O quebra-nozes
Na dança feérica do Natal, o
quebra-nozes saltita de noz em noz. Entala, quebra, esmaga. Crac-crac-crac. As
nozes rolam nas suas conchas de madeira e o quebra-noz dança elegante na sua
posição de bailarino natalício.
Tal como no conto e no ballet o
nosso quebra-noz também se transforma. Não é soldado impoluto no seu uniforme, nem
bailarino de um qualquer palco, o nosso quebra-noz é gente, é homem. Homem
quebra-noz, assim se chamou.
E assim, era uma vez…
Leonardo de cabelo cinzento e
barba mais branca do que tinta, pernas ainda ágeis e olhar miúdo quebra os
passos nos degraus da ladeira. O crac-crac dos seus passos dilui-se no ar
porque o vento passa correndo na ladeira de degraus gastos. Leonardo ajeita a
gola do casaco e de rosto fechado continua imperturbável o crac dos seus passos.
Esmaga, não as nozes, mas os pensamentos. Aperta-os, crac, esmaga-os, crac,
quebra-os, crac. Assim quase entontecido, pisa o último degrau. Está quase.
Atira a cabeça para trás bebendo a neblina da noite. Saciou o calor da
boca. Arrefeceu um pouco.
Com a força das tenazes toca a
campainha, estridente, dolente, leve. Espera. O ouvido apura-se ao tac-tac de
saltos que deslizam breve no mosaico interior. Um rosto leve que espreita e olha deixando-o entrar. Balbucia algo
que a mulher percebe.
Deixa-o ali e de novo o tac-tac
dos saltos que se afastam…
Espera de olhos semicerrados.
Luta com os demónios imaginários. Vê-se no rosto, na tez, na pele retesada da
fronte e do pescoço. As veias grossas espiam. As tenazes da vontade apertam-no.
Leva a mão ao cabelo num gesto maquinal de despenteio ou de libertação?
Leonardo quebra-nozes espera.
Espera por algo que perdeu ou quebrou. Não se lembra bem. Não se lembra como
foi. Não se lembra onde a sua noz de vida ficou vazia. Sabe que ele como
quebra-noz a partiu, sabe-o.
Volta a repuxar o pensamento,
volta a apertar os olhos, volta que não volta. Deita a mão à porta. Tem medo.
Medo e raiva. Não sabe como nem porquê.
A raiva, a ira, perdem-no.
Arrepende-se., mas o orgulho é uma das suas tenazes, a outra, a outra tenaz é a
loucura. Um a loucura de sabores doces e acres vestida de arlequim humano. Leonardo
pára. Não vai fugir. Não vai desistir. Não vai, desta vez, não.
-Filho…
A voz. Fica tenso. As memórias
rebentam. Luta, consigo, com o tempo, com a raiva, com as palavras, com o medo
e as lágrimas. Tudo em segundos. Tudo no tempo em que a noz da sua vida rebola por
entre os braços de um pai.
E foi assim
que Leonardo quebra-dançou a este
pas-de-deux de amor.!
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