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27 maio, 2008


OBOE DAMORE - RONDO VENEZIANO

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A Tapeçaria

Estava gasta e debotada. Pendurava-se no vão das escadas. Entre o primeiro e o segundo lance, quando os degraus espreitavam a entrada da casa, e também os quartos de cima. Era uma grande tapeçaria. Contava uma história tecida nas suas entranhas de seda. As cores tinham-se desmaiado com orvalho do tempo. Mas continuava bela e enigmática. Duas figuras, apenas, no centro. Um velho e uma criança. O pequeno rubicundo, loiro e lácteo, pese a cor acinzentada do tecido. O velho, esguio, de barbicha, olhar penetrante que girava consoante se subiam ou desciam as escadas, como que a ousar penetrar nos segredos da casa. Em redor móveis de madeira velha quase exalando o cheiro a cera, compunham o que parecia um quarto. Na alcova junto à janela de vidros manchados deitava-se uma figura. O artista fora feliz na composição das cores. O rosto esquálido tinha precisamente aquele tom de morte, que arrepia, e torna mais pálidos os primeiros raios de sol que visitavam a manhã. Perpassavam pela janela num adejo de calor para suavizar a pena que se evolava no ar. Pressentia-se o frio e a tristeza, quase a despedida. Na parede em frente repousava o espelho pendurado sobre o baú de madeira maciça, alforge de linhos, e loiças e demais enxoval, exponente da sua condição social. O espelho trazia de volta o movimento que parecia ter parado. Breve silhueta em rotação, o velho ergue o dedo admoestando o pequeno loiro. E o movimento repete-se, lenta e deliberadamente, os dedos tapam os lábios, em obstrução de som. Silenciado o chilreio da criança, afaga-lhe a cabeça de caracóis. Porém a mão continua semi-f.echada e o dedo meio dobrado. O rosto move-se em articulação. Parece conselheiro mais de si do que da criança. De repente, a tapeçaria adeja e as cores agitam-se, a criança, menino loiro, mexe-se, quase que cresce e olha dentro, bem dentro do rosto do velho. O sorriso espalha-se brilhante nas bochechas, parece-me. Oh é apenas o vento. O quadro mantém-se imutável na sua vulnerabilidade de tons e reflexos.

Subo de novo o lance das escadas e olho, aqueles rostos, a luz diáfana ,que bafeja a composição. Essa mesma, vem de fora, em jorro inunda a janela mais a cama ,e vai deitar-se no chão. Há poças de matiz que molham os botins do velho. Ora pretos ora tijolados. O afastar ligeiro de pernas abre novos matizes. Desta vez nas meias que vestem as pernas, e onde se sobrepõem os calçotes escuros. E o velho abana-se ligeiro. Deitando um olhar enviesado para a alcova. Um momento parado de vida. No remanso do quarto, a vida palpita, em interlúdio de matizes de luz.

E perene a tapeçaria descansa sob o olhar da casa.


Texto de participação no jogo das 12 palavras


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19 maio, 2008



Urze e Giesta IV

(...)

Baloiça-se no vai e vem das memórias. Tem o sorriso doce da alba mas o perfil do entardecer. Os cabelos são névoas cinzentas onde os fios prateados brilham na moldura da cabeça. É bela a sua cabeça. Uma fronte larga onde a renda finíssima dos bordados da pele se ajeitam docemente. De trás a nuca vislumbra-se perfeita, logo suportada pelo pescoço rilhado mas ainda altivo. Os olhos são asas abertas vestidas ora de o azul ora de verde triste. São gázeos e peculiares. Brilham ainda em pequenos hiatos de picardia, de sonho ou simples alegria. Maria Luísa. Setenta e tais anos. Muita vida. Um crepúsculo pleno. Recorda, recorda aqueles dias onde sentada no banquinho mais baixo alinhavava as peças, e mesmo antes, quando apenas enfiava as agulhas ou simplesmente tirava os alinhavos. Aquele entra que sai do tecido, aquele alisar, esticar, puxar e imaginar de peça a ser. Fora assim desde os seus dez anos até se casar. Aprendiza de costura, depois ajudante e finalmente costureira. Fora menina, moça e mulher de dedal, agulha e tesoura. No construir da obra também aprendera a saber vestir os moldes da vida, ora floridos, estivais ou apenas invernais. Das sedas às fazendas de lãs. Da leve subtileza à suave macieza. Fora aí que aprendera a ajoelhar de pescoço erguido. Quando as “madames” lhe exigiam quase impossíveis, quando bainhas certas eram ditas como tortas, quando perfeição não assentava na imperfeição, e havia que refazer tudo porque assim lho exigiam. A vida também era assim, um constante refazer. “Luísa, olha a madame Bastos. Luísa, a madame Carvalho Araújo queixou-se que o tailleur ficou apertado. Luísa…” Maria Luísa trincava os lábios, cerrava os dentes e respondia:”- Concerteza vou já arranjar.”

Já na sala de provas a lenga-lenga era semprea mesma, um disco de vinil riscado num gira-discos de rotações lentas.

-Olhe, menina deixou-me a saia apertadíssima que falta de jeito.

-Olhe esta cintura está demasiado larga. Devia apertar-ma. Que deselegante.

-Madame não acha que um pouco mais largo a favorece. E depois este ano as cinturas marcadas não estão de todo em moda.

-Oh se assim é… mas de qualquer dos modos, menina dê um toque aí. Ai falta as mãos da Maria Laurinda. É o que eu lhe digo. Terei que lhe dar uma palavrinha.

-Com certeza, Madame.

Depois eram as queixas a Maria Laurinda, sua mestra. Aquele ciciamento e olhares enviesados que conhecia de cor. A despedida melíflua e os sorrisos sempre iguais, máscaras venezianas de sorriso vazio. A raiva da injustiça, alindar corpos mal feitos, gordos, envelhecidos que se desejavam elegantes não lhe perdoando o conhecimento das suas fraquezas. A mestra conciliadora que lhe dizia: “Tens que ter paciência. São elas que nos pagam e nos dão nome.”

Fora bem cedo ainda bem menina, que Maria Luísa aprendera no corpo o desatino do não amor. Nunca sentira o afago de um colo ou o roçar de um beijo. Lá em casa eram muitos. A fome era madrinha dos dias e das noites. Muito cedo havia que fazer pela vida. E assim fora parar a casa de Dona Laurinda conceituada modista. Acolhera-a, dera-lhe uma cama, comida e ainda a iniciara nos meandros da costura. Dona Laurinda reconheceu-lhe o dom. Maria Luísa possuía aquela singular qualidade de fazer de um vestido de chita uma toilette. De tesoura na mão e tecido na mesa deixava-se levar pelos sentidos, criando vestidos, saias, casacos e um sei lá que mais. Gostava do que fazia, muito. Gostava sobretudo de cortar. E foi assim que lentamente Maria Luisa passou a fazer parte do cartão de apresentação. Maria Laurinda e Maria Luísa, modistas. Rua do Salitre, nº 65. Lisboa. Entre o Príncipe Real e a Av. da Liberdade. Lugar privilegiado numa Lisboa de outros tempos onde ir à modista era um encontro agendado na vaidade do ego feminino. Hoje olha-se, prova-se, veste-se. Compra-se e sai-se de saco na mão. Perdeu-se o encanto, ganhou-se o tempo.

Casou-se entre uma estação e outra, quando as freguesas ainda não tinham despido os casacos compridos e os tailleurs não vestiam o vento frio. Não teve lua-de-mel porque nessa altura essas coisas não se usavam e o dinheiro também não abundava. O seu enxoval mais os mobílias tinham-lhe levado as economias, a ela e ao seu marido. Contudo não se importava muito. Pela primeira vez tinha algo de seu. Respirava no torvelinho de um sonho ainda por abrir, não sabia bem como o desatar, era apenas sonho. Mas sabia-lhe tão bem. Contentava-se em pensar que era feliz. E naquela altura até o era. Mais não conhecia, mais não sabia. Uma noviça na peleja do casamento. No vaguear dos anos aprenderia a ser exímia estratega, deixando o vencido ou vencidos com um sentimento de menoridade e culpabilidade, quais réus dos males do mundo. Ás da tesoura, também o era das concepções morais, as quais alinhava como se fossem pregas simétricas de uma saia. Tudo era medido, pensado, ordenado, fatiado. De exterior imaculado escondia um interior bem esburacado de afectos e desenganos. Maria Luísa não fora feliz. Dera muito de si e recebera pouco dos outros. E sempre no tempo errado. Fossem gestos, fossem carinhos. O seu presente sempre fora passado. Havia qualquer coisa nela que era impeditiva, que afastava. Uma espécie de onda rolada, grande, que quando está prestes a espraiar-se no areal, recua desfeita na água numa espuma tão breve e ligeira que apenas uns salpicos respigam o ar. Esperara muita da vida e ela, a vida, rira-se das suas quimeras. Fora, talvez brutal. Tornara-se dorida, sofrida. Uma mulher em desamor. Tivera três filhos dois rapazes e uma rapariga. Pedro, Afonso e Margarida. Pedro, o mais velho, o seu grande orgulho. Os seus olhos sorriam só ao pensar nele. Filho muito querido. Afonso fora sempre difícil, um desconhecido, nunca o entendera muito bem. Havia algo nele que a afastava. Margarida a sua grande dor de cabeça. Nascera nos idos da revolução. Acredita que fora isso que a fizera tão rebelde. Muito bonita a sua filha, demasiado, pensa. Muita senhora do seu nariz. Aliás os três filhos sempre tinham sido muito ciosos das suas vidas. No entanto a grande mágoa fora Afonso. De início não entendera. Agora já aceitava, porém Alberto, o marido, continuava intolerante inclusive chegou a assacar-lhe as culpas. Que criara o rapaz entre sedas, que fora mimado demais, que sempre fora um nico-doces, porque isso não se admirava nada, daqueles gostos esquisitos. Que do seu lado não havia daqueles tresmalhos. Enfim, um ror de culpas como se isso modificasse a questão.

O mais velho estava casado com Isabel. Gostava muito da sua nora. Era elegante, inteligente, trabalhadora, uma boa esposa e mãe. A sua carreira era invejável. Juntamente com Pedro faziam um casal modelo. A vida do seu filho enchia-a de orgulho. Depois Afonso… estava divorciado de Ana, também uma jóia de pessoa .Afonso … aquela dor ainda subsiste ao lembrar-se. Afonso era homossexual. Perguntava-se onde tinha errado na educação deste filho, mas como Isabel, a sua nora, lhe dizia:” Afonso teve uma vida de luta para se assumir. Respeitem-no, pelo menos. Se não conseguem, não aceitem o facto, mas respeitem-no, pelo menos”. Tinha razão, a Isabel. Depois vinha Margarida. Um pedaço de arte, a sua Margarida. Era bela a sua filha e criava beleza à sua volta. As suas mãos de artista tinham o dom da criatividade. Também ela sentira aquele mistério sempre que pegava na tesoura, era como se algo a guiasse, uma força inexplicável. Depois vinha o vazio. A concepção do espírito em matéria concretizada era um desventrar, tal como o fora aquando do nascimento dos seus filhos. Margarida casara, descasara, casara, descasara, e de momento não sabia se tinha o pé dentro, fora ou simplesmente no meio. Também não queria saber. No vai e vem do casa-descasa, a sua filha ainda tivera tempo para duas maternidades. Ao todo sete netos. Três de Pedro, dois de Afonso e duas de Margarida.

Ela e o seu Alberto peças já gastas da mobília da vida, vivem um dia a dia de reformados. Têm os seus interesses, os seus rituais. Rotinas arreigadas agora adaptadas aos tempos. A idade, a disponibilidade quer temporal quer material permite-lhes estarem talvez mais perto um do outro. Não a proximidade física, mas antes uma proximidade de entendimento que acontece porque os anos limaram os egos. A importância das coisas esbate-se à medida que o sino do tempo começa a badalar no campanário dos anos. Aí o ser humano conclui rapidamente que não vale a pena nem o desvario nem a contusão do ressentimento e muito menos o calor da raiva.

O soar do telefone acorda-a dos seus pensamentos. Levanta-se da sua velha cadeira e dirige-se até à mesinha onde o atende.

-Olá Mãe. A mãe e o pai estão bem?

-Sim Pedro estamos bem. E vocês? Aconteceu alguma coisa?

-Não Mãe, porque é que diz isso?

-Por nada, acho-te… ora diz lá.

-Queria falar com a Mãe. Amanhã posso ir aí almoçar?

-Claro filho. Vou-te fazer o bacalhau da”mãe” como tu gostas.

-Está bem mãe. Até amanhã. Um beijinho e ao Pai também.

Poisa o telefone e senta-se. Amanhã, um outro degrau terá que ser subido, pressente…

(…)



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18 maio, 2008





Ensor

There, garland dandelions round that idol
with a corn husk face &  beard
patched with rat stubble from a barber’s dust pan,

parade float driven by a carriage pulled by a pig.
Two sticks knotted together,
cake frost on that crude wood to make it gilt.

There, spider cranks &  iron gyres,
blueberry stain glass sprout
like wings from coal burn cars,

a trumpet toots the sorrow of another boy dead,
there he is, limp on a gurney wrapped in gingham scrap,
there, he’s blast.

There, roofless houses,
sarong utopias balloon, balloon toward the sky,
while women beat, beat their skulls.

I trail behind, mop in hand,
sloshing scum water over memorials.
There he stares at my tic-torn cankered face,

&  begs for alms, his face horse rudder red.
A son, he huffs, it is a son I want.


Cathy Park Hong is the author of two books of poetry, including Dance Dance Revolution (W.W. Norton, 2007), which received the Barnard New Women Poets Prize. .
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Mendelssohn - Violin Concerto - Allegro molto apassionanto

Je ne sais pourquoi

Je ne sais pourquoi
Mon esprit amer
D'une aile inquiète et folle vole sur la mer.
Tout ce qui m'est cher,
D'une aile d'effroi
Mon amour le couve au ras des flots. Pourquoi, pourquoi ?

Mouette à l'essor mélancolique,
Elle suit la vague, ma pensée,
À tous les vents du ciel balancée,
Et biaisant quand la marée oblique
Mouette à l'essor mélancolique.

Ivre de soleil
Et de liberté,
Un instinct la guide à travers cette immensité.
La brise d'été
Sur le flot vermeil
Doucement la porte en un tiède demi-sommeil.

Parfois si tristement elle crie
Qu'elle alarme au loin le pilote,
Puis au gré du vent se livre et flotte
Et plonge, et l'aile toute meurtrie
Revole, et puis si tristement crie !

Je ne sais pourquoi
Mon esprit amer
D'une aile inquiète et folle vole sur la mer.
Tout ce qui m'est cher,
D'une aile d'effroi
Mon amour le couve au ras des flots. Pourquoi, pourquoi ?

Paul Verlaine

13 maio, 2008

Urze e Giesta III

(…)

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Enterra-se no sofá, olha sem ver, o mar em frente. A neblina desceu, apenas as sombras e os traços miríades rabiscam a paisagem. Os cortinados dançam ao compasso da noite. E ela que não chega. Sente-se vazio de espera. Os garotos arrastam-se pelos quartos, de vez em quando, o bater de portas e os gritos habituais. Tudo parece longe, e todavia é ali mesmo. Os dias passam assim rodados de espera, hirtos de silêncios, um esvoaçar de tempo perdido. Não sabe, quando tudo começou ou melhor quando tudo acabou. Um tempo qualquer, de um dia escondido, num mês desapercebido. Foi isso. Foi no correr dos dias sem tempo sentido. O sentir escapa-se no tempo, manso, fugidio, perdido. Isabel. Fecha os olhos com força. Recorda, recorda aqueles dias de tempo cheio.

-Pedro que tal irmos o fim-de-semana por aí?

-Este fim-de-semana, sim… é boa ideia. Depois estudo, ainda tenho tempo. Umas directas e consigo. Tenho que acabar este ano senão matam-me lá em casa. Então tá combinado… levamos a tenda vamos por aí.

-Olha a mesada está quase no fim. Mas tenho um dinheirito, o que fiz com aquele part-time, sabes? Vai dar e tu?

- Bem, curto, já sabes mas eu peço à minha Mãe. Ela refila mas pinga, sempre, sabes como é.

-Também não vamos gastar muito. É mais a “gasosa”e alguma comida.

-Ok vamos só os dois! Desta vez a malta fica. Quero estar contigo.

-Está bem. Oxalá não te aborreças…

-Eu?! Deves estar a sonhar…

Era assim aquele tempo, escapavam-se os dois, umas vezes sós, outras em grupo. Correram os campos e os parques de campismo, fotografaram, exploraram, mergulharam, conversaram, discutiram, analisaram e amaram. Tudo em fulgor, com garra, com riso. Não havia conforto, não havia dinheiro, mas havia aquele bem, o do querer. Tudo era fulgurante, mesmo quando chovia, e se recolhiam nas tendas ou simplesmente jogavam as cartas. O gargalhar sobre um disparate ou o lamber sôfrego dos lábios quando engoliam o mundo. O grupo de amigos, as noitadas, os amores. As chegadas e as partidas. Tudo num molhe de feitiço espargido na alma dos dois. O que fora feito do encanto? Onde pairava? Quem o amordaçara? O tempo, a vida, os proselitismos sociais e os bem-estares materiais. A sua Isabel, espiga de centeio maduro, vibrátil, prenhe de grão levedo de amor. A sua Isabel de olhar refulgente e lábios túrgidos, caudal de afagos e chispas de brejeirice. Isabel a sua raiz, caule e flor de vida. Como tem saudade, como dói o relembrar. Eram jovens, crédulos, vigorosos, brilhantes e amantes. Tronco principiado de uma árvore que de frutificada remansa solitária quase perdida no campo da sua vida. Isabel mãe, flor aberta. O primeiro vagido de Lourenço estremeceu-o na sua altura. A sua carne palpitada em pedaço de gente. O vermelho agitado de um corpo minúsculo que era também obra sua, a sua primeira criação. Outras se tinham seguido. No papel e do lápis gizara obras, criara arte, mas a primeira a melhor, a mais perfeita e humana fora Lourenço. Vieram, depois, outras, mas nenhuma possuiu mais aquele sabor, aquele grito de si. O encher do coração num dilatar de plenitude. Caetano e Teresa mais burilados, artísticos e igualmente amados, porém, a sensação ao ergue-los fora diferente, mais calma. O conhecimento é por vezes impeditivo da emoção visceral. Sentir com as entranhas em primitivismo humano é um orgasmo brutal onde tudo se expande até que a explosão ocorre. As veias tornam-se liquefeitas, os músculos retesam-se e a mente grita triunfante. Assim o sentira pelos seus filhos. Assim sentira outras vezes, talvez um pouco menos brutal mas igualmente intensa sempre que amara a sua Isabel. O tempo, o tempo não lhe lavara os sentidos, simplesmente deixara-os em imersão, esperando pelo impulso exterior que vinha faltando. Estava na hora de mergulhar novamente ou então nadar em braçadas largas até á margem de outro tempo, outra vida, outra gente. Precisava de conversar com Isabel e depois com os pequenos.

Levanta-se e afasta os cortinados. Aspira a maresia. Respira fundo. O olhar roda até que as pupilas cegam, depois retrocede. Vai até à cozinha, levanta a tampa da panela e aspira. Poisa a tampa. Inebriado sai lentamente. Já na porta chama pelos pequenos. Como coelhos que saem das tocas, eles pulam as escadas.

-A mãe já chegou? Diz Caetano, tenho cá uma larica. Cada vez se janta mais tarde nesta casa.

-Já sabes como é, garoto, responde-lhe Lourenço.

-O que tem pai, está cá com uma cara…diz Teresa

-À espera da mãe, que cara querias tu que o pai tivesse, todas as noites é o mesmo fado, respinga Caetano na sua voz aflautada de catorze anos.

- E tu menina, fizeste alguma coisa ou estiveste agarrada ao telemóvel, como é hábito. Olha, põe -te nos eixos, senão já sabes, digo ao pai…e depois lá se vai o cineminha á viola, ameaça Lourenço.

-Parvo, parvo és mesmo idiota. Chantagista. Vais ver…retorta Teresa

-Já sabes maninha é assim…afirma Lourenço meio sério meio gozão. Dezoito anos de maioridade infantil…

-Meninos o que se passa estão para aí a cochichar. Algo que eu deva saber?

-Ná pai estávamos só a falar. A mãe é que nunca mais chega.

-Ei-la! Está a entrar o portão. Vou até à cozinha. Vá lá dêem-me me uma mãozinha.

A noite já dormiu quando Isabel e Pedro se deitam. Os monossílabos fazem parte da cerimónia. A conversa arrasta-se perante alguns “hums”, muitos”pois”, e finalmente um até amanhã. A deixa habitual para cada um se voltar para seu canto e remoer o que não foi dito por muito sentido, qual fantasma de palavras assombradas, ou simplesmente adormecer. Naquela noite ambos parecem actores de uma peça inacabada. As pancadas de Molière já soaram há muito, o pano já se levantou, os personagens recolheram ao proscénio sem contarem a sua história. Existe apenas o vazio. Mas os adereços estão todos lá. Apenas os personagens são mudos no entanto levam os seus papéis muito seriamente, quase na perfeição. O silêncio é pois pontilhado de sentires. Pedro pigarreia, remexe-se, sacode a almofada, coitada, ela não tem culpa, mas dá sempre jeito abaná-la como se o seu conteúdo permitisse uma maior clarividência às ideias. E um suspiro, um tirar de braços no arranjo do lençol, um puxar do que nunca saiu do lugar. Depois um novo voltar, desta vez de costas para Isabel. A oposição quase que lhe dá forças para começar, assim de costas voltadas não há o perigo de o olhar se encontrar mesmo no quase escuro do quarto. Existe sempre uma réstia de luz vinda de fora, seja dos candeeiros ou dos faróis, ou do céu que em dias incertos resolve vestir-se de estrelas. Finalmente Pedro diz: “-Isabel tive uma proposta de trabalho fabulosa.”

-Sim? A voz é um misto contido de intenção e interesse. Não se volta ainda. Espera. A intuição diz-lhe que algo mais vem aí…

-Um projecto de construção de um novo aeroporto…

-Bom, muito bom, e onde é que vai ser, no norte do país?

-Não. No Chile, Puenta Arenas.

-No Chile? Santo Deus! No Chile?

-Um concurso internacional onde o meu o projecto ganhou para além de quaisquer expectativas.

-Mas… quando foi isso? Não contaste nada…

-Nunca perguntaste.

-Valha-me Deus, como é que ía perguntar uma coisa que desconhecia. Tu de há uns tempos a esta parte tens um secretismo muito teu sobre a tua profissão, de modo que se não falas, não vou ser eu a perguntar-te, porque já o tentei e respondeste-me evasivamente…

-Pensei que não te seduzisse. Andas tão embrenhada com as tuas manipulações e palestras sobre o assunto. Que os meus projectos devem-te parecer falhos de interesse.

-Oh Pedro sabes que não é verdade…Os teus projectos, as tuas criações sempre foram e são um motivo de orgulho para mim. Mas agora tens mesmo que ir, vais não vais?

-Claro é uma oportunidade que devo agarrar. É algo com que sempre sonhei. Algo que eu perpetuarei no tempo. Pense-se o que se quiser mas a vaidade humana existe em nós. E eu não sou diferente.

-Mas quanto tempo é que vais lá estar? Quinze dias, um mês?

- Não. São de inicio três meses, é a cláusula do contracto.

-Como? E nós, os miúdos e .…a nossa vida?

-Nós, Isabel? Quem? Tu? Ou Eu? Já não somos nós… já foi tempo. Vida? A que chamas tu vida? A esta paz podre de mágoas por dizer, a estes silêncios convenientes de bem-estar, estes sorrisos afivelados de felicidade inventada? A momentos de satisfação orgânica quase rotineiros em tempos perfeitamente calendarizados onde cada um adormece do cansaço físico mais do que da satisfação espiritual. Onde está a nossa chama? Onde está o nosso riso? Onde estamos nós, Isabel?

-Oh Pedro. Os anos, a vida, o cansaço, os filhos…tanto de nós. Magoas-me muito -disse baixinho.

-Mas Isabel eu também estou magoado, não como tu, magoado de perder, magoado de esperar, magoado de não sentir. Eu já não sinto Isabel, eu respiro a rotina. Sabes, conheces-me, não fui feito para uma vida em pequenos nadas de sentir. Sabes que me gosto de lambuzar de vida, de riso, de grito, de raiva, pena, de ternura de Amor. Tu sabes porque te dei quase tudo de mim. E tu? O que me dás? Nada. Silêncio, tempo, tempo solto. Não, assim não. Chega Isabel, chega de vida esperada.

-Estás a dizer que vais…vais embora? Pedro! E os miúdos? E eu? Pensaste, pensaste em nós?

-Tanto, que por isso tomei a decisão.

-Já agora também gostava de saber qual é, murmura Isabel de forma crispada.

-Pois bem. Quinta-feira embarco. Fico lá durante três meses. Depois logo se verá. Fica tudo em aberto. Agora é contigo.

-Quinta-feira. Esta quinta? Mas é já daqui a três dias. Como é que vais dizer aos garotos?

-Como Eu vou dizer? Como vamos Nós dizer, Isabel. O assunto não é só Meu, é Nosso não te esqueças.

-Pedro! Pedro! És injusto! Muito!

Volta-se dorida e quebrada. Como se um estilete a tivesse perfurado. Dói a alma. Dói o coração. Doem os dois. Ou dói um, e chora o outro? Não sabe, a dor é fina como se as picadas aguilhoassem a carne. Um desventrar de sentir que amassa as carnes em batidas fortes e rápidas, que lhe corta a respiração provocando-lhe um sufoco de lágrimas por sair. Uma raiva que sobe de dentro e se desfaz em agonia. Tem quase vontade de lhe gritar, de o insultar, de o chamar de ingrato, de o ferir. Para que ele sinta como ela. Não, não vai fazer nada disso. É uma mulher inteligente. Vai engolir, serenar e amanhã é outro dia. Amanhã vai à luta. E se…

-Pedro responde-me. Tens alguém?

-A pergunta clássica…Não vês, o que não fazes, e tentas desviar o sentimento de frustração para um culpado. Sempre igual.

-Acredito em ti. Vamos dormir, amanhã conversamos. Até amanhã.

De costas voltadas remoendo o que ficou por dizer. A mente está disfuncional porque apenas sentem o momento. O tempo é o melhor mestre nestas alturas. Dormir sobre e com ele, permite melhores perspectivas, os ângulos tornam-se menos agudos… Amanhã é um novo dia, uma nova luta.

(…)




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11 maio, 2008

.Agradeço, uma vez mais a Gi de Meus Pequenos Nadas, mais este mimo. Faz parte do ritual dar continuidade ,então assim seja...
The Last Dance
Citadel
Codornizes
Portocroft
Vasant Utsav
Fragmentos da noite com flores.





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(…) Urze e Giesta II

A cidade recolhe os últimos resquícios de luta. Nas ruas, o afã é, agora, de fuga. Foge-se para longe, para a periferia ou quem pode para mais longe, até onde o dinheiro leva. As estradas tingem-se de luzes. O amarelo dos faróis bruxuleia o alcatrão e as silhuetas de argamassa que bordejam a paisagem circundante. Aquele despir, da cidade, numa pressa corrida, lembra-lhe sempre a sua primeira relação. Algo de precipitado, como se o tempo não tivesse tempo, e o corpo se esgotasse no momento seguinte. Fora, como costumava dizer, fora uma experiência. É bom colocar as palavras correctas senão ficam-nos a olhar como desprovidos de algo. Sentira-se sempre plena de sentidos. Mas, na verdade, não lhe restara muito do momento. Fora tudo muito atabalhoado, numa pressa própria, de quem quer chegar, sem sequer, ter ainda partido. Entreabre os lábios num sorriso húmido. Passa os dedos pelos cabelos como que afagando memórias distantes. Lembra-se, tinha dezanove anos, uma giesta do monte florida de amarelo vivo. Momentos de crescimento. A estrada continua em frente, curva-se ligeira mas não muito. A viagem de regresso a casa é sempre o momento das memórias. Todas. Daquelas que só ela sabe. Degusta-as em cada mudança, em cada quilómetro percorrido. Isabel é gente, e gente precisa de espaço mental para respirar. O dia-a-dia tão rápido de pequenas coisas, cheias de tudo, e vazias de mais ainda, impedem-na de se ouvir. Lourenço, Caetano e Teresa. Três filhos, três labaredas de um ontem feito dia-a-dia. Pedro espera-a como sempre, com aquele ar meio triste, meio tolerante. Os anos têm vindo a macerar o diálogo, os silêncios têm aumentado na proporção dos centímetros que os filhos vão adquirindo. Há algo que fere sub-repticiamente. O sorriso, aquela amplitude de sentir, quebrou-se, apenas na porta fechada do quarto há azo ao amplexo do amor. Quase como uma sentença em quarto de grades. Será isto a maturidade? Não acredita. Ela e Pedro fazem-na lembrar-se da sua mãe e do seu pai. Adelaide e Agostinho. Sempre distantes um do outro, sempre separados, sempre trabalhando, sempre assexuados, no entanto, ela e os irmãos tinham vindo a este mundo. Um quase mistério. Nunca vira aos seus pais gestos de carinho. Eram quase pecados-vergonhas que não se mostravam, não se faziam. Recorda o espírito azedo da mãe e a bonomia do pai. Recorda os trejeitos verrinosos da mãe quando via uma demonstração de afecto. Tempos desfolhados, aqueles. Nunca percebera bem como as relações cresciam ou apenas se mereciam. O seu casamento, tão diferente, e no entanto, já sentia as folhas a macerarem, quase frouxas. O caule estava a perder a firmeza. Aqueles desencontros de horas em ritmos de vida paralelos.

Pedro, a sua cara-metade, como se ousa dizer, não era mais do que a outra parte do seu ser, aquela que nunca nascera ou morrera sem que ela se tivesse alguma vez apercebido. Era alegre, simples, íntegro. Ria como se trincasse sempre uma maçã daquelas suculentas e sumarentas. Era isso, a vida para ele era uma simples dentada sumarenta. Inebriava-se simplesmente com o acto de viver. Todavia as maçãs por ora andavam sumidas. O seu riso era menor. O olhar franco encovava-se e os lábios estavam mais hirtos. Pedro silenciava as ausências mas desafiava a presença em monólogos articulados, em olhares de semi-decúbito. Tinha que dar um jeito a isto. Tinha. Era mulher de enfrentar as situações e não de baixar os braços. A luta estimulava-a, era a sua alma da Terra. Mentalmente agenda um fim-de-semana a dois. Têm que o fazer. Urge.

O vermelho do semáforo fá-la abrandar. Pára e instintivamente olha pelo retrovisor. Uma fila atrás de si. Tira as mãos do volante e enfia-a no saco à procura do telemóvel. Encontra-o. Não tem mensagens. Rapidamente liga para casa.

“-Sim, Pedro. Vou a caminho. Daqui a quinze minutos. Queres que leve alguma coisa? Está bem. Até já. Beijinho.”

Ouve o buzinar. Engata a primeira e arranca. De novo as recordações assaltam-na e sem saber porquê o pai, inunda-lhe a mente.

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Galga o caminho no desnudo da bota rota. Espreita-lhe o dedo mais a sola do pé ainda pequeno. Tem doze anos. Um olhar atrevido, matreiro. Treme-lhe o olho no cinzento da manhã. Aconchega uma prega da camisola amarrotada de amarelo ao peito magro. O ar gelado estremece-lhe as pernas onde os calções de cotim presos numa só alça tentam cobrir um corpo já espigado para o seu tamanho. Na cabeça de cabelos negros e curtos enterra-se um boné vestido de quadrados de linhas já partidas. Chama-se Agostinho e é mineiro. Percorre os socalcos da terra até às minas das Gatas, saltita as pedras do caminho por entre os bardos de vinhedos despidos, onde apenas os troncos esperam o abrolhar da estação. Em redor a neblina purifica a terra, veste-a de orvalho qual sorriso de promessa. Sente-se dono do que vê. A sua pobreza é a riqueza dos seus olhos. Erguera-se quando o galo cantara no galinheiro do quintal. Meio estremunhado, quente da cama de folhelho e cobertores de papa. Fora botar a roupa no corpo magro, enfiar as botas rotas nos pés, puxar os cordéis a servir de atacadores. Passar pela cozinha pegar na broa e ala pelo nevoeiro fora. A vida é dura. Gostava tanto de ter umas botas novas, mais uns rolamentos para o carrinho, pra ganhar ao Zeca na corrida de sábado, mas nada, não tem, dá a féria toda em casa. O pai amanha umas terrinhas e embebeda a alma mais o corpo todos os dias. Como a mãe costuma dizer, ele é mais “briaco” que a própria pinga. Coitado do Manel das Hortas, como é conhecido. Não é mau, o seu pai é apenas um fraco. A sua mãe, mulher tesa e azeda grita-lhe toda a hora. O Coitado, na pinga, ouve o silêncio que lhe embota os sentidos e fá-lo estar mais em paz. Assim não ouve a zunideira da Rita, sua mulher. Agostinho pensa no alto dos seus doze anos, que a mãe é dura, é retorcida, como as velhas cepas e azeda como o coalho que fede lá em casa. Gaita. Tem que se despachar, o sol já despregou as pálpebras e o alvor já tomou o dia. Se chega atrasado não tem jorna. A mãe estracinhava-o. Estuga o passo. O ar é gélido, sopra frio e cortante dos montes em concha. Lá pelos altos uiva como se fora loba ciada e aqui em baixo como gente esfaimada. Os cepos da vinha não bolem aconchegados à terra, apenas o pó de xisto voa encosta abaixo em rolo de névoas pingadas. Lá pelos baixos, na planura das Gatas, onde a urze e o tojo amaciam as pedras, e o granito se senta nos caminhos vestido de cinzento triste e duro, para esquecer a solidão do mundo, a terra abre a boca em túneis de volfrâmio. Nas entranhas negras Agostinho merece a sua magra jorna, este menino-mineiro de corpo ágil, magro, olhos coscurantes e orelhas abertas ao linguajar dos homens e aos sons dos pássaros. Dois trinados diversos mas que lhe vão alimentando o espírito. Cresce na míngua do pão mas na abundância dos sons.

-“Ei, ‘Estinho essa carreta na vem…? Ai o puto que está lerdo esta manhã…Despacha-te …Mexe-te…Desanda daqui, rapaz…”

Era assim o dia fora. Um vai e vem de força e lágrimas trincadas. E então caía o dia lá fora, que cá dentro por entre os túneis, dormia sempre enroscado na noite. Era o arrumar da carreta, o chapinhar as mãos, o rosto na água gelada da pia de granito, quando não eram tiras de gelo que serviam às lavagens, o vestir outra vez das breves roupas, o levantar da gola, o enterrar do boné, o calçar das botas esburacadas. Era o regresso, de socalco em socalco, de a barriga a dar horas ou a roncar, o caminho a pique, a paisagem a despedir-se do dia mas sempre soprada. As luzes que se espargiam no ar de onde em onde, sentinelas de gente. O puto agiganta-se no embrulho da noite ladeando em passo estugado os bardos já sonolentos. O cheiro da terra é cansado. Recolhe-se sob o tremular dos pirilampos no azul de cima em suave cadência de suspiros.

Chega a casa. As irmãs tagarelam como sempre. O pai curte o vinho no canto. Está babado e mais sujo que ele. A mãe azeda, envinagrada ,todavia adoça-se-lhe a voz ao ver o seu pequeno. Manda-o refrescar-se, mas rápido, porque a janta já espera. O caldo arrefece ela hoje inté cozeu broa. Inda está morna. É o beijo e o carinho de sua mãe. Mais não tem, mais não dá. Mais não sabe.

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Acaba de estacionar. Desliga o motor. Pega no saco, abre a porta do carro e sai. O comando faz o clique habitual. Mete as chaves à porta. Abre-a e entra. Despe o casaco, pousa o saco, afivela o sorriso e entra.

- Boas-noites, meninos. O Pai?

(...)
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09 maio, 2008

"Embebida no sonho da Vida"



.Esta imagem e texto foram concebidos a pensar em mais um meme
que me passou o Eremitério e que traduzi livremente como sendo
“A nossa biografia/memórias em apenas seis palavras”


São-nos pedidas seis palavras para uma “muito curta” biografia (há quem opte por um conceito) e podemos dar-lhes ênfase com uma imagem. Devemos colocar um link para quem nos desafiou e por nossa vez desafiar cinco blogues, avisando-os deste mesmo convite “à valsa”.

Os meus pequenos nadas
A cor do silêncio
A casa de Maio
O jardim e a casa
CValente

Valsem ,pois que, o valsar é belo....



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06 maio, 2008


Cvalente do blog cujo nome se repete atribuíu a aArtmus "o selo dos "Blogueiros que sabem comentar" o qual desde j á agradeço. Convém segundo os cânones pré-estipulados passar o selo a mais alguém, assim atribuo-o a :

Menina dos olhos d'água
Canto.chão
Árvore das Palavras.
Casa de Maio
Terra-de-Magia
Un-dress
Mar Arável
Aguarelas de Turner
Cor do silêncio
Fragmentos da noite com flores

E tantos outros ... e um obrigada pela vossa presença.

05 maio, 2008



Urze e Giesta I

“Estou em casa, é aqui que tudo começa…

Isabel caminha na terra vestida de carqueja florida, rosmaninho, urze e giestas. As cores matizam-se entre si abraçadas de verde, sente a brisa morna da tarde roçar-lhe o rosto e as pernas. Os braços baloiçam-se ao movimento dos pés. Sente-se quase plena. Pode respirar e sobretudo pensar. Veio ontem da cidade, tem uns dias para descansar. Num momento, empurrou a vida para trás da porta que fechou de supetão, enfiou-se no seu carrito, e rumou em direcção a casa dos pais. Não que as saudades apertassem. Nada disso. Sempre vivera longe. Habituara-se, aliás até preferia. Precisava de estar longe, de se medir, pesar e encontrar. Já não era gaiata. Andava nos seus quarenta. Naquela altura da vida em que se está maduro por fora e nem sempre se cresceu por dentro. Era casada, mãe, tinha profissão, casa e outras coisas. Isabel caminha pela terra adentro, enterra os sapatos, na almofada matizada, abre as narinas aos cheiros enchendo o cérebro de perfumes numa lavagem premeditada daqueles outros que lhe povoavam os dias e os sentires. Isabel, busca a seiva de outros tempos, quando ainda era catraia e corria por estes campos fora, de nariz ao vento e cabelos espalhados. Era outra vida. Uma outra, que ela deliberada fizera, quase desvanecer na busca, quase idiota, do ser citadino que julgara afivelado de preceitos, bordado de finuras, alargado de conceitos e engomado de prazeres. Pura cretinice. O seu quotidiano, quase asséptico de vida, ziguezagueado de percursos e escolhas pouco se assemelhava ao sonho que um dia tivera.

Os montes rasgam a paisagem ao longe. Estão azuis de nuvens. A brisa percorre-lhe o corpo agitando-lhe os sentidos em arrepio de recordações. Sorri ao vento que dança no ar.

“- Isabel vem cá. Dá uma mãozinha aqui ao lume.

-Vou indo, minha mãe, vou indo.

-Isabel olha pelo menino, que eu tenho que ir dar uma jeira pró Ti Lelo.

-Tá bem, mãe, tá bem, vá em paz. “

Fora assim a sua infância. Uma corrida entre o tempo da escola e o da casa. O da escola fora de meninice, o de casa de obrigações. Brincara no sem fim da imaginação. Depois havia a casa. Era a única rapariga. Tinha responsabilidades. Cumpria-as. Era a vida. Os anos da infância tinham voado. Já nem se lembrava direito do seu dia-a-dia. Apenas pontilhado na memória surgiam breves apontamentos que a tinham marcado. O nascimento do irmão mais novo, a primeira comunhão e o vestido de bordado mais os sapatos, o exame da quarta classe. A ida para o liceu o deixar a casa paterna, e ficar no colégio das irmãzinhas. O cheiro das velas e da cera que a tinham perseguido sempre. O pão com manteiga, o leite cujo cheiro era bem diferente do de sua casa. O banho semanal de água quase fria. O frio que a percorria nos invernos agrestes daqueles outros tempos. As camaratas frias e hermeticamente arrumadas. As tábuas do chão sempre imaculadas de pó. Não havia poesia no ar. Apenas ordem e regra. Fora tudo isto que a tornara uma sonhadora incorrigível. Fora buscar onde não havia. Depois o crescer em solavancos, entre a imaginação e a realidade dera-lhe um certo ar ausente qual aureola que afastava mais as pessoas do que as atraía. Consequentemente foi quase uma solitária. Achavam-na estranha, depois era da” aldeia”. Não possuía a ligeireza vazia do discurso da cidade, por essa altura. As palavras eram pesadas. Habituara-se aos silêncios da casa e da sua gente. As palavras usadas eram as essenciais, não as supérfluas ou roladas. As falas eram sucintas porque os gorjeios eram dos pássaros. Nas aulas era das melhores. Criara o seu respeito através dos professores. Os livros eram os amigos desejados. Assim crescera a adolescência. Tornara-se alta e proporcionada. Era atraente quase bonita. Sobressaía das demais pelos olhos, pela estatura e proporção, pelo enfrentar e suster do olhar sempre capeado de brilho e altivez. Era uma figura. Em breve a escola ficou para trás, como era ambiciosa meteu-se a trabalhar nas férias, arranjou uns tostões e juntos com a bolsa foi para a cidade, para a Faculdade. Sempre fora o seu sonho. Sentia-se dona do mundo quando a pisou pela primeira vez. Sentia que o futuro era seu, apenas seu. Não sonhava acordada, vivia, sim desperta para o que a rodeava. Diziam dela, ser arrogante, presumida, ter manias. Talvez tivesse um pouco de tudo isso. Talvez. Mas tinham sido esses, os outros que a tinham forjado e temperado na pele que vestia agora. Cinco anos de faculdade voaram. Cinco anos de rápidos, cheios, vivos e diferentes. Tempo de transplante do canteiro do campo para o vaso da cidade. As raízes acostumaram-se embrulharam-se em redondo sobre si mesmas e a planta cresceu mais estilizada O húmus era o alcatrão que pisava quotidianamente. As chuvadas regavam-na sempre que se sentia exaurida de seca. E assim se conheceu mulher e amou. Também sentiu a raiva, oódio e a acalmia que sobrevém ao outro amanhã. Viveu o que a vida contém na sombra de cada escolha. Teve que recomeçar mas sempre sentiu que cada recomeço é sempre uma estação. Depois, depois…

Olha em redor e sente as vozes que a envolveram. As vozes ancestrais do seu mundo. Aquele é o seu mundo. Senta-se na berma do campo entre a urze e as giestas. O cheiro inebria-a quase a entontece.

……………….

Na masseira o pão gira num voltear de zás, trás, zás. Júlia Papas bate, enrola, rebola. Rebola, bate e enrola. Afogueiam-se-lhe as faces, o rosto mais o buço estão perlados de pequenas gotas de suor. O lenço que lhe cobre os cabelos vai descaindo lento e suave. Leva a mão à cabeça e puxa-o. Fica enfarinhado. Bem como a testa. Caem-lhe breves fios de cabelo que ela sopra e empurra com o antebraço. Nova batida, nova partida. Esparge uma névoa de farinha sobre a massa, enrola-a no redondo de si. Suspira, benze-a e tapa-a. Há que levedar. Murmura:“Deus te ponha a virtude. Que da minha parte fiz tudo o que pude.” O toque final para o bom pão. Puxa pelo avental que pendura na parede oposta ao forno. Tira o lenço, passa as mãos pela blusa que estica, mete os pés nas chinelas e deitando um último olhar, fecha a porta atrás de si.

Cá fora respira fundo. Sorve aquele ar cálido do entardecer quando o sol se despe da cambraia do dia e começa a vestir o veludo da noite. São quase horas da janta, tem que se apressar. Mas sabe-lhe tão bem estes momentos de paz. Gosta de estender as mãos ao ar como se pudesse agarrar um pouco de mundo. Cruzes. Está a ficar “tomada”. Abana a cabeça, benze-se, dá meia volta e entra na porta ao lado da que saiu.

-Ó Minha mãe, a senhora nunca mais vinha. Já pus o caldo ao lume.

-Filha fizeste bem. Cegaste as couves? O tê pai já chegou?

-Na, inda na pareceu, deve ‘tar lá baixo nos copos e nas cartas. Na sabe como ele é?!

- Cada um ca sua cruz! Ó Laide foste ao Zé do Rego comprar o pêxe de bacalhau que te mandei?

-Pois então na fui, minha mãe. A senhora já mo dissera. Tive que deixar mais uns trocados.

-Ó minha mãe amanhã vou à vila com a Alzira. Dava-me jeito comprar aquela fazenda, a mãe sabe…

-Pois filha, eu sei mas… tá apertado este mês.

Brusca, dá meia volta, e com aquele ar tão conhecido dos vizinhos, ergue o queixo, aperta os lábios, bate com os chinelos nos calcanhares afastando-se para o seu recanto. Entre dentes vai rezando “Bem, bem, logo vi”. Adelaide é caule silvestre, folhas macias e flor afagada. Gosta de levar a sua avante. Gosta de vénia. Gosta de si, mais do que, dos outros. Não é pérola fácil esta moça. Júlia Papas sabe-o. A sua Laide é flor bravia quase urtiga. Mas é o que tem. E mãe que é mãe gosta sempre as suas flores sejam elas cardos ou rosas. A sua Laide tão morena de si e tão jeitosa. Naquele corpo, tudo brilha, faz inveja às outras. Tem garbo. O que lhe falta em bondade e doçura excede em porte. Rodam-lhe as saias mais os olhares, alguns rapazes da aldeia. Nada lhe serve, a magana. Os anos vão passando. Já vai nos vinte e quatro. O Agostinho da Zeza que está pra Lisboa anda a catrapiscar-lhe a rapariga. Ela parece não ficar tão arredia. Mas vá lá saber-se. O rapaz é trabalhador. Começou nas minas, lá pelos treze, depois, um dia partiu para a capital. Dizem que comeu do pão que o diabo amassou mas que hoje já tem um trabalho certo. É mecânico. Dizem que é “vermelho”, que já andou pela França. Tem medo pela sua Laide. Mas não lhe vai dizer nada, senão tem um acesso de mau génio, já a conhece. É sua filha mas é um osso duro de roer. Pobre de quem a levar. Muito senhora do seu nariz, muito. Júlia sai pela porta e desce umas escaditas que a levam à taberna. Tem que fazer mais uns cobres para a fazenda da sua Laide. Ai, mãe é isso mesmo, um suspiro de dádiva

-Ó Ti Júlia bote prá í, … mais um copito pra aquecer.

Calada serve, o pano embebedado de roxo limpa as pingas do tinto. O ambiente é escuro, triste e tosco. Os rostos são máscaras de um dia a dia bronco de pobreza. A miséria percorre os corpos na fome humana, e na rudeza de espírito. São simples, dizem deles, porque mais não sabem, e não podem. As horas vão coando o entardecer. O escuro adensa-se na baiuca exígua de luz, as sombras vestem as pedras. Uma lâmpada desmaiada acende-se emprestando fantasmas rotos às mesas e bancos. Um a um, com o cair das sombras, os homens vão saindo. No balcão Júlia cruza os braços sobre o avental de riscado azul e vermelho e chama:

-Ó Luís, a tua Rosa já deve ter a janta a arrefecer. Ergue-te home, e vai-te. Já vão sendo mais que horas.

-Ó Ti Júlia mais um copito…

-Que nada, home. Vai pra casa…anda

Cambaleando ergue-se do banco. Deita os dedos roçados de sulcos negros à borda da mesa. Depois pé aqui, pé ali, pouco seguros, os passos numa dança cruzada de pernas frouxas. A língua molha os lábios ressequidos do tinto. A voz sai entaramelada e pastosa num tom saído mais do peito do que da cabeça. Deita a mão ao bolso das calças sujas e velhas onde os remendos se alargaram tomando toda a fazenda. Do bolso tira uma coroa. Fá-la rodar entre os dedos e lança-a sobre o balcão num rodopio de corrido dançado. Pega no boné e sai porta fora.

Júlia apanha a moeda, passa uma vez mais o pano embebedado, e lenta quase que arrastando as pernas fortes fecha a velha porta de madeira pintada de vermelho, já gasta. A Taberna está fechada. A noite vai descansar. Júlia abre a gaveta do balcão que fica mesmo no canto, por cima dos copos de cinco. Tira a caixa que está dentro. A caixa de folha-de-flandres riscada de rosas vermelhas e amarelas, já negra e ferrugenta, a caixa das moedas. Conta-as. São vinte escudos. Nada mau. Mentalmente pensa na fazenda da sua Laide.

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São oito horas da noite. Isabel afasta o microscópio. Roda a cabeça num semi-circulo de pescoço dorido. Fecha os olhos enquanto faz os movimentos. Parece-lhe estar suspensa. A sua dimensão mental ainda paira. Está exausta. Fecha o caderno dos últimos apontamentos. Os óculos são puxados pelo polegar e médio e poisados sobre a banca. Endireita-se, afasta a cadeira e levanta-se devagar. Perdeu uma vez mais a noção do tempo. A esta hora já os filhos e o marido estão a caminho da casa. O corpo abate-se no peso do cansaço do dia. A profissão consome-a, a família sujeita-a a um mundo que nem sempre lhe apetece, o marido é ferro peia de um sonho incompleto. Precisa de respirar. Tira as luvas que deita no lixo. O som do látex fá-la suspirar. A sua pele de quase todos os dias. Despe a bata. Dirige-se para o armário, tira o casaco e o saco Dirige-se à casa de banho. Lava as mãos, passa o pente pelos cabelos cor de cobre velho, o batôn dá um ar de vida ao rosto pálido. O blush mata a palidez do cansaço. Está pronta. Abre o saco e pega nas chaves. Sai e, fecha a porta atrás de si. Dá as boas noites ao encarregado de serviço. Já no parque, entra no carro, liga o motor, acende as luzes e depois de um longo suspiro e meio sorriso de desassossego, arranca.

(…)


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04 maio, 2008

O blog CValente do amigo cujo nome é igual ,colocou-me perante este desafio que aceitei, e vou passar deixando em aberto quem o quiser fazer.
São as regras assim:Colocar o link da pessoa que nos mimou.Colocar as regras no blog.Partilhar 6 coisas que não nos importamos de fazer.Mimar 6 pessoas para fazer o mesmo.Avisar essas pessoas, deixando um comentário nos seus blogs.O jogo pode e deve continuar. Assim façam o favor de lhe dar continuidade quem achar por bem.


Passear-algo que não me importa absolutamente fazer
Conversar com os amigos- outra coisa que me faz sentir bem.

Ler- Uma sobremesa que me delicia.
Estar dentro de Água, leia-se Mar- Dá-me vitalidade e rejuvenesce-me
Escrever- Esvazia-me e reconforta-me.
Amar os meus-Torna-me plena.

03 maio, 2008

Dia da Mãe
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"Apenas em torno de uma mulher que ama se pode formar uma família."

(Friedrich Schlegel)

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