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Alguém que ama a vida e odeia as injustiças

03 novembro, 2008

Bailarino Professor

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Bailarino Professor



O tango que danço no palco da sala de aula faz-me bailarina desajeitada. O meu par, desprovido de carnes e olhar, é apenas sensação consciente, que me impele no requebro do vai e vem. O esforço repetido na perfeição da dança torna-me marioneta do gesto e da palavra que, talvez por deficiente condição acústica da sala, se perde nos galanteios ruidosos que não prazenteiros dos clientes-alunos. A minha sala de baile é real. Sentados nas cadeiras de pau, os alunos, perdão antes clientes, olham-me críticos porque detêm o poder, não da sabedoria, mas antes da força. E sob a harmonia intrínseca do contexto, lá vou eu esvoaçando no meu tango. Roda que roda, rodopia, flecte, cruza, baixa, levanta, o compasso estimula-me. Deito a cabeça para trás, deixo que o corpo se plasme à sabedoria, sorrio, agito-me no voltear. Eis que os acordes finais estão prestes. Afogueada, depois de tamanho esforço, de olhos brilhantes encaro a minha plateia esperando que da sintonia de encanto, um breve galanteio, sorriso ou assentimento se esboçasse. Pobre dançarina. Triste professora! Somente a escuridão de olhares me acolhe. Perpasso de novo a coreografia, mental e rapidamente. Não encontro falhas. Talvez, quem sabe, apenas um momento falaz quando me deixei envolver. Talvez o meu erro. Os rostos hirtos, ocos de sentimento olham de soslaio para a bailarina-professora. Uma chata quase pré-histórica. Devia estar em queda. Ridícula com tanto baile. Professores bailarinos só de hip-hop A música é outra. Sem compromissos. O ano está quase passado. E apenas começou. Eles sabem tudo. Conhecem a mentira vestida de andrajos de liberdade

A música arranha o ar. O ruído tomou o corpo do palco. Pego nos meus sapatos de tango, rodeio a saia vermelha, ajeito o cabelo desfeito mais o trabalho inglório, e, olhando a luz que se vai filtrando na janela despida, sinto a revolta dos anos, a revolta do achincalhar, a revolta que preside à capitulação de todos os dias!


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12 comentários:

Ana Paula Sena disse...

Um bailado que é sempre um tremendo desafio...!

Um beijinho :)

vida de vidro disse...

Terrível dança, essa. Será que não haverá um dia um olhar mais brilhante, umas mãos que aplaudem a dança? Só um que seja? **

GS disse...

... intenso olhar sobre as mudanças... e os gostos...

Um beijo

Nilson Barcelli disse...

Excelente texto.
Não sei se és mesmo professora de dança... de qualquer modo este texto pode ser uma metáfora, onde o "dar pérolas a porcos" é uma situação corrente para quem desempenha o seu papel com profissionalismo e dedicação.
A propósito do teu tango, lembrei-me de um poema que escrevi em tempos e que, de algum modo, poderia ser inserido neste contexto:

No teu olhar conquistado,
de violino sentido,
marco-te o tempo certo,
em vagas curtas de silêncios
e largos pedaços de mágoas.
No nosso corpo agitado,
domado por pianos malditos,
voamos na matriz da guitarra
ao som de um amor livre na prisão,
carrasco e escravo que nos mata
a cada passo pisado
na dança arrebatada da paixão.
Visito o teu sorriso guardado,
que me abraça,
enroscado da ternura descoberta.
Viajas no teu feitio
estreito de viola,
de olhar abandonado no cais,
onde fundeio o meu instinto
à espera de ti, matador,
num morrer por ti despido.

Mergulhamos, neste bailado insano,
até ao fundo dos mares.
Dançamos um tango assassino
até sufocar os sentidos,
até que estas chamas nos matem
em tempestades de vida.

Beijinhos.

Anônimo disse...

É um dos meus maiores receios contemporâneos, a queda no facilitismo oposto, aquele dedicado só aos filhos dos membros de certas corporações que sempre tiveram a vida facilitada. Para reaccionária, já basta a dança que nos obrigam a dançar...

claras manhãs disse...

Gostei muito do texto.
Não sinto que estas gerações mais novas sejam diferentes da minha.
Eu também sabia tudo!
Só mais tarde se aprende que não sabemos nada.


beijinho

as velas ardem ate ao fim disse...

Danças??

um bjo

Unknown disse...

Mateso, nossa profissão é assim, com duas trilhas sonoras que se revezam: ora é uma bateria de escola de samba, tamanha a vibração que temos em exercê-la, ora é o mais dramático dos tangos de Gardel.
Porém... capitular jamais! Sigamos bailando, querida.

Beijos e saiba que não a vi dançando, mas amei.
Selma Barcellos

Gasolina disse...

Li-te.
Este foi muito especial para mim, como bem deves saber.
Voltarei para fazer a minha apreciação, como me mereces.

Mas desta vez a minha missão é apenas para te dizer que a Árvore das Palavras te distingue como Novembro 2008.

Um beijo Mateso Azul.
Obrigado por te conhecer.

addiragram disse...

Não sei, mas tento na imperfeição!

Uma escrita que questiona...sempre.

Gasolina disse...

Eu disse que voltava...

Não sintas.
Aproveita essa revolta para te "veres" ao lado desses, hirtos e secos, a seguir a mancha que a tua saia vermelha espalha pela sala, os desenhos que os teus sapatos riscam no sobrado.
Não te achas bonita? Sentida?
Então?
Aplaude-te.

Eu estou de pé e peço encore.

Um beijo, abraçado.

PS.: agora compõe o cabelo. Bailarinas como nós nunca perdemos a compostura!

Gabriela Rocha Martins disse...

bis ,bis!

apenas um reparo .ou melhor ... não te esqueças ,minha querida ,que o tango NUNCA se dança sozinha !

gostei ,mas reservo.me outros comentários em outro palco .ok?


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um enorme beijo