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17 março, 2016

Mulheres Com Rosto

VIII
1891
Maria da Nazareth atravessa apressada o pátio de casa. São quase dez horas. Já deveria estar em Runa à quase uma hora. A mãe tinha-a chamado para lhe dar conta dos problemas que estavam a atravessar. A doença das vinhas, o dinheiro mal investido, as despesas quase loucas de João, enfim um todo de desvario que já vinha detrás há muito tempo começava agora a reflectir-se. Chamara-a apesar de ela ser a terceira, pese ser rapariga, pese ter dois varões, pese um sem fim de coisas. Zinha saiu preocupada. A mãe, sempre a tivera como uma mulher objectiva de inteligência viva, agora parecia claudicar perante as dificuldades que se adivinhavam. Na verdade S. Gião era quase um sorvedouro de dinheiro e os tempos naquele ano de 1891 não se avizinhavam nada fáceis.
A morte prematura do pai onze anos antes mergulhara-os numa sonolência que durou quase três anos. O desgosto da mãe fora algo que a marcara. De uma mulher bela e viva tornara-se numa sombra. Mais uma naquele casarão dorido. Os seus cabelos cor de avelã tornaram-se cinzentos, o rosto murchou, os olhos perderam o viço que a tornava tão apelativa num esplendor que causava inveja. Zinha cresceu na tristeza e amadurecendo muito depressa.
Os irmãos eram fonte de mágoa para a mãe. Somente José que ela estragava, pois que apesar das dificuldades que a casa atravessava, nunca lhe negava nada. João vivia em Lisboa numa ociosidade feita ou dita política, gastando, gastando ao mesmo tempo que se enfarinhava nos meandros republicanos. Caetano era a terra, até fisicamente. Um tronco de quase dois metros robusto, erecto. Não era elegante o seu irmão. Era isso mesmo forte, fiável e sisudo. Herdara do avô aquele amor pelo campo. Saía de manhã e regressava ao anoitecer. Era de poucas falas, e quando tinha que dizer algo, as frases eram monossilábicas. Acompanhava os homens no campo, corria as propriedades de ponta a ponta, se necessário duas a três vezes ao dia. Caetano e o cavalo faziam um só. Quando algum moço se aleijava era ele que de imediato tomava o seu lugar na jorna. Caetano fazia tudo isto, no entanto, quando se tinha que sentar e discutir com a mãe ou com o Julião feitor as medidas a tomar ou outras resoluções, ficava quedo e mudo, coçava na cabeça e simplesmente acenava ou emitia sons de discordância. Um simplório assim o via Zinha. José nos seus dezasseis anos deixava já antever o futuro homem. Era extraordinariamente bem-parecido. Sempre fora, aliás ele e Maria de Santo António eram os filhos mais bonitos. A irmã nos seus onze anos revelava já a o esplendor da beleza futura. José preocupava-a. Detestava trabalhar, fazer fosse o que fosse. Era pura e simplesmente indolente. Quem o olhasse naquele seu sorriso sedutor, quem o olhasse mesmo por detrás das pupilas via uma bargantaria que não era própria da sua idade. No entanto, ela estava lá, ainda inconsciente em semi-dormência. Mas o futuro não lhe seria risonho. Tinha a certeza. José era o ponto fraco da mãe. Enquanto com João travava uma guerra dura de palavras, as quais eclodiam permanentemente em silêncios e partidas, José, pelo contrário, fizesse o que fizesse, era sempre desculpado. Zinha não percebia, a não ser pelo facto de, ele ser o mais parecido com o pai, que por sinal se não fora o retrato que estava em cima da mesinha no quarto da mãe, já lhe esquecia as feições. Zinha lembrava-se dele como alguém que vivia junto deles sem partilhar-se. O pai era a sombra da mãe quando juntos, despejavam uma luz que os envolvia. Apenas aos dois. De fora ficava o resto, os filhos e os outros. Depois, assim de repente partiu. Tinha apenas quarenta e cinco anos indo para os quarenta e seis. Não chegou a fazê-los. A mãe ficou louca. Perdeu a razão. Perdeu a vida. Lentamente regressou, mas nunca mais foi a mesma. Eles, os filhos cresceram. Cada um a seu modo, cada um por si. Aprenderam a ser silenciosos, a pensar mais do que falar, aprenderam sobretudo a partirem de si e dali.
Zinha escuta o sino na parede da velha ermida enquanto entra no cabriolet. As terças já são calendas. Dali a Runa é um pulo ao Real Hospital dos Veteranosque a par do hospital das Misericórdias lhe ocupa os dias. Entre o vai e vem dos meses, Zinha sente que a vida escorre depressa. Uma roda em movimento. Sair da casa das sombras é um imperativo. Estar entre e com os inválidos, as crianças e os desvalidos é sentir calor humano, é sentir, que apesar de dorida, a vida ainda existe. A sua enorme fé torna-a piedosa e humana.
Zinha é uma jovem cujo porte a coloca imediatamente no meio de onde proveio. No mundo entre vinhedos que é o seu, seria definida como de excelente cepa. E era verdade. Embora vista a bata branca que lhe tapa o vestido ou a saia de bom corte e segundo os ditames da moda, há nela uma altivez doce é certo, porém distingue-a dos demais. Os olhos vestidos ora de verde ora de cinzento de acordo com os dias e os sentidos estão quase sempre húmidos O olhar é a janela do seu corpo. Nele transvazam as emoções que sentem, misto de determinação e fé.
Quando afaga as chagas, limpa a carne, liga, endireita, lava, cobre e sorri, a sua determinação em minorar o sofrimento está ali, mas a fé também. As suas mãos são a matéria dos seus actos, o amor que elas espalham é a transmutação do afecto que a cinge. Mas todo este caudal ergue-se da invulgaridade do seu carácter. Uma mulher doce mas fortíssima. Um pilar de alabastro.
A mãe não compreende lá muito bem aquela paixão pelos doentes e pelos feridos, pelos desprotegidos, pela miséria humana venha ela de onde vier, não compreende como uma jovem, sua filha, nascida em S. Gião de Entre as Vinhas, e ainda por cima tão atraente gasta o seu tempo entre os enfermos, os pobres e os excluídos.
Para Zinha,a mãe é um símbolo que ela respeita mas jamais adoptará. Um mundo que se está a esboroar. Zinha é jovem mas olha em redor, lê e sente no corpo tanto como no espírito que algo vai mudar. Que uma nova era vai começar. A mãe queixa-se frequentemente que o mundo está de pernas para o ar. Que outrora tudo era diferente, que havia respeito, que hoje os criados não obedecem, que é preciso mandar fazer as coisas mil vezes, que são calaceiros, que querem ser iguais. Ora isso é impensável. Onde é que já se viu uma coisa assim. Ela Maria, filha de fidalgos ser igual à Berta, Piedade, Julião ou outros que tais. Impensável!
Os anos correm velozes. O século está quase a acabar. Um novo virá. Neste advento existe muita esperança, muita coisa por mudar. Zinha vai cruzá-lo com a determinação capeada do amor que a agasalha.
O cabriolet chega a Runa. A alameda que a conduz ao belo edifício está ali mesmo defronte dos seus olhos. Ladeiam-na laranjeiras em flor cujo aroma a envolve à medida que as passa. A manhã brilha sob o sol. Lá dentro a luz despiu-se entre corpos 
Mutilados, rostos vazios, olhares opacos e almas doridas. Homens, a quem a falta de uma perna, de um olho, de um braço contam menos do que a falta do amanhã. Eles sabem que logo a seguir à porta, no primeiro degrau de descida, o porvir escorregou estatelando-os para sempre no limbo da invalidez.
Há um, nestes casos, há sempre um que chama mais por nós, que nos toca, que nos ensombra. Também para Zinha há um. Chama-se Pedro, anda nos seus sessenta e muitos anos. Tem uma bela cabeça. A neve cobriu-o antes de o inverno ter chegado. É branca e brilhante. Pedro é um velhote empertigado na falta da sua perna esquerda. Uma muleta de pau, substitui-a, contudo ele até saltaria para o mundo apenas com essa imperfeição, pequena segundo ele, mas a sua maior dor, são os olhos que se esvaziaram. Não vê o mundo nem as gentes. Ouve e pressente. Conhece os passos de todos, reconhece-os no cheiro que o inunda e lê-os nos sons que percebe. Benedito não tem família. Está só. Não foi escolha, foi destino Fugiu de casa ou da miséria quase criança. Entrou no mundo dos homens pela porta detrás da razão. Conheceu a guerra antes de ter conhecido o amor. Perdeu-se de si muito antes de ter perdido a perna e os olhos. Depois foi no escuro dos anos, entre as paredes do asilo que aprendeu a ser pessoa. Quando em 1829 com apenas dez anos fugiu de casa e correu atrás do rufar dos tambores, não lhe passava pela cabeça que cinco anos depois seria um estropiado. Era ainda uma criança. Aos catorze anos já uma baioneta lhe vazara os olhos e a pólvora lhe arrancara uma perna. Como é que um garoto de catorze anos lida com cenários de morte?Não lida, simplesmente deixa correr, encolhendo-se aqui, abrigando-se ali, tremendo agora, vomitando depois, e no fim do dia esperando sempre pelo caldo. A razão? A causa? O fascínio da batalha que sempre entrapou a imaginação de feitos. Depois, por outro lado, a barriga vazia, os pés rotos de sapatos, o ranho seco no rosto, os andrajos que mal lhe cobriam o esqueleto magro tinham-no empurrado. Correra atrás dos tambores em passos trémulos de criança. Engodado, vira-se vestido e na barriga um caldo aguado mas quente. Sonhos de um presente sem seiva de futuro.
Cruzou veredas, ribeiros, caiu, levantou-se. Enlameou-se, rasgou-se mas o caldo aparecia. Havia barulho, havia riso, havia uma espécie de afecto dos outros. O Cabo protegia-o. Chamava-o para perto de si. Ia-lhe dando uns bocados de peixe seco e uns naquitos de pão. E ele sorria feliz. Tanto! Nunca tivera tanto! Passava-lhe a mão na cabeça que recomeçava a cobrir-se de negro. Pedro acreditava que era feliz. Tanta afeição!
Mais tarde em Maio a dezasseis, ao despontar do dia quando a bruma ainda se espreguiçava, os canhões troaram. Ele não participara no ataque de cavalaria. Era bom de ver. Mas aqueles bravos galoparam para a morte. Hoje pensa que o sabiam. Santa Cita, a aldeia fora arrasada e na charneca o fumo era tanto que parecia que ardia é então que o general Guedes de Oliveira mandou avançar com a cavalaria comandada pelo oficial francês Puisseux, um homem alto e de rosto traçado por uma cicatriz que lhe rouba qualquer sorriso aberto. A vitória parecia então pender para os miguelistas, tanto que os Lanceiros da Rainha tinham já retrocedido, no entanto, depois de tanta refrega e de terem atingido o alto da colina, vêem mesmo a seus pés, lá em baixo, formados em linha, os soldados do coronel Vicente Queirós. As salvas disparadas numa sucessão asfixiante feriram mortalmente os camaradas e sobretudo Pussieux A partir dali, os liberais tomam o comando da refrega. Cabe-lhes capitular. A charneca cheira a morte, ele não viu o resto porque foi por ali que tudo ficou negro. Um balázio entrara-lhe na cabeça, outra rebentara-lhe uma perna. O cheiro do sangue quente, a molhar-lhe os sentidos foi a sua última memória daquele dia. O resto foi o silêncio.
Acordou num dia sem data nem cor. Antes houve espaços com vozes, houve espaços de movimentos, no entanto a memória é fugaz, algo muito, muito longe. Registos breves sem sulcos. Quando despertou do mundo da morte, não viu contudo ouviu. Não estava na refrega. Não estava na charneca. Havia outros sons. Percebeu que estava noutro mundo.
As vozes eram mais macias e as mãos que o tocavam possuíam leveza mitigando-lhe o ardor que lhe roía o corpo vindo da perna. Era um o calor imenso molhando-o de suor,roubava-lhe a respiração e as dores faziam-na latejar de tal forma que a sentia enorme e pesada. E ele sem saber que já fora amputada. Tentou chegar-lhe, tentou mas não conseguiu. Depois a escuridão, sempre a escuridão. Deitou as mãos aos olhos. Uma enorme venda tapava-os. Tentou puxar o tecido. Alguém impediu, agarrando-lhe firme mas suavemente as mãos. Falaram-lhe, muito, embalado voltou a dormir.
Durante doze anos penou aqui e ali. Foi um tempo amargo. Tão penoso, que nem sequer, gosta de os recordar. Mas chegou o ano de 1846. Rememora quando aqui chegou
Ouvem-se as vésperas. Zinha arruma as últimas ligaduras, ajeita os cabelos, alisa o avental branco, lança a capa pelos ombros e faz a sua última ronda. Tudo parece em paz. Não teve tempo sequer de trocar umas palavras com Pedro. Foi um dia particularmente cansativo. A doença, quando chega, ataca tudo e todos. E eles são tão frágeis.
Percorre o corredor que a conduz ao edifício central, à igreja. Ali encontrará Pedro pela certa. Embora seja muito piedosa e crente, este lugar causa-lhe um arrepio. É austero. Tem demasiado mármore para seu gosto. Apenas a cúpula que se abre sobre a nave devolve-lhe a luz do sol, inundando os nichos de mármore a entornando um pouco de cor ao lugar. Pedro, apesar de cego é o sacristão. Vive entre os altares, os santos, cálices e missas. É um bom homem. Doce e todavia firme como um rochedo. Sabe-lhe bem aquele interlúdio de meias palavras, meios silêncios. Um pedaço de alimento para o espírito.
Entra na igreja, genuflecte rapidamente benzendo-se e olha em redor à procura do sacristão. Não o vê.
-Deve estar pela sacristia - pensa enquanto se encaminha para a esquerda do altar.
Empurra a pesada porta de carvalho que se encontrava entreaberta. Sentado numa cadeira Pedro polia um cálice com toda a perseverança e amor que as suas mãos gastas conseguem.
-A menina Nazareth! Já sentia a sua falta!
- Pedro estás aí na escuridão, porque é que não abres a portada e deixas entrar o resto do sol?
-E que mais faz? Com luz ou sem luz é sempre igual…. Ai menina, ai menina, até se esquece.
-Claro que não me esqueço, claro que não é a mesma coisa, o sol aquece Pedro e isto está um gelo.
-Nem senti menina, tenho tanto que fazer.
-Pois, pois. Amanhã vais dar uma volta comigo pela mata. Precisas de apanhar um pouco de ar e temos que por as nossa converseta em dia. Há algumas coisas que te quero contar. Hoje já é muito tarde e tenho que regressar a S. Gião. Mas amanhã já sabes.
-Está bem menina Nazareth. Eu nem sei como seriam os meus dias sem a menina.
-Ora deixa-te disso.
Zinha afaga o rosto do ancião e aperta-lhe a mão com carinho. Depois dá meia volta e dirige-se para a velha porta.
-Até amanhã meu amigo.
- Até amanhã menina.
Já cá fora desce apressada os degraus, senta-se no cabriolet, segura nas rédeas pondo-se em movimento. Um acto que gosta de fazer. Ter nas mãos as rédeas, conduzir suavemente o seu próprio destino é algo que a apazigua.

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