos setenta, nada fora tão simples ou melhor tão radical. Um banho-maria como tantas outras mudanças. Um país sempre aquecido entre dois tachos. As mentes ainda estavam alojadas no preconceito geracional. Os que ousavam quebrar as convenções eram muito poucos, e pertencentes a um grupo social de desafogo económico. Os chamados meninos do papá. Estes podiam divergir, fugir, e ludibriar o sistema que o status  quo cobria-os, tal como hoje ainda. À chamada classe média, muito média, eram exigidos comportamentos padronizados e sobretudo decoro, dito moral. Pobre daquele que ousasse quebrar a norma Hoje, ao olhar para esses dias, um sorriso irónico tem que forçosamente mascarar os lábios. Tão ridículo! No entanto na altura geraram-se conflitos familiares, zangas e humilhações. Depois veio o vinte e cinco e ,rapidamente os costumes mudaram. Tomou-se como natural o que até então era proibido. As massas ululam ao sabor do vento, melhor as mentes mudam tal como o vento sopra. E se sopra com força então a mente parece um cata-vento. Neste caso, bendito cata-vento, diga-se. Houve muita mudança. Os cenários foram-se transmutando à medida que a peça se plasmava aos costumes. Neste entretém teatral, as caras adquiriram rugas, o espírito aquietou-se e alguns bolsos aviltaram-se. O idealismo virou capitalismo, o amor comprou-se, vendeu-se e emporcalhou-se. E a geração dos ideais metamorfoseou-se em peralvilhos de sebosas contas bancárias aqui, ali, em idílicas offshores. Os charros passaram praticamente a ser um quase apanágio de uma pseudo-elite intelectual que os usa diz, como fonte de inspiração. Uma geração que sonhava sempre que respirava.  Respira ,hoje, entrecortadamente a ambição dos cifrões e do bem colocado. Não somos senão pavões eternamente voltados para um jardim que já não existe.. As penas já são tão toscas que até faz dó, pese o brilho da projecção.
Houve um desbragar de convenções, o caos, diziam os mais velhos, então. E nós riamos, riamos porque o sentir era impune, porque éramos jovens e heróis Havia o cheiro tremendo de sexo, mas também o cheiro da vida. Era diferente. Era a libertação, a nudez da carne e da alma. O despir total, o arrebatamento de comungar o corpo, vento e a terra. Os primeiros ecologistas não assépticos. Sofia sorri abertamente. Tem orgulho de pertencer ao grupo das cotas. É tão maravilhoso ser-se cota quando se tem um mundo de cristais nas traves do espírito. Pertencer a uma geração de descoberta, de aquisições, de luta.
Hoje torna-se doloroso verificar que os Senhores do Mundo são, os que, então, foram seus parceiros de aventura naqueles anos dourados. Como o poder corrói. Tudo é bem pior que o ácido, porque é mais lento e persistente.
Levanta-se, alisa a saia, puxa a o cós do Jersey, ajeita o cabelo e sente-se de novo jovem e atraente Uma hippie repleta de alquimia do tempo.
Caminha mais segura. Não olha nem para a esquerda nem para a direita. As memórias povoam-lhe o ecrã da mente.
A noite pisca-lhe matreira por entre uma meia-lua sentada por cima da janela do comboio.
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22 maio, 2012

Depois de Amanhã (II)

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-Minha senhora o café vai ficar frio…
Encara o empregado que a olha perspicaz. Murmura:
-Oh desculpe, obrigada.
Pega na chávena e dirige-se para a mesinha junto à janela. Senta-se, e devagar, saboreando, sorve o líquido.
Um olhar. A noite caiu. O comboio continua seu o tricotar metálico. A noite será o seu tempo.
Olha em volta. Dois homens ainda jovens. Um tem a cabeça descaída sobre o peito. Dormita. O outro lê o jornal. Infindável a leitura de um jornal num comboio. O conteúdo dos artigos ultrapassa-se para além da frase. É nas entrelinhas que se chegam às grandes conclusões, e dali se extrapolam os conceitos.
Extrapolar. Imperceptível, é o sorriso, que lhe aflora os lábios. Quantas vezes, ela ouviu, mesmo a seu lado, os sentidos extrapolarem a razão? Tantas, o dia-a-dia feito multiplicação.
Do outro lado, duas jovens conversam animadamente. Apura o ouvido, não por curiosidade, mas para ocupar o seu tempo. Escuta:
-Ó Sara deixei de o curtir. Pronto.
-Assim, de repente? Vocês andavam já há bué de tempo.
-Sim, três meses. Atrofiei, sabes? Parti p'ra outra.
-Hum. Percebo. Tá. Tudo na boa.
Desvia os sentidos para outro canto. Um casal de velhotes ampara-se no trepidar do comboio entre duas sandes de pão branco e mole e uns goles de um líquido qualquer. Trincam devagar, gostando. Os copos são levantados em compasso. Bebem e voltam a poisá-los. Entre um acto e outro entreolham-se sorrindo. Gozam o momento. A idade deu-lhes isso. Roubou-lhes a juventude e presenteou-os com a singeleza. A troca dos anos. O velho ditado “ a vida dá e tira” é tão acertado, pensa Sofia. Sente uma especial ternura e uma quase inveja pelo casal de velhotes. Como chegaram até ali! Tantos anos…
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Naquela tarde, enquanto dava a segunda aula, sentiu-se oprimida. Olhou para fora, pela janela mesmo  ao lado da secretária, as serras respiravam a tormenta. Estavam escuras e poderosas. O céu pintara-se de cinzento pesado e mal se mexia, oprimido. Sofia entreabriu a janela, porém o ar não limpou o seu sentir. A borrasca pressentia-se. Iria estalar a qualquer momento. O suor pespontava-lhe a testa. Sentia no corpo aquele tempo sem ar.
Caminhou pela ala entre as primeiras carteiras enquanto debitava a matéria. Uma pergunta aqui e outra ali. E o ritmo da aula girava. Mas aquela opressão continuava. Despiu o casaquito de algodão e resolveu fazer uma pausa na explicação. Os cinco minutos de descanso que dava aos alunos sempre que havia matéria nova. Conversa daqui, conversa dali, e ei-los distendidos. Podia recomeçar. Recomeçou. Cansada olhou de soslaio para o pulso onde os ponteiros pareciam colados. Não se mexiam. Alguma coisa ia acontecer. Conhecia-se por demais para desprezar os sintomas. Aquela opressão causava-lhe um certo atordoamento mental. Bom, o melhor era mesmo continuar a aula. Não valia a pena antecipar-se. A ansiedade não lhe daria descanso.
Continuou no seu deambular explicativo, enquanto os alunos se entretinham entre o conteúdo que escorregava por entre os ouvidos, noutros casos era bebido pelas mentes, e noutros ainda era devolvido intacto ao ar pesado da sala.
E o tempo decorreu. E a campainha tocou.
O tropel habitual aconteceu. Apanhou as suas coisas, atirou o olhar habitual à sala, fechou a porta e caminhou. Na sala do primeiro andar, onde todos os colegas se reuniam, pairava o calor abafado casado com o som das vozes. Os professores falam alto. Muito. As vozes têm tendência a tornarem-se estrídulas. Sofia sentia-se zonza, cada vez mais.
Agora era uma agonia vinda não do estômago, mas de algures, que não sabia bem definir. Sentou-se.
 -Sofia estás bem? - Ouviu muito longe, a voz.
Quis dizer algo mas a língua estava presa, o rosto também. Havia como que um força a tomá-la. E lhe tirava a clareza do dia, embaciava-lhe o cérebro.
Sentiu-se mole. Terrivelmente mole.
Estava num sítio diferente, estranho, quase diria esquisito. Estava separada. Ela aqui e a outra, ela também, mais além. Duas pessoas e uma só. Conseguia sentir que a outra lhe pertencia, porém era diferente. Cansou-se e fechou os olhos.
À medida que o tempo passava, a outra vinha-se aproximando. Tão devagar que nem dava por isso. E o cansaço desvanecia-se. Parecia que o torpor a ia deixando. Que o calor e a vibração começavam a tomá-la.
Abriu os olhos três dias depois. Disseram-lhe que tinha estado mais para lá do que para cá. Qual quê! Simplesmente adormecera e deixara que o seu corpo flutuasse. Tão simplesmente. Estava debilitada, sentia-o mas o seu cérebro funcionava. Foi retomando a posse dos seus sentidos. Sentia-se quase normal. A vista não. Qualquer coisa não batia certo. Mas não se ia preocupar agora que tinha acordado e via o mundo à sua volta com outras formas. Esquisito. Mas as pessoas pareciam-lhe diferentes mais pequenas e sumidas. Aquele ar de conquista, aquele brilho de vontade, o frenesim do ser ouvido tinha-se evaporado. Afinal eram comuns. Tal como ela.
Sofia suspirou por entre os lençóis de barra verde. Com a ponta dos dedos puxou-os para si. Tapou a boca. Os olhos orlados de macerado, sobressaiam no rosto amarelado de doença, contudo a vida continuava a espreitar.
Recuperou-se. O AVC deixara-lhe lapsos. Lapsos de memória, de espaço e até de paciência. Os lapsos de Sofia. Lapsos que, sub-repticiamente, aprendera a disfarçar com arte e estilo. Uma sobrevivente. Uma mulher com sorte diziam-lhe.
Talvez sim, talvez não. Já depois, muito depois quando pensava no caso, Sofia murmurava para si. Talvez sim, talvez não.
O mundo mudara. Ou fora antes ela que mudara? Os pequenos muitos nadas que tanta importância dava nos dias antes, agora ao remirá-los, causavam-lhe bocejos. Como as ninharias deixam de ter peso ,quando a vida está em jogo. Um lugar-comum, aliás um pensamento banal, mas não somos todos banais? Encolheu os ombros, era algo intrinsecamente seu, pertencia-lhe. Não, não era displicência, nem um deixa andar, somente o seu trejeito, que dizia: Já lá vai, mas voltará. A inevitabilidade que sempre a coabitara E foi com um encolher de ombros que também se lançara na luta de cada dia. Lá no seu íntimo, sabia que levaria a melhor, e assim de mansinho exterior, mas com a força interior, atirou-se, e conseguiu.
Sofia venceu a batalha, agora a guerra? Isso, não sabe, mas o que importa, e depois quem o sabe?
A sua vida em pequenas lutas. São os quadros que a pintam.
E os pensamentos quais gotículas de cacimbo deslizam pelo vestíbulo da noite. Não se sente velha como o reflexo teima em apregoar. Aliás a sua cabeça é um baloiço de agilidade onde o pensamento se entrecruza com a maturidade do raciocínio. Gosta dos seus cinquenta e oito anos e do amanhã de todos os dias.
Uma mulher sem história ou uma história de mulher? Abana ligeiramente o pescoço afastando as divagações que a visitam em cada segundo. Não quer divagar, apenas pensar. Tem que delinear objectivamente o seu trajecto. As horas deslizam velozmente à medida que o comboio avança. Amanhã terá muito que fazer.
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20 maio, 2012

Depois de Amanhã

Depois de Amanhã
  1. Sobe ofegantes os três degraus da carruagem. Já no interior respira fundo. Leva a mão à testa. Sente-a húmida. Adivinha o calor vermelho das faces. Pensa: “Devo estar um espanto. Maldita correria!” Senta-se junto à janela. Respira e descontrai. As malas estão além, bem à vista, porque nestas coisas é sempre bom ter estarem debaixo do olho. Não é que desconfie, é apenas por precaução. Olha em redor. Gente. Silêncio. Tudo dorme nos seus pensamentos. Humedece os lábios, respira fundo, olha para o exterior. O comboio ainda está na estação. Não percebe lá muito bem porquê, pois que já se ouviu o apito. Mas enfim. Cruza a perna e pega no livro. Um pouco de leitura faz passar o tempo, e depois já anda enrolada no livro já vai para quase um mês. Não é falta de vontade é, sim, falta de tempo, bem não será mesmo assim, é antes uma falta de motivação como se usa por estes dias, para ela chama-se interesse. Mas toda a gente parece falar da obra mais do autor M. L. A crítica é excelente. Uma escrita objectiva, desnudada de artifícios. O sentir carnal da vida em emoção. Tem tentado, mas não sabe muito bem o que se passa, aborrece-a. Uma vez mais a norma trai-a. C’os diabos porque a sua opinião difere sempre. Uma questão que nunca entendeu. Enfim. - “ Bah, - pensa Sofia lá estou eu outra vez a divagar…bem vou-me concentrar no livro.” O comboio arranca, deslizando no seu tricotar oleado. Aquele som embala-a. O livro adormece aberto. O olhar prende-se à paisagem que desfila apressada como se estivesse em hora de ponta. Uma correria de árvores, campos, verde e castanho borboleteado de branco e tijolo. Baixa os olhos cansados pela rapidez da imagem. Volta a poisá-los nas páginas do livro. De inicio a massa preta das letras são confusas. Depois, devagarinho, o sentido de cada palavra apossa-se-lhe do cérebro e deixa-se conduzir pela escrita. Pisca o castanho dos olhos ao lusco-fusco que vem da janela. Sente vontade de se espreguiçar e furtivamente olha em redor. A carruagem continua adormecida. Sofia estende os braços empinando o peito. Um suspiro. Fecha o livro. Levanta-se e olha o relógio. Quase sete horas. “Vou tomar qualquer coisa lá no bar. Um cafezinho sabia mesmo a matar.” Pega na bolsa ajeita a sai justa, estica suavemente o jersey vermelho, depois maquinalmente os dedos embrenham-se nos cabelos soltos. Crê-se alinhada, afivela um sorriso e num passo elástico, se bem que cambaleante devido ao trepidar do comboio, dirige-se para o bar. Enquanto caminha, vai olhando de soslaio para os rostos que dormitam, lêem, ou simplesmente se mantêm imóveis, quem sabe, se fazendo contas, ou simplesmente delineando estratégias. Aqui uma jovem de headphones meneia a cabeça ao som do seu MP4. Os lábios mexem-se mudos enquanto os olhos bem abertos bebem o som que os ouvidos entornam. Na entrada da carruagem, um homem fala ansioso ao telemóvel. Fala e olha o relógio. Gesticula com a mão livre, a justificar as palavras. Fica para trás. Abre com rangido a porta da segunda carruagem. Quase deserta. Um casalinho de jovens mastiga os beijos mais as carícias, numa rapidez aguada. Desvia o olhar por educação. Continua o seu passo. De novo outra passagem. Abre a porta. Estes passadiços fazem-lhe lembrar as entradas e saídas da sua vida. …………………. 
  2.  
  3. Havia no ar um qualquer cheiro quente que engolia a vontade de fazer o que quer que fosse. Era Agosto. Os primeiros dias, os que vestem a moleza. As cigarras mais as rãs ralavam o Estio nas margens suadas do ribeiro. Deitada na erva húmida, de olhos bem abertos observava a dança dos andorinhões que se atreviam no azul do céu, ali mesmo adiante da velha casa. O chilrear feliz das crias em voo inseguro, faziam-na suspirar. Estava de férias. Estava ali. Era o tempo das ameixas suculentas, dos abrunhos melosos, do trigo cortado, do corpo a crescer e daquela sonolência quase feliz dos dias iguais. Quase. Porque foi nesse verão que os pais se separaram. No princípio não notou nada. Estava com os avós. Era ali o poiso das férias. Era mais uma dos cinco netos. Uma felicidade feita de barulhos, correrias, saltos, cambalhotas, risos e geleias. Não sabe bem porquê, mas o verão, ainda hoje lhe sabe a geleia de marmelo. Por essa altura ainda estavam bem pequenos nas árvores, mas os potes da dispensa eram luzidios de tampa bem amarela e com rótulos de papel. Diziam:“Geleia de Marmelo”. Avó escrevera-os, naquela letra cheia de pressa, de quem tem mil e uma coisas a fazer, e pouca paciência para os pormenores. A avó cinzenta. A cor do cabelo, e dos olhos. Uns olhos grandes, casados com a ironia. Havia naquele olhar uma provocação à vida. Os gestos estavam, recorda, sempre divorciados do olhar. Não era doce avó, nada tinha a ver as memórias das avozinhas. Não, a avó era prática quase agreste. Na boca fina um trejeito quase doce mas por demais rápido para não pegar, e um incomensurável brilho nos olhos cinzentos que lhe faziam o adorno do rosto. Eram os olhos, o mundo do seu corpo. Tinham a força, a meiguice e toda a ironia. Aquela ironia viva, que parecia zombar das gentes e dos costumes mas que afinal era de si que motejava. A avó que os despachava sem grandes delongas, que os queria em ordem à hora das refeições, que lhes puxava os lençóis engomados e lhes lavava as faces com força, ou ainda que os esfregava como se fossem as panelas da sua bendita cozinha, mas que calçava os gatos com os sabugos das árvores e colocava laços no pescoço das gatas. Eram muitos no casarão. Ela ainda hoje se retrai sempre que um gato se aproxima. Não gosta mesmo dos bichos. Nesse verão, uma vez mais foi para os avós, para a casa grande. O pai e a mãe foram lá pô-la depois da praia. Era o costume. Todos os anos o tempo das ameixas chegava depois do tempo dos búzios. E naquele ano, tudo se cumpriu como o tempo, ou melhor tudo se desmoronou. No inicio não percebeu nada, também nada lhe foi dito. Nem reparou no pigarrear do avô, nem nas falinhas baixas da avó mais da Maria, a velha criada. Em nada. Estava tão ocupada em brincar com os primos, apanhar as rãs, mergulhar no ribeiro, a andar de burro, a escorregar pelo monte abaixo e comer abrunhos! A mãe apareceu sozinha. Vinha enfiada naqueles seus óculos escuros tão modernos, lenço em volta do cabelo e vestida de forma irrepreensível como era hábito. Também aí não desconfiou. Perguntou pelo pai e a mãe respondeu. -O teu pai, Sofia está a trabalhar. Claro está, que uma garota de sete anos não desconfia, sobretudo quando se lhe dá uma resposta tão plausível, e ainda por cima, dita com toda a serenidade do mundo. E a mãe ficou pela casa dos avós. Arrastou-se entre o terraço e o quarto, sempre às voltas com uns livros, revistas ou algo do género. Uma vez por outra descia ao café da aldeia, e displicente lá tomava um cafezito com as outrora companheiras de folguedo cuja aparência se mediam em proporção à prole que apresentavam. E as férias acabaram. E o pai nunca veio. Foi no regresso, quando chegou a casa que a mãe lhe disse: -Sofia, o pai vai estar fora muito tempo. Vamos ficar tu e eu, só. -Ó mãezinha mas o paizinho vem, não vem? Quando vai vir? Não podemos ir ter com ele? -Sofia o pai vai estar fora, já te disse. E pronto. As lágrimas assomaram mas rapidamente foram engolidas. Era assim. O tempo das perguntas caladas. …………………… . .