VIII
Maria da Nazareth
atravessa apressada o pátio de casa. São quase dez horas. Já deveria estar em
Runa à quase uma hora. A mãe tinha-a chamado para lhe dar conta dos problemas
que estavam a atravessar. A doença das vinhas, o dinheiro mal investido, as
despesas quase loucas de João, enfim um todo de desvario que já vinha detrás há
muito tempo começava agora a reflectir-se. Chamara-a apesar de ela ser a
terceira, pese ser rapariga, pese ter dois varões, pese um sem fim de coisas.
Zinha saiu preocupada. A mãe, sempre a tivera como uma mulher objectiva de
inteligência viva, agora parecia claudicar perante as dificuldades que se
adivinhavam. Na verdade S. Gião era quase um sorvedouro de dinheiro e os tempos
naquele ano de 1891 não se avizinhavam nada fáceis.
A morte prematura do pai
onze anos antes mergulhara-os numa sonolência que durou quase três anos. O
desgosto da mãe fora algo que a marcara. De uma mulher bela e viva tornara-se
numa sombra. Mais uma naquele casarão dorido. Os seus cabelos cor de avelã
tornaram-se cinzentos, o rosto murchou, os olhos perderam o viço que a tornava
tão apelativa num esplendor que causava inveja. Zinha cresceu na tristeza e
amadurecendo muito depressa.
Os irmãos eram fonte de
mágoa para a mãe. Somente José que ela estragava, pois que apesar das dificuldades
que a casa atravessava, nunca lhe negava nada. João vivia em Lisboa numa
ociosidade feita ou dita política, gastando, gastando ao mesmo tempo que se
enfarinhava nos meandros republicanos. Caetano era a terra, até fisicamente. Um
tronco de quase dois metros robusto, erecto. Não era elegante o seu irmão. Era
isso mesmo forte, fiável e sisudo. Herdara do avô aquele amor pelo campo. Saía
de manhã e regressava ao anoitecer. Era de poucas falas, e quando tinha que
dizer algo, as frases eram monossilábicas. Acompanhava os homens no campo,
corria as propriedades de ponta a ponta, se necessário duas a três vezes ao
dia. Caetano e o cavalo faziam um só. Quando algum moço se aleijava era ele que
de imediato tomava o seu lugar na jorna. Caetano fazia tudo isto, no entanto,
quando se tinha que sentar e discutir com a mãe ou com o Julião feitor as
medidas a tomar ou outras resoluções, ficava quedo e mudo, coçava na cabeça e
simplesmente acenava ou emitia sons de discordância. Um simplório assim o via
Zinha. José nos seus dezasseis anos deixava já antever o futuro homem. Era
extraordinariamente bem-parecido. Sempre fora, aliás ele e Maria de Santo
António eram os filhos mais bonitos. A irmã nos seus onze anos revelava já a o
esplendor da beleza futura. José preocupava-a. Detestava trabalhar, fazer fosse
o que fosse. Era pura e simplesmente indolente. Quem o olhasse naquele seu
sorriso sedutor, quem o olhasse mesmo por detrás das pupilas via uma
bargantaria que não era própria da sua idade. No entanto, ela estava lá, ainda
inconsciente em semi-dormência. Mas o futuro não lhe seria risonho. Tinha a
certeza. José era o ponto fraco da mãe. Enquanto com João travava uma guerra
dura de palavras, as quais eclodiam permanentemente em silêncios e partidas,
José, pelo contrário, fizesse o que fizesse, era sempre desculpado. Zinha não
percebia, a não ser pelo facto de, ele ser o mais parecido com o pai, que por
sinal se não fora o retrato que estava em cima da mesinha no quarto da mãe, já
lhe esquecia as feições. Zinha lembrava-se dele como alguém que vivia junto
deles sem partilhar-se. O pai era a sombra da mãe quando juntos, despejavam uma
luz que os envolvia. Apenas aos dois. De fora ficava o resto, os filhos e os
outros. Depois, assim de repente partiu. Tinha apenas quarenta e cinco anos
indo para os quarenta e seis. Não chegou a fazê-los. A mãe ficou louca. Perdeu
a razão. Perdeu a vida. Lentamente regressou, mas nunca mais foi a mesma. Eles,
os filhos cresceram. Cada um a seu modo, cada um por si. Aprenderam a ser
silenciosos, a pensar mais do que falar, aprenderam sobretudo a partirem de si
e dali.
Zinha escuta o sino na
parede da velha ermida enquanto entra no cabriolet. As terças já são calendas.
Dali a Runa é um pulo ao Real Hospital dos Veteranosque a par do hospital das
Misericórdias lhe ocupa os dias. Entre o vai e vem dos meses, Zinha sente que a
vida escorre depressa. Uma roda em movimento. Sair da casa das sombras é um
imperativo. Estar entre e com os inválidos, as crianças e os desvalidos é
sentir calor humano, é sentir, que apesar de dorida, a vida ainda existe. A sua
enorme fé torna-a piedosa e humana.
Zinha é uma jovem cujo
porte a coloca imediatamente no meio de onde proveio. No mundo entre vinhedos
que é o seu, seria definida como de excelente cepa. E era verdade. Embora vista
a bata branca que lhe tapa o vestido ou a saia de bom corte e segundo os
ditames da moda, há nela uma altivez doce é certo, porém distingue-a dos
demais. Os olhos vestidos ora de verde ora de cinzento de acordo com os dias e
os sentidos estão quase sempre húmidos O olhar é a janela do seu corpo. Nele
transvazam as emoções que sentem, misto de determinação e fé.
Quando afaga as chagas,
limpa a carne, liga, endireita, lava, cobre e sorri, a sua determinação em
minorar o sofrimento está ali, mas a fé também. As suas mãos são a matéria dos
seus actos, o amor que elas espalham é a transmutação do afecto que a cinge.
Mas todo este caudal ergue-se da invulgaridade do seu carácter. Uma mulher doce
mas fortíssima. Um pilar de alabastro.
A mãe não compreende lá
muito bem aquela paixão pelos doentes e pelos feridos, pelos desprotegidos,
pela miséria humana venha ela de onde vier, não compreende como uma jovem, sua
filha, nascida em S. Gião de Entre as Vinhas, e ainda por cima tão atraente
gasta o seu tempo entre os enfermos, os pobres e os excluídos.
Para Zinha,a mãe é um
símbolo que ela respeita mas jamais adoptará. Um mundo que se está a esboroar.
Zinha é jovem mas olha em redor, lê e sente no corpo tanto como no espírito que
algo vai mudar. Que uma nova era vai começar. A mãe queixa-se frequentemente
que o mundo está de pernas para o ar. Que outrora tudo era diferente, que havia
respeito, que hoje os criados não obedecem, que é preciso mandar fazer as
coisas mil vezes, que são calaceiros, que querem ser iguais. Ora isso é
impensável. Onde é que já se viu uma coisa assim. Ela Maria, filha de fidalgos
ser igual à Berta, Piedade, Julião ou outros que tais. Impensável!
Os anos correm velozes.
O século está quase a acabar. Um novo virá. Neste advento existe muita
esperança, muita coisa por mudar. Zinha vai cruzá-lo com a determinação capeada
do amor que a agasalha.
O cabriolet chega a
Runa. A alameda que a conduz ao belo edifício está ali mesmo defronte dos seus
olhos. Ladeiam-na laranjeiras em flor cujo aroma a envolve à medida que as
passa. A manhã brilha sob o sol. Lá dentro a luz despiu-se entre corpos
Mutilados, rostos
vazios, olhares opacos e almas doridas. Homens, a quem a falta de uma perna, de
um olho, de um braço contam menos do que a falta do amanhã. Eles sabem que logo
a seguir à porta, no primeiro degrau de descida, o porvir escorregou
estatelando-os para sempre no limbo da invalidez.
Há um, nestes casos, há
sempre um que chama mais por nós, que nos toca, que nos ensombra. Também para
Zinha há um. Chama-se Pedro, anda nos seus sessenta e muitos anos. Tem uma bela
cabeça. A neve cobriu-o antes de o inverno ter chegado. É branca e brilhante. Pedro
é um velhote empertigado na falta da sua perna esquerda. Uma muleta de pau,
substitui-a, contudo ele até saltaria para o mundo apenas com essa imperfeição,
pequena segundo ele, mas a sua maior dor, são os olhos que se esvaziaram. Não
vê o mundo nem as gentes. Ouve e pressente. Conhece os passos de todos,
reconhece-os no cheiro que o inunda e lê-os nos sons que percebe. Benedito não
tem família. Está só. Não foi escolha, foi destino Fugiu de casa ou da miséria
quase criança. Entrou no mundo dos homens pela porta detrás da razão. Conheceu
a guerra antes de ter conhecido o amor. Perdeu-se de si muito antes de ter
perdido a perna e os olhos. Depois foi no escuro dos anos, entre as paredes do
asilo que aprendeu a ser pessoa. Quando em 1829 com apenas dez anos fugiu de
casa e correu atrás do rufar dos tambores, não lhe passava pela cabeça que cinco
anos depois seria um estropiado. Era ainda uma criança. Aos catorze anos já uma
baioneta lhe vazara os olhos e a pólvora lhe arrancara uma perna. Como é que um
garoto de catorze anos lida com cenários de morte?Não lida, simplesmente deixa
correr, encolhendo-se aqui, abrigando-se ali, tremendo agora, vomitando depois,
e no fim do dia esperando sempre pelo caldo. A razão? A causa? O fascínio da
batalha que sempre entrapou a imaginação de feitos. Depois, por outro lado, a
barriga vazia, os pés rotos de sapatos, o ranho seco no rosto, os andrajos que
mal lhe cobriam o esqueleto magro tinham-no empurrado. Correra atrás dos
tambores em passos trémulos de criança. Engodado, vira-se vestido e na barriga
um caldo aguado mas quente. Sonhos de um presente sem seiva de futuro.
Cruzou veredas,
ribeiros, caiu, levantou-se. Enlameou-se, rasgou-se mas o caldo aparecia. Havia
barulho, havia riso, havia uma espécie de afecto dos outros. O Cabo protegia-o.
Chamava-o para perto de si. Ia-lhe dando uns bocados de peixe seco e uns naquitos
de pão. E ele sorria feliz. Tanto! Nunca tivera tanto! Passava-lhe a mão na
cabeça que recomeçava a cobrir-se de negro. Pedro acreditava que era feliz.
Tanta afeição!
Mais tarde em Maio a
dezasseis, ao despontar do dia quando a bruma ainda se espreguiçava, os canhões
troaram. Ele não participara no ataque de cavalaria. Era bom de ver. Mas
aqueles bravos galoparam para a morte. Hoje pensa que o sabiam. Santa Cita, a
aldeia fora arrasada e na charneca o fumo era tanto que parecia que ardia é
então que o general Guedes de Oliveira mandou avançar com a cavalaria comandada
pelo oficial francês Puisseux, um homem alto e de rosto traçado por uma
cicatriz que lhe rouba qualquer sorriso aberto. A vitória parecia então pender
para os miguelistas, tanto que os Lanceiros da Rainha tinham já retrocedido, no
entanto, depois de tanta refrega e de terem atingido o alto da colina, vêem
mesmo a seus pés, lá em baixo, formados em linha, os soldados do coronel
Vicente Queirós. As salvas disparadas numa sucessão asfixiante feriram
mortalmente os camaradas e sobretudo Pussieux A partir dali, os liberais tomam
o comando da refrega. Cabe-lhes capitular. A charneca cheira a morte, ele não
viu o resto porque foi por ali que tudo ficou negro. Um balázio entrara-lhe na
cabeça, outra rebentara-lhe uma perna. O cheiro do sangue quente, a molhar-lhe
os sentidos foi a sua última memória daquele dia. O resto foi o silêncio.
Acordou num dia sem data
nem cor. Antes houve espaços com vozes, houve espaços de movimentos, no entanto
a memória é fugaz, algo muito, muito longe. Registos breves sem sulcos. Quando
despertou do mundo da morte, não viu contudo ouviu. Não estava na refrega. Não
estava na charneca. Havia outros sons. Percebeu que estava noutro mundo.
As vozes eram mais
macias e as mãos que o tocavam possuíam leveza mitigando-lhe o ardor que lhe
roía o corpo vindo da perna. Era um o calor imenso molhando-o de suor,roubava-lhe
a respiração e as dores faziam-na latejar de tal forma que a sentia enorme e
pesada. E ele sem saber que já fora amputada. Tentou chegar-lhe, tentou mas não
conseguiu. Depois a escuridão, sempre a escuridão. Deitou as mãos aos olhos.
Uma enorme venda tapava-os. Tentou puxar o tecido. Alguém impediu,
agarrando-lhe firme mas suavemente as mãos. Falaram-lhe, muito, embalado voltou
a dormir.
Durante doze anos penou
aqui e ali. Foi um tempo amargo. Tão penoso, que nem sequer, gosta de os
recordar. Mas chegou o ano de 1846. Rememora quando aqui chegou
Ouvem-se as vésperas.
Zinha arruma as últimas ligaduras, ajeita os cabelos, alisa o avental branco,
lança a capa pelos ombros e faz a sua última ronda. Tudo parece em paz. Não
teve tempo sequer de trocar umas palavras com Pedro. Foi um dia particularmente
cansativo. A doença, quando chega, ataca tudo e todos. E eles são tão frágeis.
Percorre o corredor que
a conduz ao edifício central, à igreja. Ali encontrará Pedro pela certa. Embora
seja muito piedosa e crente, este lugar causa-lhe um arrepio. É austero. Tem
demasiado mármore para seu gosto. Apenas a cúpula que se abre sobre a nave
devolve-lhe a luz do sol, inundando os nichos de mármore a entornando um pouco
de cor ao lugar. Pedro, apesar de cego é o sacristão. Vive entre os altares, os
santos, cálices e missas. É um bom homem. Doce e todavia firme como um rochedo.
Sabe-lhe bem aquele interlúdio de meias palavras, meios silêncios. Um pedaço de
alimento para o espírito.
Entra na igreja,
genuflecte rapidamente benzendo-se e olha em redor à procura do sacristão. Não
o vê.
-Deve estar pela
sacristia - pensa enquanto se encaminha para a esquerda do altar.
Empurra a pesada porta
de carvalho que se encontrava entreaberta. Sentado numa cadeira Pedro polia um
cálice com toda a perseverança e amor que as suas mãos gastas conseguem.
-A menina Nazareth! Já
sentia a sua falta!
- Pedro estás aí na
escuridão, porque é que não abres a portada e deixas entrar o resto do sol?
-E que mais faz? Com luz
ou sem luz é sempre igual…. Ai menina, ai menina, até se esquece.
-Claro que não me
esqueço, claro que não é a mesma coisa, o sol aquece Pedro e isto está um gelo.
-Nem senti menina, tenho
tanto que fazer.
-Pois, pois. Amanhã vais
dar uma volta comigo pela mata. Precisas de apanhar um pouco de ar e temos que
por as nossa converseta em dia. Há algumas coisas que te quero contar. Hoje já
é muito tarde e tenho que regressar a S. Gião. Mas amanhã já sabes.
-Está bem menina
Nazareth. Eu nem sei como seriam os meus dias sem a menina.
-Ora deixa-te disso.
Zinha afaga o rosto do
ancião e aperta-lhe a mão com carinho. Depois dá meia volta e dirige-se para a
velha porta.
-Até amanhã meu amigo.
- Até amanhã menina.
Já cá fora desce
apressada os degraus, senta-se no cabriolet, segura nas rédeas pondo-se em
movimento. Um acto que gosta de fazer. Ter nas mãos as rédeas, conduzir
suavemente o seu próprio destino é algo que a apazigua.
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