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Alguém que ama a vida e odeia as injustiças

28 setembro, 2007

Posted by Picasa

A M É L I A

Amélia é figura e pessoa de artifícios. Brinca com os dedos esguios de unhas vivas no sussurrar das palavras escolhidas. A boca cheia, húmida e gulosa espraia-se num sorriso de dentes alvos. O tom da pele é mate condizente com o negrume da cabeleira longa e tratada Figura de ondulados requebrados e lisuras quentes, ela deixa no trejeito balanceado da anca, o adivinhar de promessas quentes e suadas. Passa lenta e bamboleada. Sobeja-lhe carne na tira de pano, as nádegas duras não estremecem no meneio. Deixa atrás de si o cheiro de fêmea em mil promessas sonhadas. Pé aqui, passo acolá ,e ei-la em frente do carro. Deita um olhar enviesado para trás e sorri. Sabe que os olhares a seguiram. Devagar, devagarinho, baixa o tronco, as pernas, mantém-nas hirtas ,realçando-as. Os seios num semi decúbito espreitam no decote redondo. São frutos maduros de carne acetinada que estremecem em cada suspiro de encanto.

Amélia de proficiente geóloga, no dia-a-dia torna-se em gloriosa acompanhante, ao fim-de-semana. Duas etapas que lhe preenchem as semanas, e lhe vão forrando a carteira bem como os hábitos de vida. Tudo começara há já tanto tempo, parecia-lhe.

Devia andar pelos seus dezassete anos e já era um traço como a chamavam. Tudo nela vibrava desde o cabelo ondulante aos pés esguios e morenos. O corpo, o seu cartão-de-visita, que a mãe queria tapado gritava-lhe de ânsia no côncavo dos dias. Tudo começara de uma forma simples e linear. Um convite para uma festa, um convite para um brinde, um semi-cerrar de olhar, uma mão quente na nádega morna descaindo ligeira para a púbis e…. Todo o resto girou em volta. Depois nem sequer houve lágrimas, antes o desejo incontrolável de mais e mais. Nunca tivera dons especiais mas naquela arte tudo lhe vinha em jeito, era só colocar o desejo do corpo nas mãos e nos lábios, roçar e ondular, envolver, e sentir, sentir tudo. Tornara-se verdadeira artista do amor, sabia pintá-lo nas pregas do desejo em tons de paixão. Era procurada, invejada e adorada

O seu jeito não colidira nem impedira que o curso fosse iniciado e concluído. Deste ao emprego e á carreira foi um salto. A mente e a carne numa dicotomia de géneros. A sua arte subsidiou-lhe o curso, pagou-lhe a integração em meios que nunca sonhara, e fez dela uma referência de bem vestir. Longe do olhar inquisitivo materno e da pequenez do meio que afogava, Amélia lançou-se na profissão mais velha do mundo, mas cheia de classe. A sedução passou a ser mais do que nunca a arte, por excelência. Depois veio o saber estar, pisar, falar, sorrir, comer. Tudo nela é perfeito. Hoje entra no carro com o triunfo da vitória na boca húmida. Aqui é uma desconhecida, no seu meio, uma senhora. Todo o fim-de-semana, ela, Amélia, apanha o avião, o comboio ou simplesmente senta-se ao volante do seu carro percorre milhares de quilómetros, aloja-se em belíssimos hotéis, pousadas, mansões e vive as vidas de sonho que um dia imaginou. Os companheiros, breves condutores de momentos e molas reais dos seus caprichos, sejam eles carnais ou materiais, não contam na sua jogada de vida. São meros epitáfios. Acompanha-os a festas, recepções. Sorri, passeia a sua beleza e guarda a sua inteligência. Ri sobre um chabblis ou sorve delicadamente um cointreau. Mordisca graciosamente um aperitivo. Sussurra amiúde ao ouvido do seu par que invariavelmente assente e lhe sorri do fundo dos olhos. Quando o tempo se arrasta em conversas demasiado pesadas, tem a graça de torcer um salto, entornar ligeiramente o ouro de algum balão ou simplesmente deixar cair algo. Aí é voluptuosa no baixar e no erguer. Rapidamente o silêncio se impõe, e lesta a acompanhante sorri, domina o braço, o olhar, e a vontade do seu par. Depois é levá-lo sendo conduzida para o lugar dos quereres. Aí, qual rainha domina o seu súbdito. A máscara deixa de ser gentil para se tornar ávida e gulosa, feita natureza em labareda.

Um destes dias, numa daquelas vernissages tão em voga e tão decrépitas em si, enquanto acompanhava uma digníssima figura da nossa praça, da arte da escrita, e passeava o seu olhar em redor na tentativa de minorar o aborrecimento, premissa da função, reparou naquela sombra que descrevia em si força, e uma certo ar blasé. Rapidamente, como predadora que é, sentiu a necessidade de se apoderar dela, e pé ante pé, de sorriso e olhar doce, tanto a olhou que, um belo quarentão maduro lhe devolveu o sorriso num olhar bem azul. Com segurança de quem conhece o género, aproximou-se, cumprimentou, trocou as trivialidades habituais e, estabeleceu de imediato a empatia necessária. Aquele fim-de-semana foi excessivo em tempo. O escritor adulado, de sorriso aberto era afinal, um ser quase abjecto, tratando-a como se fora algo descartável. Tivera que cumprir o contracto e nada mais. No dia seguinte já liberta da névoa pesada da noite, e tendo sempre no fundo da cabeça o sorriso azul tratou de utilizar todos os artifícios e artefactos ao seu alcance para o localizar. O nome do seu dono era Fernando. Fernando Cerveira e pronto, telefonou. O encontro foi marcado algures, num restaurantezinho simples e saboroso. O que comeu, bebeu ou falou não recorda, apenas uma sensação de calma e tranquilidade, um compartilhar que não sentira nunca. Não precisou de se utilizar Conversaram sobre tudo e nada, acharam pontos em comum, riram dos nadas e falaram dos muitos. Os encontros sucederam-se durante a semana. Lenitivos da sua vida. Era feliz. Não tinha, pela primeira vez, vontade de partir em aventura. Mas o seu amigo, estava ocupadíssimo ao fim de semana.

-Amélia, os fins-de-semana são sagrados para mim. Não nos podemos encontrar. Estou ocupadíssimo.

-A família talvez? pergunta Amélia

-Ah, ah, ah, minha querida, não de modo nenhum. O eterno feminino. Não apenas a minha profissão…

Aceitou, havia os outros dias da semana, e eles eram tão preenchidos pelos dois. Fernando começara por subir até sua casa, depois a jantar, conversar, e finalmente a amarem-se.

Tudo acontecera naturalmente no leito do seu quarto. Entregavam-se calmamente, sorriam no jogo leve de sedução, respiravam em uníssono na entrega e riam felizes na consumação. Era a descoberta. Diferente, uma doçura viva e não uma labareda atiçada em cavacos de desejo. Seriamente começou a descuidar os seus fins-de-semana, a entreter-se com coisas diferentes da sua pessoa, a prestar atenção às pequenas coisas em seu redor. O mundo era mais próximo.

É domingo. Está em casa e abre a janela, respira o ar que a brisa do mar espalha Enche os pulmões e pensa no que vai fazer.

-É isso, diz para os seus botões, vou dar um passeio pelo velho Porto. Uma visitinha cultural. Já faz tempo.

Veste-se ligeira de forma solta mas coquete. Desce e entra no carro. Conduz alegre cantarolando livremente. Brinca-lhe nos lábios o sorriso da vida e nos gestos o calor do encantamento.

Já no adro da Sé percorre-o lentamente, e olhando em redor de pálpebras semi-cerradas abrange as colinas debruçadas no rio ziguezagueante que se perde na boca do mar. As cores alargam-se nas margens crepitando de vidas. É a sua cidade. É bela, velha e sábia.

Dá meia volta e vê a velha Sé. Imutável no tempo, sólida na amargura e doce no amparo. Hesita. Não é lá muito de igrejas…é só uma visita. Entra. A penumbra varre-lhe o corpo e aflora-lhe o espírito. Está quase vazia. Percorre a ala lateral e lentamente ajoelha-se. Não sabe porque o faz. Ergue o olhar e fixa-o na imagem de Cristo crucificado Entabula um solilóquio que a recolhe profundamente. De tão absorta não ouve o os passos, nem o rangido do banco. Sente a mão no ombro…a voz pressente-a no seu interior. Ergue a cabeça e olha sem ver. Uma cegueira não de sol mas de negação. Olha uma vez e outra… e outra. A seu lado uma sotaina, um colarinho branco e um olhar azul, dizem-lhe que a igreja vai ser encerrada.

-Tu?! Tu?!

-Oh, Amélia!

Salta e corre para o exterior. Atrás de si vem a batina… a batina!

-Oh meu Deus! És mesmo padre? És padre?

-Sim.

- Como…pudeste…?

-Pude, fiz, e sou aquilo que vês. O meu voo começa e acaba aqui. O corpo leva-me mas o espírito traz-me. Perdoa-me, se puderes.

-É só…? Nada mais?

-Sim!

Amélia baixa-se lentamente como se fora cair. Mas apenas se acocora. Abana vivamente a cabeça, os cabelos espalham-se finos e revoltos no rosto. Tapam-lhe as narinas quase impedindo-a de respirar O olhar é negro, dorido, partido e sofrido. Desapareceu o brilho e há a luz do ódio. Os punhos cerrados golpeiam o muro…Não grita, porque o som desapareceu perdido no peito latejante.

Já de pé corre para o carro. Conduz rápida e arfante. Não chora, não soluça, não treme. O seu voo começara, as asas estavam abertas e ela planava livre, livre… no azul do seu espírito…

24 setembro, 2007

Carmen Ballet





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L'amour est un oiseau rebelle
que nul ne peut apprivoiser,
et c'est bien en vain qu'on l'appelle,
s'il lui convient de refuser!
Rien n'y fait, menace ou prière,
l'un parle bien, l'autre se tait;
et c'est l'autre que je préfère,
il n'a rien dit, mais il me plaît.

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Carmen (Acte Premier)


BALLET FLAMENCO DE MADRID

As seis cordas

Federico Garcia Lorca


A guitarra
faz soluçar os sonhos.
O soluço das almas
perdidas
foge por sua boca
redonda.
E, assim como a tarântula,
tece uma grande estrela
para caçar suspiros
que bóiam no seu negro
abismo de madeira.

19 setembro, 2007

Sonho



Fiz um conto para me embalar


Fiz com as fadas uma aliança.
A deste conto nunca contar.
Mas como ainda sou criança
Quero a mim própria embalar.




Estavam na praia três donzelas
Como três laranjas num pomar.
Nenhuma sabia para qual delas
Cantava o príncipe do mar.




Rosas fatais, as três donzelas
A mão de espuma as desfolhou.
Nenhum soube para qual delas
O príncipe do mar cantou.


Natália Correia