Páginas

19 dezembro, 2008

Uma filhós

[colagem.jpg]

Uma filhós...

Abre a bolsa. Está minguada. Apenas umas moeditas lá dormem. Volta a fechar e aperta-a contra os dedos. Maldito dinheiro. Sempre se some, nunca leveda, nunca. Pelo menos para ela. E o Natal que se aproxima. O pequeno já lhe anda a pedir uns patins em linha. E não se cala. Todos os dias a ladainha é a mesma:

“-Portei-me bem, não portei? O pai Natal vai dar-me os patins, não vai mãezinha?”

Claro que ela diz que sim, claro que ela lhe diz que tem que continuar a portar-se bem. Claro que sente um nó na garganta, quando poisa o olhar, nos outros olhos, ainda puros. Claro que sorri, sorri sempre. É a forma mais simples de sanar o impossível. Maldito dinheiro. Vida sem tino.

Todas as manhãs levanta-se às cinco da manhã. No seu pequeno apartamento, pequeno, porém grande na altura de pagar a renda, mais a água, mais a luz, respira-se o frio e o escuro da madrugada. O clarear tímido passou ao lado, para a janela da frente, do outro, a do vizinho. O seu, o do canto, o mais económico, só vê luz lá pelo meio-dia. É escuro e húmido. É o que pode ter. Uma cozinha, dois quartinhos, uma casa de banho e uma salinha. Tudo e tão pouco. Mas chega-lhe. É simples e gotejado. Parece que escorre sempre. Nas madrugadas líquidas de Inverno a água perpassa pelas costas e aloja-se-lhe na alma. Um arrepio. Levanta-se. Enfia os pés nos chinelos. O dedão espreita. O tecido espirrou de puído. Imperceptivelmente encolhe o dedo. Olha para baixo. Abana a cabeça de caracóis ruivos. Muito.

Uma espécie de labareda veste o espaço. É a luz que a madrugada teimou em roubar. Já de pé coça os caracóis como se estes lhe atrofiassem os pensamentos. Mais um dia, mais uma rotina. Arranja-se. Depois, já com o sol nos lábios vai até ao quarto do seu menino. Dorme tão docemente, o seu rapazinho. O rostinho está rosado do calor dos lençóis, os caracóis sedosos espalham-se na testa. Chama-o de mansinho.: -“Pedro, Pedrinho, querido…”

Volta-se sonolento, rebola os olhos, chucha na língua e resmunga: -“Hum…só mais um cadinho…tá quentinho.”

Ela senta-se na borda da cama, afaga-lhe o rosto e sorri no amor de mãe, murmurando:” - Mais cinco minutos, Pedro, só mais cinco minutos.”

E fica ali a amá-lo. Tão só com o olhar e o sentir.

Tão só, como se fora pouco.

E o Natal que chega daqui a dias. E o dinheiro que não leveda. E os patins do seu menino. As pálpebras obedecem ao ritmo do pensamento abatendo-se sobre o olhar verde e lindo. Uma menina grande e dorida vexada na imensidão do seu amor de mãe. O querer dar sem ter. Os olhos enevoam-se de estrelas de água. De novo abana o seu Pedro. Lá fora, o dia pesponta preso em teias de labuta. Há que o seguir.

-Mãezinha, quantos dias faltam para o Pai Natal?

-Faltam doze dias, Pedro.

- Sabes mãezinha já escrevi a carta a pedir os patins. Ele vai mos dar, não vai? Portei-me bem, não portei, mãezinha?

-Sim Pedro. Talvez, o Pai Natal pode estar muito ocupado. Sabes há muitas cartas. E se por acaso, a tua, se perde? Já pensaste? Pode acontecer.

-Pode? A Rosa disse-me que o Pai Natal faz sempre a vontade aos meninos que se portam bem.

-A Rosa, disse isso?

-Sim, mãezinha.

-Pois, lá deve saber, então

Ah! Então vou ter os meus patins, não vou. Ah vou, vou…Ah, mãezinha que bom!

-Vamos ver, vamos ver, Pedro.

Deixa-o na creche e corre para o comboio. Tem que atravessar a ponte, logo apanhar o metro. Pega às oito em ponto. Até às cinco e meia. Hoje é daqueles dias longos. Arranjou um extra no restaurante. Vai ficar até às onze. A Rosa, a amiga, vai buscar o Pedrinho. Está descansada.

Este trabalho veio mesmo a calhar. Oxalá lhe paguem para poder comprar os patins, e mais umas coisitas. Bolas, afinal é Natal. A vida é um alcatruz de nora. Tem tanta esperança quanto desengano. Uns pegam no princípio, outros no fim. Ela agarrou no fim. E a vida escreveu-se-lhe assim de páginas voltadas.

Já na cozinha de avental bem assente, touca e luvas descasca as batatas. A faca desenha a espiral certa, que solta, se despenha no caixote. Mais uma, e outra, e mais, e mais. Vai ser assim durante a próxima hora. As espirais dos seus sonhos na ponta de uma faca, caindo no fundo do caixote. Levanta a cabeça. Toma o ar altaneiro que lhe pertence. Daqui a pouco vai ter que bater as filhós. É a sua especialidade. Saem-lhe fofas e túrgidas. Um deleite de sabor. Assim o dizem.

Entranha as mãos na massa, aperta-a, espreme-a, depois alisa-a, bate-a em golfadas de prazer e dor. A força da sua vida num rolar de punhos adentro. Tende-a ainda liquefeita. Uma teia fechada. Estica-a. Ainda não está. Enfia as mãos com força, com ardor, com raiva e doçura. Com os ingredientes do sentir. Uma vez e outra, mais outra e outra ainda. Assim repetida e vorazmente. A massa borbulha. Abre-se. Em bolhas que rebentam em ais de satisfação. Está pronta para crescer. Uma manta a enrolar o alguidar. Vai levedar. Logo estará mais leve, se possível mais fofa ainda.

Tira o avental enfarinhado que joga para o cesto, alisa a bata. Já na casa de banho, humedece o rosto onde pérolas de suor fizeram os sulcos de cansaço. Está fresca. Maquinalmente olha-se ao espelho. Lá está a cara pálida com uns olhos enormes e uns cabelos de labaredas, teimosos e encaracolados. Ah, como gostaria de ser comum. Olham-na sempre. Os cabelos são tão esfusiantes não têm nada a ver com o seu estado de alma. Mas enfim, a mãe natureza teve destas coisas. Tem que viver com o que tem. Uma enormidade. Pensa que tudo está ao contrário. O calor gelado da sua vida. O desamor feito colar que lhe cinge os sentidos.

Compõe a toca, coloca um avental lavado, olha o relógio. Dirige-se para o alguidar, levanta a manta no canto. Espreita a massa. Lá está ela lêveda. Soberba! Vão ficar boas as filhós. Um tacho, borbulhas de óleo quente, massa que rebola e dança, um prato de açúcar e canela para o enfeito de cor e doce. Eis as filhós. Logo, logo estarão à venda. Quentes e doces.

Dez dias de filhós. Quentes e doces.

Um alguidar de massa, mãos sentidas de dor, raiva batida, esticada. Suor e rubor. Tempo e alento. Fé. No amanhã que se desenha e mais um gesto de amor. Uns patins.

………………

-Mãezinha, mãezinha! Grita a criança.

-…?

-O Pai Natal, O Pai Natal lembrou-se de mim!

-…!

-Mãezinha estou tão feliz!





Santa Clause is coming to town -

21 comentários:

  1. Thank you for your visit and for your comments,always adding value to my pictures.

    TI AUGURO UN FELICE NATALE
    E UN MERAVIGLIOSO ANNO NUOVO

    UN ABBRACCIO DALL'ITALIA

    CIAO

    ResponderExcluir
  2. Bela conjugação de imagens
    Saudações amigas e boas festas

    ResponderExcluir
  3. Sonhos levo eu sempre a alma cheia por cada vez que passo neste azul.

    Um Natal Feliz para ti.

    Um beijo

    ResponderExcluir
  4. Histórias cada vez mais verdadeiras...mas, sem sonhos destes sequer.

    ResponderExcluir
  5. o meu melhor abraço.




    com se musgo fosse.



    (obrigada)

    ResponderExcluir
  6. Hummm...
    Os sonhos e o licor de laranja!
    Sempre o meu presente de Natal nas portas da vizinhança...
    Este ano não falho, que já me sinto sobrevivente.
    Um beijo grande, um abraço maior, e um Natal com tudo o que se quer...

    ResponderExcluir
  7. Excelente conjugação de imagens... :))
    Um beijo e renovo o desejo de um Feliz Natal para ti e todos os teus.

    ResponderExcluir
  8. Feliz Natal!Muita magia!Abraços, Plim e Plum***

    ResponderExcluir
  9. giro

    mas........

    porque teimas em minimizar


    ........TE?


    mais uma vez

    um boníssimo natal



    .
    um beijo

    ResponderExcluir
  10. Para além de um grande beijinho deixo os desejos de um Santo Natal, com muito Amor, Paz e Carinho

    Inês

    ResponderExcluir
  11. Feliz Natal.
    Paz, Saúde e Amor para 2009.

    ResponderExcluir
  12. Voltarei para ler o texto que gentilmente partilhas connosco.

    A imagem é especialmente convidativa de um viver bem a época! Adorei!

    Um Feliz Natal para ti :):)

    Com um abraço amigo

    ResponderExcluir
  13. Bela imagem, gostei. Parabéns ao autor.
    Feliz Natal, para ti e para a tua família.
    Beijinhos.

    ResponderExcluir
  14. Retribuo do coração todos os votos deixados em 'fragmentos'!

    Muita Paz, Fraternidade, Afectos imensos...

    Um beijo

    ResponderExcluir
  15. feliz e santo natal...
    ao ler este texto, pensei no que falava ontem, num ultimo jantar de natal deste ano (só houve ai uns 10), que o significado do natal muda com a maternidade.
    que nenhuma luz, desta ou outra cidade do mundo, brilha da forma como a luz dos olhos da minha filha, ao olhar o menino jesus no presépio...

    muitas pendas no sapatinho
    bjs

    ResponderExcluir
  16. para lá de desejar um Feliz ntal, dizer-te que adorei o teu conto no 9º jogo

    ResponderExcluir