Um Presente de Natal
Agachada em novelo triste de cor de inverno, Miquinhas, corta as couves verdes e viçosas. As mãos vermelhas de frio, gretadas de trabalho e quentes em afagos, deslizam pelo caule até se quedarem mesmo em baixo junto á terra gelada que veste as raízes. A tarde caiu já. O cinzento encolhido de luz envolve o ar, qual casaco puído que tapa mas não aconchega, a geada já se faz sentir nos ossos, nas faces e nos lábios, estremecendo as carnes no tiritar do movimento, para cima para baixo, no cortar das couves para a ceia. Foram estremecidas desde que plantadas lá pelos finais de Setembro, regadas, cuidadas, mondadas. Estão altivas, verdes e tronchudas, esperam pelo calor da panela que as tornará macias e ainda mais verdes, verdes não, mais brilhantes.
Miquinhas, levanta o rosto fresco de setenta e tal invernos, os cabelos cinzentos dançam no ar gélido do fim de tarde, um arabesco de anos e vida, os olhos negros, doces e líquidos olham ainda o amanhã com vigor, o corpo é robusto mas ágil, forte de seis maternidades, seco de trabalhos, lesto de gestos. As botas de borracha amortecem-lhe os passos, estufando-se na terra macia do rego das couves. A sua horta, a menina dos seus desvelos. Levanta o avental de riscado azul em viés, coloca as suas flores-couves no antebraço, e com a outra mão livre ajeita os cabelos que lhe enevoam a vista. Olha em redor, a terra já puxa o cobertor da noite. Em breve as estrelas darão a luz para os passos de quem procura o caminho Assobia o vento no gelar do ar, Miquinhas aperta mais o seu ramo de couves e segue em frente até à luz quente que bruxuleia da janela, laranja-amarela a dançar com chispas vermelhas que se desfazem no ar. É a sua lareira que crepita no ventre da cozinha, aquecendo-a. Não é a luz amarela parada do candeeiro, não, é o lume vivo, da lenha, que arde lá dentro. Estuga o passo, apetece-lhe o calor, que pressente, ao corpo gelado.
A alma dos que partiram senta-se à mesa do seu coração. Sente-os, hoje mais, ainda. A mesa que o serve transborda de saudade, de dor de ausência, de pena carpida mas escondida no sorriso de vida de cada dia. Há que aligeirar o sentir no crescer do tempo. Há que sorrir na dobra de cada ruga nascida, há que amar o resto do tempo esperado. Suspira, e uma lágrima redonda, translúcida de amor recordado, rola macia no rosto morno de mulher-saudade. Sem saber bem como, outra lágrima junta-se à primeira e depois outra e mais outra. Um chorar de recordar, um pranto manso de amor perdido no tempo. Logo hoje, o dia de todos os dias, o estremecer do seu sentir torna-a assim de frágil. Abana a cabeça de fios de prata, as lágrimas redondas de saudade e puras de sentir tornam-se pequenos sulcos brilhantes de luz. Miquinhas sente um arrepio percorrer-lhe o corpo. Coloca a capa sobre os ombros, entrelaça os dedos gastos em prece, gesto mais de oferenda do que de súplica e sorri para o alto, como se enviasse um beijo àqueles outros que também presidem à mesa do seu coração nesta ceia de amor sentido.
Ouve o buzinar dos carros, as portas que batem depois o tilintar do badalo, o anúncio da vida que vibra do outro lado. Ajeita um sorriso, esfrega os olhos, humedece os lábios, alonga os dedos pela prata da cabeça, cruza a capa sobre o peito e deita a mão à maçaneta da porta. Ali mesmo, a da cozinha.
-Mãe, Avó, Mãe….está boa! Há um ano…Dê-me outro beijo. Ai que quentinho!
-Entrem entrem. Filho! Isabel! Ah os meninos que grandes!
-Ó Vó, já tenho dez anos!
- A tua irmã, meu filho? Diz Miquinhas, dirigindo-se a João.
-Deve estar a chegar…olhe é ela…
-Amélia, minha filha! Já não te via, sei lá, até já perdi o conto. Tás tão magrinha. Vens sozinha, ainda?
-Oh Mãe! Tá boa? Sempre a mesma. Sim, estou sozinha. A mãe está na mesma.
Deitadas as saudações, os abraços, beijos e sorrisos, a família reúne-se à volta do lume. O frio enrola lá fora. A geada cai segura na noite estrelada. Cheira a doce de Amor-Natal. É uma massa de afectos da alma batidos no açúcar do coração. E eles são tão fofos por esta altura. Depois endurecem com o tempo, é o ar, o deixar rolar pelos pratos esquecidos do sem tempo do dia-a-dia. Mas nesta noite está tudo morno de ternura e fofo de alma. É noite de todas as noites, sempre o pensou e sentiu a Miquinhas. Já desde bem ganapinha que a Consoada era sentida de mágica e calor. O tempo correu, os invernos da vida arrefeceram, mas o calor da noite, deste dia, ficou sempre latente, tal como as brasas da lareira que são espevitadas para não apagarem. Estão já sentados à mesa vestida de linho alvo que esconde o carvalho grosso já roído dos tempos. As travessas deslizam por entre as mãos. O bacalhau senta-se nos pratos de braço dado com as batatas, as cebolinhas, as meias de ovos e as couves. Oh, as couves que brilham verdes, húmidas, apetitosas, quentes, escorridas e chamam pela vontade de cear. É noite de consoada, imemorável de tempo aquecido e semeado entre as vontades dos Homens na Terra e dos Anjos no Céu. Daqueles que partiram mas que sentam nos corações dos entes queridos por entre o calor e o mel vertido de uma breve noite de Boa Vontade. Somos assim, por isso somos tão humanos nos nossos dias de horas sentidas. Bruxuleia a chama do Amor na mesa de pratos cheios e faces felizes. Entre o bacalhau com couves macias, o arroz doce, aletria e filhós, o Amor vestiu o casaco e sentou-se à mesa bem quentinho e rosou as faces, deu brilho á luz dos olhos, doçura às palavras e sobretudo Boa Vontade.
Voa o tempo, nas asas da alegria, desta noite embalada pelo doce vinho rubro, doirado de lágrima espessa. Em breve chega a meia-noite, a hora mágica dos mais pequeninos e porque não, dos maiores também. Junto do presépio de musgo verde pontilhado de caruma e trevo, onde na sua cabana o menino Eterno olha o mundo que acorda para um novo Amanhã ora de Luz ora de Trevas, perfilam-se as prendas de laços voluptuosos e papéis garridos. João entrega a cada um o seu presente. Lembranças de mais uma noite. Miquinhas recebe o seu quinhão. Fica assim de queda e sem jeito
-Oh, tanta coisa!
- Ora Mãe é só um casaco que estava a precisar, mais umas pantufas para ter sempre os pés quentinhos.
- Obrigada, meus filhos, mas não precisava de nada. Estou tão feliz de estarem aqui. E leva a mão ao peito.
-Ó vó já viu?! Ganhei dois livros e um jogo, o que eu queria.
- Eu tenho as Princesas, olha, olha Vó, exclama a mais pequena.
Miquinhas levanta-se e caminha em direcção ao seu João e á sua Amélia, junta-os. Dá-lhes as mãos, depois solta-se ela. Dirige-se ao armário da cozinha. De lá tira uma travessa, branca, usada, mas perene. Cruza o espaço que os separa. Pára em frente, estende-lhes a travessa e diz-lhes:
- Meus filhos, o meu presente.
Ambos olham de forma interrogativa, mas ela diz-lhes simplesmente.
-É a minha travessa do Amor, está cheia, de Saudades do vosso Pai e da vossa irmã, de Doçuras da vida, de algumas Tristezas, de Solidão, de Desejos, de Boa Vontade, de muita Esperança, de Fé, de Sorrisos, de Sonhos, de Vida e de muito, muito Amor. É vossa. Guardem-na e passem-na aos vossos filhos. É tudo o que tenho. Desculpem.
Lá no alto, no azul estrelado, creio que uma estrela sorriu Feliz e entoou:
Noite Feliz!
.
.
19 comentários:
Mais um "quadro" que ofereces.
Cheio como a travessa do amor.
Gostei muitissimo, mesmo.
Grande descrição da ceia.(estive lá, à mesa, servi-me de tudo, Miquinhas deixou-me à vontade)
Um beijo no teu azul
Um texto belíssimo, repleto de espírito natalício e o amor a correr em cada palavra. bonito.
uma rabanada de afecto
uma fatia de bolo inglês doce
um prato de filhós em calda
o arroz doce
os fios de ovos
a festa
dos sentimentos
pagãos
.
um beijo de natal
mas
que natal?
.
o do acreditar
não
interessa em quê
nem
em
quem
.
mas
o acreditar
A VERDADE
O BELO
O AMANHÃ
hoje
um simples beijo
depois
veremos
LINDO
Como não tens e-mail no teu perfil, queria pedir-te para mandares uma mensagem para o meu... Na "volta do correio" explicarei... Beijo! (Se quiseres, não publiques esta mensagem)
obrigada:
pela história
e
pela doçura
/por dentrO do coração ~
beijO
E esse tudo,é tanto (...)
apertozinho no peito.pelo calor que senti.pela ternura :)
Beijinho (grande)
E é tanto...
Excelente como sempre.
Beijinho*
Quero mas não consigo comentar-te. Agora não. Tenho os olhos rasos de lágrimas e não sou de lágrima fácil. Tocas nos afectos e fica tudo estragado .
Tens uma travessa cheia de tudo , TU!
Gostei muito muito!Abraços!***
Factos da vida real, depois vem a consoada ,a despedida, faz-me lembrar o meu poema
Santo Natal cheio de paz e saude, com as sauda�es amigas
Bela canção de Natal! E uma excelente voz!
Um beijinho querida amiga
gabriela r martins deixou um novo comentário sobre a sua postagem " Um Presente de Natal Agachada em novelo tri...":
psiu!
estou de volta...
.
.
posso sentar.me
à tua mesa?
.
prometo não
fazer
barulho
deixo
uma
sacada
de
afectos
--------------------
psiu!!!!!!!!!!!!!!
Oliver Pickwick deixou um novo comentário sobre a sua postagem " Um Presente de Natal Agachada em novelo tri...":
"...A alma dos que partiram senta-se à mesa do seu coração..."
Uma pequena ode ao natal, repleta de doce melancolia, lembranças, lamentos, porém otimista, e com final feliz.
Parabéns, Mateso, um belo conto de Natal.
Abraços, e tenha uma ótima semana!
em boa hora segui o teu comentário que vi no vasant utsav...
o teu conto de Natal tocou-me muito até porque estou de férias aqui no nosso país e...pronto,tocou-me
não me envergonho de dizer que até correram umas lágrimas
FESTAS FELIZES
E que essa travessa de Amor seja entregue a toda a Humanidade. Afinal o que é realmente importante???????
Reencontro!! Ao menos nessa noite.
bj
Que bonito Mateso! E também já me rola uma lágrima. Lembrei-me da minha avó, da noite da consoada :)
Um beijinho e um Feliz Natal!
Mais uma das tuas encantadoras histórias, 'Mateso'!
Uma sensibilidade sempre muito bonita!
**Sereno Natal**
Neste Natal eu peço mais Fraternidade para todos aqueles Seres que vivem abaixo do dignidade humana... e são muitos, actualmente :(
Um beijo amistoso
Um Obrigada aa todos pelas vossas palavras.
Um beijinho
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