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19 maio, 2008



Urze e Giesta IV

(...)

Baloiça-se no vai e vem das memórias. Tem o sorriso doce da alba mas o perfil do entardecer. Os cabelos são névoas cinzentas onde os fios prateados brilham na moldura da cabeça. É bela a sua cabeça. Uma fronte larga onde a renda finíssima dos bordados da pele se ajeitam docemente. De trás a nuca vislumbra-se perfeita, logo suportada pelo pescoço rilhado mas ainda altivo. Os olhos são asas abertas vestidas ora de o azul ora de verde triste. São gázeos e peculiares. Brilham ainda em pequenos hiatos de picardia, de sonho ou simples alegria. Maria Luísa. Setenta e tais anos. Muita vida. Um crepúsculo pleno. Recorda, recorda aqueles dias onde sentada no banquinho mais baixo alinhavava as peças, e mesmo antes, quando apenas enfiava as agulhas ou simplesmente tirava os alinhavos. Aquele entra que sai do tecido, aquele alisar, esticar, puxar e imaginar de peça a ser. Fora assim desde os seus dez anos até se casar. Aprendiza de costura, depois ajudante e finalmente costureira. Fora menina, moça e mulher de dedal, agulha e tesoura. No construir da obra também aprendera a saber vestir os moldes da vida, ora floridos, estivais ou apenas invernais. Das sedas às fazendas de lãs. Da leve subtileza à suave macieza. Fora aí que aprendera a ajoelhar de pescoço erguido. Quando as “madames” lhe exigiam quase impossíveis, quando bainhas certas eram ditas como tortas, quando perfeição não assentava na imperfeição, e havia que refazer tudo porque assim lho exigiam. A vida também era assim, um constante refazer. “Luísa, olha a madame Bastos. Luísa, a madame Carvalho Araújo queixou-se que o tailleur ficou apertado. Luísa…” Maria Luísa trincava os lábios, cerrava os dentes e respondia:”- Concerteza vou já arranjar.”

Já na sala de provas a lenga-lenga era semprea mesma, um disco de vinil riscado num gira-discos de rotações lentas.

-Olhe, menina deixou-me a saia apertadíssima que falta de jeito.

-Olhe esta cintura está demasiado larga. Devia apertar-ma. Que deselegante.

-Madame não acha que um pouco mais largo a favorece. E depois este ano as cinturas marcadas não estão de todo em moda.

-Oh se assim é… mas de qualquer dos modos, menina dê um toque aí. Ai falta as mãos da Maria Laurinda. É o que eu lhe digo. Terei que lhe dar uma palavrinha.

-Com certeza, Madame.

Depois eram as queixas a Maria Laurinda, sua mestra. Aquele ciciamento e olhares enviesados que conhecia de cor. A despedida melíflua e os sorrisos sempre iguais, máscaras venezianas de sorriso vazio. A raiva da injustiça, alindar corpos mal feitos, gordos, envelhecidos que se desejavam elegantes não lhe perdoando o conhecimento das suas fraquezas. A mestra conciliadora que lhe dizia: “Tens que ter paciência. São elas que nos pagam e nos dão nome.”

Fora bem cedo ainda bem menina, que Maria Luísa aprendera no corpo o desatino do não amor. Nunca sentira o afago de um colo ou o roçar de um beijo. Lá em casa eram muitos. A fome era madrinha dos dias e das noites. Muito cedo havia que fazer pela vida. E assim fora parar a casa de Dona Laurinda conceituada modista. Acolhera-a, dera-lhe uma cama, comida e ainda a iniciara nos meandros da costura. Dona Laurinda reconheceu-lhe o dom. Maria Luísa possuía aquela singular qualidade de fazer de um vestido de chita uma toilette. De tesoura na mão e tecido na mesa deixava-se levar pelos sentidos, criando vestidos, saias, casacos e um sei lá que mais. Gostava do que fazia, muito. Gostava sobretudo de cortar. E foi assim que lentamente Maria Luisa passou a fazer parte do cartão de apresentação. Maria Laurinda e Maria Luísa, modistas. Rua do Salitre, nº 65. Lisboa. Entre o Príncipe Real e a Av. da Liberdade. Lugar privilegiado numa Lisboa de outros tempos onde ir à modista era um encontro agendado na vaidade do ego feminino. Hoje olha-se, prova-se, veste-se. Compra-se e sai-se de saco na mão. Perdeu-se o encanto, ganhou-se o tempo.

Casou-se entre uma estação e outra, quando as freguesas ainda não tinham despido os casacos compridos e os tailleurs não vestiam o vento frio. Não teve lua-de-mel porque nessa altura essas coisas não se usavam e o dinheiro também não abundava. O seu enxoval mais os mobílias tinham-lhe levado as economias, a ela e ao seu marido. Contudo não se importava muito. Pela primeira vez tinha algo de seu. Respirava no torvelinho de um sonho ainda por abrir, não sabia bem como o desatar, era apenas sonho. Mas sabia-lhe tão bem. Contentava-se em pensar que era feliz. E naquela altura até o era. Mais não conhecia, mais não sabia. Uma noviça na peleja do casamento. No vaguear dos anos aprenderia a ser exímia estratega, deixando o vencido ou vencidos com um sentimento de menoridade e culpabilidade, quais réus dos males do mundo. Ás da tesoura, também o era das concepções morais, as quais alinhava como se fossem pregas simétricas de uma saia. Tudo era medido, pensado, ordenado, fatiado. De exterior imaculado escondia um interior bem esburacado de afectos e desenganos. Maria Luísa não fora feliz. Dera muito de si e recebera pouco dos outros. E sempre no tempo errado. Fossem gestos, fossem carinhos. O seu presente sempre fora passado. Havia qualquer coisa nela que era impeditiva, que afastava. Uma espécie de onda rolada, grande, que quando está prestes a espraiar-se no areal, recua desfeita na água numa espuma tão breve e ligeira que apenas uns salpicos respigam o ar. Esperara muita da vida e ela, a vida, rira-se das suas quimeras. Fora, talvez brutal. Tornara-se dorida, sofrida. Uma mulher em desamor. Tivera três filhos dois rapazes e uma rapariga. Pedro, Afonso e Margarida. Pedro, o mais velho, o seu grande orgulho. Os seus olhos sorriam só ao pensar nele. Filho muito querido. Afonso fora sempre difícil, um desconhecido, nunca o entendera muito bem. Havia algo nele que a afastava. Margarida a sua grande dor de cabeça. Nascera nos idos da revolução. Acredita que fora isso que a fizera tão rebelde. Muito bonita a sua filha, demasiado, pensa. Muita senhora do seu nariz. Aliás os três filhos sempre tinham sido muito ciosos das suas vidas. No entanto a grande mágoa fora Afonso. De início não entendera. Agora já aceitava, porém Alberto, o marido, continuava intolerante inclusive chegou a assacar-lhe as culpas. Que criara o rapaz entre sedas, que fora mimado demais, que sempre fora um nico-doces, porque isso não se admirava nada, daqueles gostos esquisitos. Que do seu lado não havia daqueles tresmalhos. Enfim, um ror de culpas como se isso modificasse a questão.

O mais velho estava casado com Isabel. Gostava muito da sua nora. Era elegante, inteligente, trabalhadora, uma boa esposa e mãe. A sua carreira era invejável. Juntamente com Pedro faziam um casal modelo. A vida do seu filho enchia-a de orgulho. Depois Afonso… estava divorciado de Ana, também uma jóia de pessoa .Afonso … aquela dor ainda subsiste ao lembrar-se. Afonso era homossexual. Perguntava-se onde tinha errado na educação deste filho, mas como Isabel, a sua nora, lhe dizia:” Afonso teve uma vida de luta para se assumir. Respeitem-no, pelo menos. Se não conseguem, não aceitem o facto, mas respeitem-no, pelo menos”. Tinha razão, a Isabel. Depois vinha Margarida. Um pedaço de arte, a sua Margarida. Era bela a sua filha e criava beleza à sua volta. As suas mãos de artista tinham o dom da criatividade. Também ela sentira aquele mistério sempre que pegava na tesoura, era como se algo a guiasse, uma força inexplicável. Depois vinha o vazio. A concepção do espírito em matéria concretizada era um desventrar, tal como o fora aquando do nascimento dos seus filhos. Margarida casara, descasara, casara, descasara, e de momento não sabia se tinha o pé dentro, fora ou simplesmente no meio. Também não queria saber. No vai e vem do casa-descasa, a sua filha ainda tivera tempo para duas maternidades. Ao todo sete netos. Três de Pedro, dois de Afonso e duas de Margarida.

Ela e o seu Alberto peças já gastas da mobília da vida, vivem um dia a dia de reformados. Têm os seus interesses, os seus rituais. Rotinas arreigadas agora adaptadas aos tempos. A idade, a disponibilidade quer temporal quer material permite-lhes estarem talvez mais perto um do outro. Não a proximidade física, mas antes uma proximidade de entendimento que acontece porque os anos limaram os egos. A importância das coisas esbate-se à medida que o sino do tempo começa a badalar no campanário dos anos. Aí o ser humano conclui rapidamente que não vale a pena nem o desvario nem a contusão do ressentimento e muito menos o calor da raiva.

O soar do telefone acorda-a dos seus pensamentos. Levanta-se da sua velha cadeira e dirige-se até à mesinha onde o atende.

-Olá Mãe. A mãe e o pai estão bem?

-Sim Pedro estamos bem. E vocês? Aconteceu alguma coisa?

-Não Mãe, porque é que diz isso?

-Por nada, acho-te… ora diz lá.

-Queria falar com a Mãe. Amanhã posso ir aí almoçar?

-Claro filho. Vou-te fazer o bacalhau da”mãe” como tu gostas.

-Está bem mãe. Até amanhã. Um beijinho e ao Pai também.

Poisa o telefone e senta-se. Amanhã, um outro degrau terá que ser subido, pressente…

(…)



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16 comentários:

  1. Olá

    tenho sempre imensa admiração por pessoas que conseguem fazer o que não sou capaz, ou que têm o que eu não tenho.

    por isso toda a minha admiração, pelo fôlego, deste novo conto.

    Qualquer dia é dia, de romance completo.


    beijinho

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  2. São taõ bons os dias feitos de pequenos nadas!

    um bjinho

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  3. Foi um prazer conhecer este espaço!
    A paixão pela escrita (de qualidade) e pela música (magnífica!), partilho de tudo isso...

    Muitos parabéns! :)

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  4. Vidas... é incrível quantidade de situações que consegues por num simples conto. As tuas madames!

    bj

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  5. Acho que já não preciso de comentar!!Grande abraço!***

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  6. Saio daqui com a sensação de ter iniciado um romance daqueles que não se largam até terminar.

    Espero por mais, claro. :)

    Ainda mais, a música. Tem tudo a ver comigo.

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  7. Pedacinho a pedacinhos vais construindo a teia destas vidas. Um romance, sim. Mas feito de vidas vvividas.

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  8. Não preciso dizer o que penso, nem sei dizer...:)

    Beijinhos*

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  9. mergulho num tempo que

    encontro em mim

    mas já não me existe.

    ou talvez

    ainda

    não me exista...(?)


    um tempo que me há de acolher, (talvez!



    beijO

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  10. Admiro a tua prosa poética feita de histórias de vida!

    Uma narrativa fluente e cativante!
    Como sempre, encantada...

    Votos de um bom feriado!

    Um beijo amistoso

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  11. Belíssimo conto. Mais um belo e rico de humanidade.
    Não vou dizer sobre o teu texto no nosso Jogo. Afinal já disse no e-mail que te enviei acusando a recepção. Como vês todos fazem falta. Enriquecem o conjunto - Olhares múltiplos que se enriquecem e nos enriquecem - e por vezes é como se alguns dialogassem entre si.
    Fraterno abraço e bom fim-de-semana

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  12. Estou a 400 kms de casa. chove. chove em Oz, esta é boa, não devia acontecer. também não era de esperar aceder aqui em cima de um sofá confortável porque já estou fora da zona wireless. estranhamente parece que as antenas sempre captam aqui. fantástico. e o ócio convida às grandes leituras, é em dias como hoje que te leio atenta e agradável.como este quase drama que pode ser um entre tantos. uma família qualquer entre tantas iguais, os revezes da vida, os pais, filhos, netos e o teu talento na descrição do ambiente de tal maneira que nos fazes sentir "voyeurs" da história. como intrusos no seio desta família. e cuscos. a querer saber o que quer o Pedro. Vais dizer não vais?
    livra-te de não o fazeres.

    Beijo para ti

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  13. espero.te no voltear da esquina
    quando o conto se torna canto


    .um beijo ,miúda

    [resguardo.me na espera de mais]

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  14. Conheci-te há menos de meia hora no Eremita, onde eu também participei.
    Li também este teu texto e, em ambos, constatei fôlego de romancista. Se a isso juntarmos a excelente prosa que escreves, de leitura agradável e com uma qualidade literária invejável, convenco-me que estou na presença de uma escritora.
    Parabéns.

    Bom fim de semana.

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  15. Sempre a subir

    nos seus degraus

    devagar

    com afecto

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