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Alguém que ama a vida e odeia as injustiças

12 maio, 2009

HERANÇA

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Herança

Parada no umbral, olha para dentro, vinda de fora. Está, assim, a meio do chegar antes de entrar. Há uma réstia de sol que lhe vem aquecer as pernas e o peito do pé esquerdo. O direito, embora mesmo ao lado, cobre-se já de penumbra. Olha para dentro, para aquela sala vazia cheia de memórias. Hesita. Entra ou sai? Recua instintivamente. Depois ergue o queixo respira fundo e dá um passo mergulhando na meia-luz do lugar.

Já no meio, roda sobre si perdida entre os mil objectos que a chamam. Dirige-se para o piano. Abre-lhe a tampa e, negligente passa os dedos longos pelas teclas. O som eleva-se díspar. Sacode-a. Franze a testa, o olhar poisa no quadro em frente. A avó perscruta-a do negro da tela. O azul claro do vestido de musselina amacia-lhe a expressão. Os olhos têm aquela característica única de verem sorrindo. A boca, cujas comissuras são pequenos semi-círculos, humedece uns lábios macios de polpa. Os cabelos, teimosos nos caracóis castanhos, emolduram-lhe o rosto malicioso onde o riso está subjacente ao olhar, nos lábios, na pele e nas rugas quase imperceptíveis do nariz e da testa.

Olha-a de novo. A avó sorri-lhe maliciosa e cúmplice.

Beatriz senta-se no cadeirão verde já desmaiado de tempo. Recorda a figura, muito vagamente, ou se calhar, apenas o que ouvira dela. Já nem sabe...Mas aquele sorriso, aquele sorriso prende-a. Pressente um segredo vencedor. Pestaneja aturdida. Por segundos pareceu-lhe que avó piscara o olho, sorrindo. Anda mesmo de todo. Ah, a imaginação está a deixá-la meia louca.

.....................

Maria Alice olha-se no toucador. Está perfeita. Um chic suficientemente simples. Balança o pé no sapato fechado. O vestido florido dá-lhe aquele ar primaveril que lhe faz realçar os olhos tão verdes. Ajeita os caracóis que dançam na cabeça castanha. Ata um lenço que cruza na nuca. Não vá o vento despenteá-la. Pega na malinha e desce para a rua. A tarde amorna-se na luz do dia. Uma brisa, daquelas em que o vento suspira entre dentes, varre o ar. Maria Alice, ou antes, Alicinha aspira-o e, num passo elegante, tal qual as suas saias rodadas, caminha pela rua fora no balancé do seu andar elástico.

Chega ao destino O portão está encostado, abre a cancela e entra com aquele à vontade de quem conhece o caminho. Sorriem-lhe os olhos e a boca. Adivinha e suspira.

Entra. Fecha a porta suavemente com um simples toque de encostar. Uma penumbra fresca aligeira-a. Um cheiro a madressilva inunda-lhe as narinas. Sem hesitações dirige-se ao quarto da janela grande. Aquele onde a luz jorra pura. Na cama, uma figura de cera penteada de branco esgueira-se por entre os lençóis. Inclina-se beijando-a.

-Boa tarde, Mãe, como vai hoje?

-Vou indo. Estou cansada. Estava á tua espera.

-Sim mãe? Então o que se passa? Está sente-se pior?

-Nada disso. Tudo na mesma. Quero dizer-te algo. Muito importante. Vem. Senta-te aqui ao pé de mim. A mão aberta poisa na borda da cama.

Alicinha senta-se espalhando a roda de flores no leito triste. Suavemente recoloca uma madeixa de névoa que fugiu para o rosto de cera, acaricia-lhe as faces, e devagar, devagarinho prende-lhe as mãos frias.

-Então diga lá. O que é assim tão importante?

-Maria Alice olha-me nos olhos. Eu sei que o que se passa entre ti e o Júlio. Eu sei o que vos une. Eu sei. Desprende uma mão, afastando uma hipotética negação. Não, minha filha não te julgo, não posso, não devo. Ele também é meu filho, tal como o Manuel, o teu marido. Não, não te escondas, minha filha. Eu compreendo-te. Não me olhes assim Maria Alice, eu sei o que estás a sentir. Sou uma velha mulher a quem o peso da mentira sempre vergou. Não soube rir, nem beber a vida, porque me sentia culpada, porque carreguei sempre comigo o peso do meu segredo. Tive medo, aniquilei-me por cobardia. Não te vou deixar fazer o mesmo. Não, não vou. Promete-me que não haverá aviltamento, nem tristeza. Não haverá culpa, nem negação. Promete-me que olharás em frente, e aceitarás a tua escolha seja ela qual for. Que rirás da vida, porque ela te fez amar duas vezes de forma única e distinta. Que vais amar muito e sempre o teu filho. Ele carregará o nome desta nossa velha família. Não importa se é filho de Júlio ou de Manuel. Ele é e será sempre o teu filho, o meu neto. O nosso menino. Não te escondas, não vale a pena. Sabes? Soube-o sempre. Como? Sim, foste discreta e ele também. O Manuel também. Não esperes a exprobação do teu marido. Manuel é um ser especial, mas acima de tudo é um orgulhoso. Sim, Alicinha ele também sabe. Sempre soube. Eu conheço o meu filho mais velho. Conheço-lhe a alma e ao Júlio conheço-lhe o coração. Os meus dois filhos, a minha vida, dois ramos de mim.

-Oh, eu...eu...

-Não, não digas nada, nada há para dizer. Eu sei, minha filha o que sentes. Divides-te entre o dever e o sentir. Sentir e dever raramente se casam. São antes divórcio antecipado. Uma espécie de sabão com perfume de sabonete mas sempre com espuma de sabão. Percebi assim que vos vi. Compreendi quando te vi sorrir e o Júlio gargalhar. Confirmei-o ao ver as sombras no olhar de Manuel. Depois a cabeça loira de Lourenço é também o espelho do meu eterno segredo. Confesso-te minha filha que eu amei perdidamente o irmão de teu sogro, tanto que Júlio é seu filho. Percebes? Oh sim, também eu. Parece um látego que corre na família. Parece. Não sei se o é, ou se apenas nós mulheres buscamos o infinito quando estamos presas pelo finito. Sei que vives dividida tal como eu vivi. Amei o transcendente e vivi o terreno. Sei tudo, conheço a diferença, e muito mais, porque sou tão mais velha do que tu. Tão mais, que me acabo. Por isso, Alicinha, peço-te não te acobardes. Ama, sorri e vive Não vale a pena ser infeliz. Não, não me olhes assim, não estou louca. A lucidez alaga-me. Leio o teu conflito, avalio a tua dualidade, peso o teu sorriso na metade de uma gargalhada por brotar. É a vergonha, o pudor de ti. O corpo e a alma anseiam por tudo o que a mente se compraz em punir. Sei que amas o Manuel daquele modo de todos os dias, que o mundo impõe. Sei que adoras o teu filho e sei que Júlio é, a tua essência de mulher. A nossa desdita é amar demais. O desejo da plenitude...

-Mãe...eu...

-Não fales, escuta... estou cansada, muito. Tanto, tanto. Mas promete-me, promete-me: Ama -os, ri, cresce e gargalha, trinca a vida, bebe-a, sorve-a, não deixes que ela corra ao teu lado como uma miragem. Rasga-a em trapos de desejo, ata-a em redor de ti, enlaça-a junto ao coração, mas não passes por ela sem a usares. Não finjas o que não sentes nem sintas o que não tens. Não acredites nas palavras porque elas são as máscaras do sentir. No fundo de cada olhar está a alma. Lê-a e depois decide. Agora vai. Deixa-me. Não digas nada. Vai...vai...

...............................

Beatriz sente de novo aquela sensação esquisita. Alguém que não vê mas que pressente Não é a sua imaginação. Abana a cabeça. Tão simples.

A avó. O látego. Ela.

Beatriz levanta-se. Agita a cabeça fulva e olhando de espírito aberto para a mulher que lhe sorri maliciosa por entre o azul da musselina e o verde do olhar, murmura:

-Obrigada avó. A tua herança chamar-se-á Maria Alice.




Brahms: Violin Sonata No. 3 in D Minor, Op. 108: Allegro - Mela Tenenbaum, Vn Richard Kapp, pf

12 comentários:

tiaselma.com disse...

Ilustração e narrativa de extrema sensibilidde. Coisa de mestres- pintor e escritora.
A vida não pode apenas passar. Há que vivê-la. Sábia avó...

Beijocas, Mateso.

maria inês disse...

excelente!

b&abraços

Teresa Durães disse...

palavras de uma avó que só adquirindo maturidade as consegue perceber e passar

Gasolina disse...

Fico presa a cada pormenor, cada toque, cada flor do vestido. Inquietam-me. Por vezes sinto-me um intrusa nos espaços deles, por lhes escutar as conversas, os segredos confessados.

Escrita sublime.

Um beijo Mateso

Laura Ferreira disse...

Sim, lindo.
Apetece vestir aquele vestido...

Anônimo disse...

Gostei desta herança.

D.

tchi disse...

Legado de afecto esplêndido.

Beijinhos.

Mar Arável disse...

Uma bela tela

de palavras em relevo

que captam e voam

ao som de Brahms

Parabens sempre

Gabriela Rocha Martins disse...

assim se tecem as malhas da vida admiravel mente contada numa clássica narrativa


o que ,aliás ,não admira



.
um beijo

as velas ardem ate ao fim disse...

quem tem uma vao tem tudo.

um bjo

Madalena disse...

Passei e ainda bem.

Antevi, por este texto a delícia de voltar a ler.

Os livros a ironizar na estante a empoirar atraíram-me mais. Hoje.

Obrigada. :)

Menina Marota disse...

De uma sensibilidade incrivel.

Lê-se a ternura para lá das palavras.

Beijinho