O Fio dos Dias
Tomás, homem dos dias, balança-se
na cadeira do café do bairro. É ali que mata o tempo. É ali que joga ás cartas
com os parceiros dos anos. Tomás não é velho, mas é idoso.
Hoje senta-se mais curvado do que
nos outros dias. Não que os ossos tenham chiado mais ou que a cadeira esteja
mal assente. Hoje é um dia, mais um do que ontem, é certo, e, menos outro do
que o de amanhã, em que está, sem estar ,estando em si, todavia com vontade de
sair.É daqueles dias em que está irritado, não é bem isso, é algo que vem das
entranhas até à cabeça e da cabeça ao corpo. Não sabe definir. Nunca soube. Tem
dias assim. Poucos, é verdade, mas tem. E, hoje é um deles. Há impaciência até
nos pés titubeantes que descansam no chão de mosaico. Está inquieto desde que
se levantou bem cedo. Os gestos denunciam-no. Quando pegou na caneca de leite,
entornou-a, quando pôs a manteiga no papo seco, esta saiu dos bordos do pão. A
sua Agostinha olhou-o, com aquele olhar dos anos, meneando a cabeça. Calou-se.
Só olhou. Nesta altura da vida as palavras não existem porque se gastaram,
somente o olhar fala. Saiu para a rua resmungando entredentes contra tudo.
Aliviou-se. Mas não descansou.
Caminhou lento até ao café.
Vazio. Preguiçosos, os amigos. O Júlio, o dono, olhou-o por entre as pálpebras semicerradas
deu-lhe os bons dias. Mais nada. Adivinhou trovoada. Conhecia-o. Tomás
sentou-se na cadeira que hoje não estava direita tal como o seu espirito e
pegou no jornal que por ali descansava. Folheou-o mais por hábito do que por
curiosidade. As noticias eram iguais todos os dias. A prosa repetia-se mo vai e
vem dos verbos e adjetivos. Os substantivos eram comuns. Tudo era rotina.
Igual. Como os dias.
Tomás pigarreou não para aliviar
a garganta, mas antes o espirito. Para se sentir vivo. E os amigos que não
chegavam. Queria implicar. Tinha vontade disso. Queria ser ouvido. A idade
dera-lhe este atributo. Ter a sua opinião, muita opinião. Passara a vida a
cumprir. As regras. As horas, Os dias. O tempo. Tudo organizado no fio da
ordem. Agora não tinha fio, não tinha dias, nem horas, nem tempo. Eram dias
vazios, quase vazios. Eram cheios pelas palavras do café, pelo silêncio de
Agostinha, pelo sono do sofá e o matraquear da televisão. A rotina dos velhos.
Precisava de falar, de se fazer
ouvir e ser ouvido. Precisava de que alguém o contradissesse para se sentir
vivo. A sua inquietação era afina,l sentir. Sentir. O tempo também lhe estava a levar
o sentir. Aquela necessidade de vida, que via fugir. A premissa de pensar,
falar, rir e chorar que o tempo lhe estava a roubar. Tomás sabia-o lá bem no
fundo, por isso estava irritadiço. Queria rebentar, mas não tinha razão para
isso. Ser velho, é isso mesmo querer viver,ainda e sempre.
Tomás suspirou. Estava a rezingar
consigo. A sua raiava diluía-se à medida que o entendimento o percorria.
Olhou por entre o vidro da porta
e viu João, o velho amigo, virar a esquina.
O tempo estava a chegar.
MT Soares