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09 setembro, 2009

Sapatos Vermelhos



Sapatos Vermelhos

Olha de um lado para o outro. Não vê, porém olha. O hábito.

Na estrada de asfalto ruço os carros passam, apitam, contorcem-se e deslizam. Chamam-lhe trânsito.

Ela olha. De um lado para outro. Pára mesmo junto á orla do passeio. Na quebra entre a estrada pintada de riscas brancas e a pedra polida. A biqueira dos sapatos vermelhos oscila no ar. O salto prende-se na fenda entre os cubos de basalto, mesmo na ponta da estrela que, azouga o passeio.

Puxa. E puxa de novo. Solta-se, porém a capa ficou. O salto fino ficou despido.

Olha o semáforo. Está verde. Atravessa. O passeio de calcário em ondas de basalto estende-se à sua frente. Percorre-o apressada.

As buzinas mais o bruaá dos carros retumbam memo ao seu lado. A cantiga da cidade. O Retorno. Setembro.

Estuga o passo, porque o tempo urge. Tem que andar mais um bom par de metros.

Sob o cotovelo despido, aperta uma pasta azul. A tiracolo a mala que subtilmente lhe vai dando pancadinhas no côncavo da cintura. A bolsa é vermelha como os sapatos. Os sapatos que começa a arrastar. Os pés estão moídos, apertados e suados.

O dia ainda vai a meio.

Decidida pisa com força. Mais um passo e um carro que passa. O correr escanzelado de vidas.

E ela que tem que caminhar, e o sol quente a apertar. Os sapatos a moerem-lhe os dedos, os calcanhares, a vontade.

Ai a cidade!

Mais uma rua, uma passadeira e um parquezinho, daqueles escondidos, mas tão verdes e sossegados. Ali mesmo, do outro lado da avenida, onde os carros correm em linha recta no asfalto pegajoso do calor. Mas ali sob a sombra do choupo, um banco vazio descansa sereno. Fecha os olhos. Mentalmente vê-se sentada soltando os pés dos calabouços vermelhos.

E se fosse? Ninguém saberia.

Olha por cima do ombro num trejeito inconsciente. Ninguém a olha e todos a vêm. É assim na cidade. Olha-se sem se ver. Desvia-se.

Na pequena alameda os canteiros triangulares espreitam meio assustados os sapatos vermelhos. E as canas da índia vestidas de vermelho ou açafrão espremem-se todas para os ver. Uma novidade.

No banco vermelho senta-se. Tira os pés morenos dos sapatos, remexe os dedos libertando-os e graciosamente traça a perna. Um sapato tomba, o outro direito e alinhado arrecada a ponta do pé que se senta no seu calcanhar.

O alívio é grande. De novo olha em redor. Sossego. Para onde foi o barulho, o sol, o fumo?

Bah, que importa. Que bem se está ali! Espreguiça-se de forma lenta e deliberada. Sorri.

Uma brisa e um abanar de folhas fá-la acordar para o tempo. Olha o pulso e pensa. “Tenho que ir. Já tenho os pés mais aliviados”

Calça os sapatos. Levanta-se. Pega na pasta. Coloca a mala ao ombro. Olha em frente por entre o arvoredo.

Os sapatos vermelhos calcam a alameda. Há de novo um murmúrio nos canteiros. A balada antes do sono. Visão quente dos últimos dias de luz. Suspiram os canteiros que se arrecadam em slow motion.

A cidade surge crua e amarela aos seus olhos. A luz violenta da tarde ofusca-lhe o olhar. Nem os óculos a protegem. A canícula envolve-a numa onda. Gotas perlam-lhe o pescoço empapando os cabelos negros.

-Maldita cidade! Que calor! Pensa.

Desce o olhar. Tem que atravessar. De novo junto ao semáforo os sapatos vermelhos equilibram-se nos seus saltos agulhados. A biqueira já não oscila, calca pesadamente o traço primeiro da passadeira. Quase se arredondou. A transpiração e o palmilhar afearam-na.

Sapatos vermelhos.

Entra no edifício. Sobe no elevador. Abre a porta. Atira-se para a cadeira. Joga no ar os sapatos.

Depois, poisa a pasta, a mala. Despe a saia e a blusa. Veste a bata. Pega na esfregona e no balde vermelho.

No chão a água vestida de espuma refresca-lhe os pés. Murmura:

-Livre!

Do outro lado, abocanhados no chão os sapatos vermelhos gotejam o peso da caminhada




PEEPING TOM Theme -- Brian Easdale __ 1959 (Michael Powell, UK) -





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8 comentários:

  1. Uma Mateso diferente e não menos cativante. Ares de setembro?

    Beijocas, Azul.

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  2. Thank you for your beautiful comment and for your visit.
    I always appreciate very much when you fly to my blog.

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  3. não consigo ,mais uma vez ,ter asesso ao texto .se pretendo aceder através do link ,aparece.me apenas a imagem . se o faço pelos seguidores - apesar de saber que há um texto que acompanha a imagem - continuo sem aceder ,mais uma vez ,ao texto .o que se passa com a publicação ,Matesinha?
    já não é a primeira vez que isto sucede ,lembras.te?
    que fazer para mitigar a curiosidade e a vontade de te ler?



    .
    um beijo

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  4. Não vejo qualquer texto... mas presumo que não colocaste nadinha...
    Ou seja, tu queres é que reparemos na cor dos sapatos.
    Como vermelho é talvez a minha cor favorita, se calhar por ser benfiquista, gostei dos sapatos e dos pezinhos da menina.
    Querida amiga, um bom fim de semana para ti.
    Beijo (ia dizer colorido, até vermelho, mas não digo...)

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  5. consegui.....finalmente ,consegui ler.te e ,por isso ,não posso deixar de comentar

    surpreendente .conseguiste ,mais uma vez ,e ,ao contrário do que poderias imaginar ,surpreender.me .gostei .e muito



    .
    um beijo e bom fds

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  6. Agora consegui ler...
    Há coisas interessantes só para quem olha, porque para quem as usa, por vezes, o sacrifício é excessivo...
    O teu texto é magnífico, gostei imenso minha querida amiga.
    Um beijo.

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  7. CONVITE:
    Estive 5 dias isolada do mundo, num encontro espiritual comigo mesma, num monte alentejano e, por isso tenho que muito rapidamente divulgar a minha próxima exposição de fotografia.

    Desta vez será no “Norte” a pedido de várias pessoas, em Fevereiro passado, quando foi a minha 1ª exposição individual aqui próximo de Lisboa, na margem sul.
    Como gosto de desafios, houve “alguém” que me desafiou e disse que colaborava, nem pensei 2 vezes e decidi tratar do assunto em Abril passado.

    Chegou Setembro e será a minha rentrée cultural.
    Fica o convite para quem vive perto e noutros casos, em que a distância impossibilita a presença de tantos bloggers, fica a participação do evento.

    Venho reforçar que teria todo o gosto em que estivesses presente na minha rentrée.
    Será muito próximo do Porto, em S. Mamede de Infesta.

    Acabei de fazer a divulgação no meu blog.

    Abraços, TULIPA

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  8. Engraçado!
    Uma vez a minha psiquiatra fez me contou me uma historia sobre sapatos vermelhos que me marcou...
    a tua também me fez pensar.

    m bjo

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