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26 dezembro, 2008

[Matisse-Henri_Portrait-of-Madame-Matisse-Green-Stripe_1905.jpg]

ALVA

Alva senta-se no rodado da saia. O frio que lhe atiça as coxas recorda-lhe as palavras gélidas ainda vivas no papel da carta que acabou de reler. Tanto tempo sem saber dele e agora, assim de repente, tudo e nada.

Diz quem escreveu que falecera.

Talvez.

Alva abana a cabeça, incrédula.

Outros tempos, outras terras. Outras cores. Fora há muitos anos. Tantos que decidamente quase se esquecera do contorno do seu rosto. Era tempo de amor. Quando o calor aquecia o corpo, mais os sentidos.

Alva dos Santos.

Que tempos aqueles. Quase olvidara como fora. O tempo tem sempre destas coisas, lava. Lavara-lhe os desejos, apagara-lhe as memórias. Agora recorda. Sente uma tremedeira que há já muito esquecera. A carta. Maldição. Um desvendar de coisas que julgara sepultadas. Não sente saudades. O passado deve ficar por lá. Já fora joeirado. Depois dançado e iluminado de fogo.

Fora num tempo de verão. Quando as amoras refulgiam de pesadas por entre as silvas. Fora quando o pai fizera aquela promessa ao Santo Patrono a propósito das sezões da Lila. Lila era a irmã do meio. Nascera assim fraquinha, e, depois sempre que o verão apertava, a coitada rebolava os olhos, empalidecia, e zás. Caía. Assim pró chão. Desabada. O Chico das Mós, homem de boas promessas e trabalho, empenhou-se a fundo, arrastando toda a família. Alva era moçoila feita por essa altura. Moçoila bonita, muito mesmo. Alva como o nome. Toda ela vibrava. Tinha namoro. Tinha. Até já lá ía a casa, isto é ao pátio, que o pai não era de modernices.

Mas o sofisma da vida, fez que o destino lhe trocasse as rédeas. Jorge Feitor. Ai, ainda lhe rói o nome. Bem-apessoado, bem-falante, bem jeitoso. Tudo bem e bom. Lá foi com o pai até à igreja, à sacristia. Trataram da promessa. Os olhares enviesados que entretanto se iam dando. Os calores. Os sobressaltos. O pai não viu, não reparou. Também fora discreta. Só pelo rabo do olho se encontrarem naquele espaço de cheiro a sabão e cera. Tão lavado e engomado que sabia a pecado só olhar.

Mas naquela noite, deitada na alcova, lado a lado com a Lila que gemia, Santo Deus como aquela alma gemia. Enquanto Lila gemia, e estrebuchava de mansinho, ela rebolava a carne no ardor do cheiro que lhe ficara. Cera e sabão. Decidiu no dia seguinte visitar a igreja. Fazia-o ao domingo com a família. Nunca se apercebera como era bonito! Também de longe e no meio daquela sotaina toda. Pouco tinha para ver. Ah, amanhã ía lá. Tinha que ir.

Levantou-se com os pardais mais o desejo.

Na cozinha encontrou a mãe. Aquela criatura nunca devia dormir. Era a última a deitar-se, ouvia-a de noite, e de manhã já estava de pé. A mãe. Sempre pressentiu nela, mais do que corpo e alma, uma espécie de oráculo de tristeza. Nunca se lembra de a ter visto gargalhar. Os olhos enormes, fundos, as olheiras. Um rosto liso e inexpressivo, mas meigo. A bondade vestia-lhe a pele. Era assim a mãe. Serena ou alheada? Nunca percebeu bem.

.-Ó Alva já a pé? O que te aconteceu?

-Nada, mãe. Não tinha sono. Fez muito calor de noite.

-Estamos no tempo dele., minha filha.

-Ó mãe, como o pai me pediu para tratar do assunto do patrono, levantei-me cedo para ter tudo em ordem e depois ira até à igreja.

-Ah, mas o pai e tu já não foram lá?

-Já mãe, mas sabe como é, há sempre coisas pra fazer…

E fora assim. Visita hoje, encontro amanhã, recado depois. Batina rolada, saia caída e… o mundo mais as rezas, promessas, cera e sabão, tudo desfeito na erva do campo, na alcova por detrás da sacristia. No quarto caiado de branco com o crucifixo na parede. A mudança vestiu-a de mulher. Sabia o quer queria. Não pensava em desistir. Nem Jorge. Como era bom amarem-se. Como se sentia plena. Mesmo quando o cheiro a sabão e cera se misturavam e o olhar do crucifixo a ponteava. Não havia sentimento de culpa. Ela amava um homem. Só isso. Podia durar, queria que durasse. Mas também, não podia.

Era aquele tempo.

Mas, as histórias têm sempre um mas, a Lila, a irmã, a menina das sezões, a doentinha, a tadinha. Não era parvinha, não era, não. Fazia-se. Convinha-lhe. Ameaçou-a. Disse que sabia de tudo. Que a tinha visto. Que a seguira. Que ia dizer ao pai. Que o homem era o padre. Uma vergonha. Uma desgraça.

Alva suspirou.

O último reencontro não foi fácil. Foi de despedida. Não pediu nada, porque nada havia para pedir. Não chorou, porque tinha rido. Não o recriminou. Não tinha que o fazer. Porém, não sentia vergonha, nem asco, nem nada. Apenas estava saciada. Toda. As carnes vibravam, alvas e deleitadas. O resto estava sereno. Tudo.

O seu episódio de vida nunca fora um paralogismo, mas antes o mais puro realismo ideal.

O frio da pedra acorda-a para as palavras.

Levanta-se, entre dentes murmura, enquanto amarfanha a carta. Ser é ser percebidofoi sempre o que eu quis. Foi tudo o que eu quis.


Act 1 La Traviata: Libiamo, nelieti calici (Brindisi - Inessa Galante


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12 comentários:

  1. Mateso, grande narrativa!

    E uma vontade de dizer onde é que eu já vi isto ou parecido?. - Mas não digo.

    Fico-me por uma frase perfeita que, essa sim tem tudo a ver comigo - "Sempre pressentiu nela, mais do que corpo e alma, uma espécie de oráculo de tristeza. "

    Obrigada. :)

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  2. Lndo texto...mais uma vez repito me.

    Lembraste me esta frase:"Que dificil que é a vida dos homens, pensou ela.Eles não têm asas para voar por cima das coisas más"Sofhia de Mello Breyner Andresen- A Fada Oriana]


    um bjo

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  3. O poder silencioso dos oráculos

    Belo texto como sempre

    Tudo de bom para 2009

    Bjs

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  4. Precisamos de ser para que possamos sentir o que de fatos somos.
    Cadinho RoCo

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  5. Querida amiga,

    Como sempre, belas histórias aqui nos narras.

    Um excelente ANO DE 2009!

    Beijinhos

    Mário

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  6. Excelente texto que me transporta para Alvas que conheci noutros tempos, noutros lugares. A tua escrita tem sempre esse poder. **

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  7. Bela imagem
    Prospero 2009
    Saudações amigas

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  8. um belíssimo texto que só poderia ter sido escrito com o cheiro alvo do natal

    agora vamos esperar que 2009 não seja tão preguiçoso quanto o 2008 .prometes?



    .
    um beijo

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  9. como sempre... maravilhoso!

    um beijo grande
    luísa

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