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Alguém que ama a vida e odeia as injustiças

08 novembro, 2007

Posted by Picasa

Os novos Imigrantes. (I)

Vêem de longe, figuras dobradas, olhares esquivos, corpos quebrados de almas perdidas. São de longe das terras do frio e do gelo. Chamam-se Yuri, Ludmila., Boris, Stevelana, Khanda…

Khanda Utsanova é figurinha gentil e apelativa na sua diferença. Eslava por nascimento mas mongol na origem e nos traços que lhe vestem a pele. Grácil no mover, ainda titubeante no expressar, de sorriso no olhar oblíquo e nos lábios cheios. O rosto é espalmado mas aberto. Chegou, vai para cinco anos, veio do frio mesmo perto de Minsk, hoje, vive numa cidadezinha deste país pequenino, quase canteiro, na imensidão da sua Rússia natal. Mas Khanda é menina a crescer na terra onde o sol se põe. Educada, culta, muito pertinente nas apreciações que faz, destaca-se dos demais, não só pelo seu facies, mas sobretudo, pelo seu saber e postura. Não possui os atavios e marcas das suas colegas nem outros sinónimos, é simples por natureza. A mãe, figura de porcelana chinesa exprime-se de forma encantadora pelo hiato de alguns sons mas que no todo perfazem um discurso muito europeu. Tornou-se cabeleireira. Primeiro foi, empregada de limpeza, depois ajudante até que finalmente se balançou no aluguer do andar, e com ajudas conseguiu montar o seu salão de cabeleireiro. Demorou a angariar a clientela, mas ultrapassada a situação, é hoje um lugar de referência na pasmaceira provinciana da cidadezinha. Porque isto de ter a cabeça lavada e penteada por uma russa que sabe de violino, fala três idiomas e serve chá, não é para todos, e até dá um certo status. A vaidade comezinha, tão nacional, transpira sempre pelos poros, sejam eles quais forem. A senhora Utsanova sempre gentil, lava, sorri, esclarece e conta episódios da sua terra branca, onde as dificuldades do quotidiano são relegadas para as traseiras da memória, e apenas o jardim de entrada é recordado. Coisas do coração! Afinal as gentes não são assim tão diferentes.

Ora, num destes dias, Khanda adolescente de primícias intelectuais incomuns, decidiu juntamente com a sua melhor amiga, uma Margarida bem portuguesa, e com a ajuda do seu pai, violinista feito trolha, dar aulas de música aos amigos tão excluídos do saber. Lá conseguiram a cedência de uma sala nas instalações velhas e bolorentas de um edifício corroído de osteoporose granítica. Os sábados à tarde passaram a ter sabores de mazurcas, valsas, minuetes, um sem fim de notas em crescendo, ora agudas, graves ora estridentes ou doces. Os alunos, aliás as alunas, porque nestas coisas o feminino é mais aberto, não chegavam à meia dúzia, as”piquenas-da-mãmã” cujo faz-de-conta -social atraca sempre no cais da importância anafada, as desejosas, mais as que-vieram-só-ver-se-era-giro, e lá se foram sentando. Mas a notícia tem asas, e em breve, o número de candidatos a músicos aumentou e muito, por diga-se, é de bom-tom tocar violino ou então ter um instrumento na sala, em repouso, dá um ar tão, tão de “família”. As pequenas, agora de violino em punho, digo antes, ao ombro, percorriam as cordas do instrumento em harpejos de dó. O Sr. Yuri, como era chamado, o apelido caíra com o cimento dos baldes, penava a bom penar nas tardes de sábado, logo a seguir á catequese, para incutir sentido e amor musical a este bando de gente jovem cujos ouvidos pareciam funis de folha-de-flandres de pernas para o ar. Os sons pareciam esvair-se por outros orifícios que não os ouvidos. Pobre Yuri!

Persistentemente, com a paciência de quem tem que vencer noutras terras, o Sr. Yuri conseguiu, não só criar um bom quarteto de violinos, como ainda despertar o interesse musical à comunidade, que rapidamente se apercebeu dos benefícios, que daí lhe poderia advir., porque incultos poderemos ser, mas parvos, é que não! As autoridades, em tempo de campanha eleitoral, acharam por bem, dar-lhe uma mãozinha a jeito de promessa cumprida, o que afinal é bem raro neste jardim, e providenciaram as instalações condignas bem como alguns meios. Pasmem as almas do burgo, nas noites estreladas, quando as flores se recolhem deixando no ar morno, o aroma doce de boas noites, irrompem então pelo ar pizzicatos e vibratos quase primorosos que amaciam a rudeza da paisagem envolvente. A ignorância musical sente-se apaziguada pela generosidade das gentes da terra. A família Utsanova, de imigrantes de leste passou a ser considerada gente boa e culta, muito trabalhadora e que se adaptou facilmente aos usos portugueses, comendo já alheiras e rancho, deixando para lá as comidas esquisitas deles.

Sentados na saleta singela de móveis mas rica em recordações, os Utsanova como qualquer outra família desta aldeia global, conversam sobre o seu dia-a-dia. Yuri, agora estucador de tectos, obra delicada que só mão de artista sabe executar, anseia por se dedicar á sua música, que lhe brota livre e solta da alma. As aulas de violino acalmam-no um pouco do espatulado diário, mas não o suficiente.Latente está sempre o vibratto que lhe percorre o corpo, e eleva o espírito. Pensa em pauta mas vive nas cordas que a vida lhe teceu. As cordas repuxadas de uma vida sem som, onde fome tantas vezes foi eco de adágios tocados, onde o cinzento da pobreza deslizava no arco plangente do seu violino, onde o futuro era melodia interrompida em sol na pauta da vida. Lentamente, a bruma do sonho materializou-se em desejo premente de melhor dias. Irina, sua mulher, sempre calada e activa deu-lhe a força. Mais do que nunca fizeram sacrifícios, os possíveis e os impossíveis, dias e dias a chá quente e pequenos blinis. Khanda apercebia-se, a sua menina, mas diziam-lhe que estavam a economizar para a sua educação. A pequena aparentemente aceitava. A verdade era outra, precisavam de uma boa quantia para poderem “sair” pois que as passagens não eram nada baratas e, os”grupos” pediam muito. Ele, Yuri, tinha conhecidos em Portugal. Diziam que era uma boa terra, os portugueses boa gente, acolhedores e amigáveis, com as suas manias, mas no fundo ainda eram os menos sectários da Europa. De grão em grão forraram minimamente a carteira. Primeiro veio ele. Chegou via Frankfurt, num dia de sol. Sentiu-se quente ao descer do avião. Uma espécie de calor envolvente que o descansou dos receios guardados no peito. As boas vindas chegaram assim feitas de luz e azul. Yuri respirou fundo e tomou alento. Mais tarde encontrou os amigos que o levaram para a obra. O Encarregado aceitou-o e ele aceitou o trabalho, uma empatia feita necessidade. O primeiro salário foi uma vitória! Sentiu-se um herói, nunca tivera tanto! O ombro feriu-se, as mãos engrossaram e criam calos. A macieza e suavidade dos dedos perderam-se durante meses. Quanto mais duros e calosos, mais baldes eram carregados. As horas não corriam correndo na mira de tempo gasto. Tinha que conseguir!

O Outono, o Inverno e a Primavera passaram, chegou o verão e a família também, uma alegria! Alugara um apartamento, para ele, uma mansão, quase. Dois quartos e uma sala! Irina e Khanda maravilharam-se De maravilha em maravilha a família foi criando raízinhas aqui e ali, e ao mesmo tempo mostrando o seu caule eslavo erecto e firme. A língua, barreira primeira, foi ultrapassada com dicionários, colegas, trabalho, clientes e escola. Saber falar é integrar-se. Conviver é ser conhecido. Mostrar cultura é dar presentes a quem só tem as caixas. E eles encheram-nas, de encanto e cor. Artistas ou apenas sobreviventes? O que importa? Afinal vieram e vieram por bem.

Volvidos cinco anos, afinal já não são objecto de interesse. A Khanda é uma prometedora adolescente, uma excepcional aluna, uma boa violinista, campeã de ténis de mesa e amiga das “piquenas-da-mãmã”. O salão é frequentado por clientes assíduas, endinheiradas e socialmente consideradas. O que era uma novidade tornou-se rotineiro. Ir arranjar o cabelo ao Chez Irina faz parte do quotidiano das senhoras de proa do burgo.” Tem mãos de seda e dá um toque ao cabelo como se faz lá fora. E depois tem bom gosto, sabe falar e o chá? O chá é divino., sempre servido naquele aparelho, o samovar. Um toque fabuloso. Ainda bem que vieram para cá, gente assim é sempre um regalo.”

O Sr. Yuri, já não continua na dança do estuque. Presentemente tem emprego nos serviços municipais no pelouro da cultura. A novel casa da música tem as suas directrizes. Nos entremeios, sentado na sua sala já bem mais recheada vai compondo obras, que um dia quem sabe, serão executadas.

Mas tudo estaria bem se acaso, o velho espírito tão nacional, não guilhotinasse tão de vez em quando. Murmura-se já à boca cheia que o Sr. Yuri, está na Câmara porque uma cliente da mulher, a Sra. Dra. Fulana tal, cujo marido é o não sei que mais, essa digníssima senhora, meteu a cunha, e o marido arranjou-lhe o emprego e vejam só, que o filho do compadre Altino que até estudou no Conservatório, anda aos caídos por Lisboa, e vêem estes fulanos de fora, com uma mão à frente e outra a atrás, e zás, ficam com tudo.

Não há pachorra, não há, não!

13 comentários:

Unknown disse...

Pois, lamentavelmente não há pachorra para a mente piquinina e sifilitica de tantos tugas... Não me envergonho de ser Tuga, mas o sangue dos reis e homens de bem e honra diluiu-se no status quo da inveja e materialismo, ninguém acredita mais no valor, no património humano de cada um. Julgam os outros por si mesmo, não há pachorra. MESMOOOOOOOOOOOO!

gabriela rocha martins disse...

mais uma narrativa forte tão à maneira ... e tão portuguesmente sendo ... fabuloso!


um beijo ,Miga!
( e faz favor de não levar tanto tempo sem publicar ... a menina habitua.nos mal ,o que quer? - e não meta a outra ,a Dona Lurdes ,ao barulho ).ehehehehhe

Shelyak disse...

São coisas que acontecem quando um povo é de baixa cultura...apenas se preocupam em falar dos outros, numa tentativa vã de expurgar as suas limitações, invejas, whatever...
Triste mesmo...
Um relato de ficar agarrado...
Um beijinho que te deixo!

Mar Arável disse...

li com o gosto de sempre o seu texto e lembrei-me de recomendar
opuma.blogspot.com.

bjs

Ana Ramon disse...

Mas a história continua a ser bonita, mesmo com toda essa má-língua. E essa família deve sentir-se muito feliz por ter conseguido singrar ainda que muito devagarinho.
Também aprendi que essa mesquinhez de que falas, não é característica de um povo, mas sim de alguns (ou muitos) elementos invejosos e que infelizmente existem espalhados por todo o mundo. Dizer mal ou destruir é muito fácil.
Como te disse no início, uma história muito bonita.
Um beijinho grande

Ana Pallito disse...

Detalhas preciosamente!


Grata

Andreia disse...

De uma ironia deliciosa. Não há mesmo paciência para a mediocridade deste país... Enfim. Belo texto!

Beijinho!

un dress disse...

linda história, mateso!

de como a diversidade pode ser

tão rica tão expansiva

tão bonita de se sentir!! :)


/mesmo e apesar dos calos de passagem e do venenozinho final...

abraÇo.beijO

jawaa disse...

Encontrei-te na Vida de Vidro e em boa hora segui o link.
Pelo que pude hoje ler, ver e ouvir, apenas... parabéns!
Esta narrativa é excelente no conteúdo e na forma.
Voltarei com mais tempo.

Abssinto disse...

Enterneci-me com o Sr. Yuri. Depois, quanto à "faladeira" bem típica deste país, ela é sempre expectável. Estas pessoas trabalham, fazem os seus descontos, merecem o melhor.

bj

Gi disse...

Mateso
Existe uma grande diferença neste imigrantes e nos nossos emigrantes de há 40/50 e 60 anos atrás. Se estes são alvo de certas invejas pela cultura também os nossos já foram invejados peloq ue conseguiram à força do trabalho. Estou a lembrar-me dos problemas na Áfica do Sul, no Brasil, na Venezuela entre outros. Não pdoemos circunscrever a inveja e o diz que disse a um país, um povo. Infelizmente ou o mal já estaria erradicado... isto é mal geral e nem é preciso vir de fora, basta ser o vizinho do lado ...
Quanto à tua história que já me deliciei a lê-la há uns 4 dias e que desavergonhadamente só agora comento. Adorei. Dá sempre a sensação que fazes um levantamento exaustivo sobre a matéria antes de escreveres um conto, nada é deixado ao acaso, não te poupas as mais pequenos detalhes. EStudates antopologia ou sociologia? Se não ... parece. Sou repetitiva eu sei mas a nota que te dou é sempre a máxima.

Um beijo. Melhor, muitos, para dar para as minhas ausências

Mateso disse...

Estão entre nós... e já são parte de nós.
Grata pela vossa leitura e comentários
Beijo

Anônimo disse...

isto sera por acaso em chaves?