As vidas do outro lado
Vem enrolado em espiral
de frio, o vento, que empurra estrada abaixo. Vem depressa como se fora apanhar
o autocarro das oito. Sopra embalando-se no seu silvar.
Na calçada gasta de
passos, mais de vento, chuva, terra e anos, Júlia estuga o passo. Tem que se
apressar. Já devia ter pegado às oito. Vai entrar com a casa já despida de
gente. A patroa não gosta quando ela se atrasa. Depois fica tudo de pernas para
o ar. As meninas deixam tudo numa desordem provocada de mimo, a senhora, não; o
senhor, muito menos. Só as meninas, sempre as meninas. Dois pivetes de
adolescentes estragados. Despem-se e vestem-se, vestem-se e despem-se. Lavam-se
e sujam-se, sujam-se e lavam-se. A Júlia apanha, a Júlia lava, a Júlia passa,
pendura, ajeita e suspira.
Mais um dia de colheita
de roupas, de ajeitar e ordenar. Mais um dia de corre-corre. Mais um dia de
trabalho. Tudo desliza maquinalmente. A ordem, o direito e o avesso da casa
são-lhe tão familiares que nem precisa de pensar. É só repetir o que fez ontem,
anteontem, antes, e antes, sempre, desde o primeiro dia. Depois tudo foi igual.
Até o ordenado. Tudo igual. Só aos anos se somaram as dores, que apareceram ora
nas pernas, ora nas costas, e por aí fora. Mas isso não conta, o que conta é
que daqui a pouco já ganhou o seu dia, o pão que mete na mesa. Também tem
adolescentes. Diferentes. Não são melhores nem são piores. Só não jogam o
vestir e o despir de roupas atiradas ao chão, ou enroladas nos armários ou
atiradas no cesto da roupa suja. A abundância não enfeita os guarda-fatos lá de
casa. O tropel dos rapazes e raparigas fica-se pelas escadas ou pela rua. O
frigorífico não desatina num abrir e fechar enquanto as prateleiras se esvaziam
num pestanejar súbito das bocas. Tudo é pequenino na sua casa. Até o tamanho da
sua gente. Aqui, cresceu-se, espigou-se, esticou-se. Lá devagarinho
pespontou-se.
As suas meninas e o seu
homem não correm, antes, circulam com a lentidão do pulsar escasso das suas
vidas. Não há fome em casa. Há apenas pouquidão Não há corre-corre há vagar.
Tudo é feito à medida dos bolsos de cada um. Uns são cheios, outros menos
cheios, outros ainda pouco cheios e há-os vazios. Os seus são de acordo com os
dias do mês, se bem que nunca encheram. Coisas deste lado.
Ela é uma simples empregada
de todos os dias. Cabe-lhe arrumar e endireitar parte das vidas corridas dos
patrões. O seu papel não é principal, porém secundário também não é. Fica
naquela dependência que os patrões têm para que possam avançar. Precisam que
lhes poupem o tempo para as tarefas ditas superiores. Mas o que seria da vida,
se não houvesse as Júlias e os Manéis para desempenhar o que os outros não
sabem ou não querem fazer?- Júlia orgulha-se do seu papel. Ela é o lado, que
não se vê mas que é preciso.
Bate a porta e fecha-a.
desce os degraus do jardim. Na rua, o vento enrola-a de novo, embala-a. Puxa o
casaquito contra o peito e num breve esgar de sorriso murmura: “Vida, mesmo sem
porteira. Maldito vento!”
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