IV
- Ó menina, por amor de Deus venha para
dentro, se a senhora sua mãe a vê nesses preparos inda se zanga.
-.......
-Menina,
menina, não me ouve? Ponha um chapéu ao menos.
E
Lela enrola a ponta do avental meio sujo num triângulo por ser, desata o velho
chapéu de palha dirigindo-se para o outro canto do pátio, onde Zinha se debruça
sobre não se sabe bem o quê.
-
Não me ouviu? Vá lá, ponha isto na cabeça. Já viu o sol? Ai se a sua mãezinha a
vê. Porque é que não descansa como toda a gente da casa?
-
Já sabes que não gosto!
- Pois isso… E
entre dentes vai dizendo para si: “Ai se fosse minha filha…” porém responde:
-Ai a menina
Zinha não devia estar aqui, é isso que lhe digo, vá para dentro que este sol
não é para andar cá por fora. Mais a mais uma menina da casa.
- E depois? Ó
Lela eu não quero descansar., que coisa.
-Mas não
precisa, vá para dentro, com tanta coisa bonita lá dentro, pra qé qanda cá
fora, neste calor e neste sol. Ainda fica com algum mal de cabeça…oiça o qu’eu
lhe digo. Vá por mim.
- Já disse que
não vou.
-Prontos,
prontos. Então venha pró pé de mim. Ali prá sombrinha. Estou a debulhar o
feijão. Sempre vê.
- Ó Lela, eu
também vou debulhar.
-Ai, p’la sua
santa saudinha.’ Teja queda. Senão inda oiço das grossas. Isso é lá coisa prá
menina!
-Ora ninguém vê…
-Vejo eu...e. ós
depois….Valha Deus, atão na querem lá vere…Na…na…
-Já disse, eu
também vou debulhar!
-Ai que danadinha…
ai, ai… tá bem, na há vivalma. Mas logo que comece a bulir a menina sai daqui.
Oiça bem o qu’eu lhe digo. Na quero ouvir sermão, percebeu menina? Cada um no
sê lugar, é assim cá prá gente.
- Está bem Lela,
está bem. Cala-te que ninguém vai saber. Estão todos a descansar. É a sesta.
-Seja, atão
venha lá e na suje essas mãozinhas, veja só…
-Eu também quero
debulhar.
- Ora, ora, isto
só a mim, c’os diabos…! Valha-me Sto Antoninho…
- Escusas de
estar para aí a resmungar. Não vale a pena. Deixa-me sentar ao pé de ti.
A velha Lela
escuta aquelas palavras vestidas não sabe bem de que doce e o coração logo lhe
amolece. A rabugice anterior dá lugar a um sorriso amplo e desdentado mas tão
rico de ternura que tudo mais se esquece. Zinha dá-lhe a mão assim suavemente.
Aquele momento de ternura fugaz depressa se solta.
O silêncio senta-se entre elas. Para quê
palavras, se já tudo foi percebido? A velha e a criança. Dois mundos, dois
tempos duas vidas.
V
Do
lado poente uma porta abre-se. No varandim um homem debruça-se. Quem o olha,
apercebe um olhar cansado, melhor entediado. O tédio aliás reveste-lhe o
semblante. Um todo cromático de castanhos como se fora já uma sépia mas viva.
Castanho e bege. Caetano expele uma baforada logo os dedos esguios e alvos
seguram a cigarrilha com a displicência de um hábito corriqueiro. A outra mão
ergue-se cofiando o bigode quase loiro senão fossem as sombras castanhas.
Semi-cerra o olhar azul e entra na penumbra do escritório. Uma grafonola debita
os sons arrastados de Rigoletto. O tom plangente do melodrama fá-lo sorrir
levemente nas comissuras de uns lábios cheios. Senta-se na velha poltrona. De
novo a cigarrilha e o fumo que se eleva em elipses abertas. O silêncio forra o
lugar. O pesado veludo isola os sons exteriores. Ali a vida é um segmento.
Porém a sépia de Caetano estende-se entre os vultos de sombras. Alimenta o seu
espírito e despe a mente. É ali que tudo começa.
1848
José
faz estalar os suspensórios naquele
jeito altivo. Olha em redor. Sete cabeças olham-no sem pestanejar. Azeviche e
ouro. Sãos os sete filhos. Bela prole. Esperam que se sente para começarem a
almoçar. Mathilde já sentada olha vagamente para os filhos. Matilde está sempre
ausente. A sua mulher vive noutro mundo. Enfim. Ele não. Ele é presente. É o
senhor do seu espaço, da sua casa, das suas terras. Ele manda, os outros
obedecem Seguro decide sem titubear Sabe exactamente o que quer. Sempre soube.
Não existem franjas de dúvidas no seu dia-a-dia. Logo a indecisão de Matilde
sobre os assuntos mais comezinhos quase o enlouquece. Epiphânio gere, dirige,
manda e domina a casa grande. Temem-no, sabe-o. Os criados andam ligeiros à sua
frente, não levantam os olhos. O gozo do mando. Não lhe passa pela mente que
por detrás existe um ódio visceral. Está-se borrifando. Por ora e enquanto
puder, Epiphânio é, e será, o senhor. Depois são gentinha sem rei nem roque. Só
trabalham quando lhes mandam. Só produzem quando se anda em cima deles. Não
pensam, obedecem. Para Epiphânio o trabalho é algo sagrado mas desde que seja ele
a mandar. Vem-lhe da terra, que ele venera, esse poder sólido e agreste. É nos
campos húmidos ou secos que sorve a força do seu corpo.
Junto
à entrada do seu casal existe, um velho carvalho, secular, robusto, guarda fiel
do tempo. Para quem chega é o símbolo da casa, do carácter da gente. O carvalho
frondoso e altivo. A terra e o espírito. Uma inquietação perene. O carvalho de
S. Gião possuía um tronco curto mas tão musculado que infundia protecção e
sobretudo respeito. Naquelas tardes vazias de verão, a sua sombra mitigava a
canícula e embebedava o espírito. A sua copa era verde como os olhos das
mulheres. As folhas dançavam suavemente numa brisa soprada de carícia. E as
mulheres da casa largavam os seus recantos e sentavam-se sob o carvalho. Os que
vinham de fora, também paravam sob os seus ramos antes de tocarem a sineta.
Quando se dobrava a esquina e se
vislumbrava o velho carvalho sentia-se a alma da casa e então dizia-se:
“Chegámos”! E assim foi durante quase dois séculos.
Depois um dia, a gente partiu, todavia o
carvalho ficou, e ainda hoje a sua copa acena a quem passa.
Epiphânio senta-se no topo da mesa.
Deliberadamente olha em redor de forma cáustica. Sentir o temor da prole é
quase o preliminar da refeição cujo cheiro já lhe palpita nas narinas. Vem da
cozinha mesmo no fundo do corredor. O cheiro da sopa alaga-lhe o estômago e
amacia-lhe os sentidos. Humedece. Pigarreia.
– Rita, minha filha, porque é que não foi
receber a minha bênção esta manhã?
-Meu Pai fiquei com a Senhora minha mãe
que se sentia indisposta.
- Ah!
Olha demoradamente para Mathilde no topo
da mesa, perscruta-lhe e olhar e pergunta-lhe?
- Como vai, minha amiga?
Mathilde pálida e ausente rebola o olhar
até o fixar em Epiphânio. Não percebeu directamente a pergunta. Aliás nunca o
entendeu muito bem. Tartamudeia umas sílabas que soam:
- Bem, estou melhor.
Mergulha a sua atenção na parede. Naquela
que se ergue mesmo defronte, e onde uma porta aberta deixa antever uma pequena
salinha. O seu olhar poisa algures no vazio. Sente-se escorada. As paredes
ausentes devolvem-lhe a segurança ao espírito errante. Ao redor os filhos
olham-na. Caritas ausentes de calor materno e acanhadas na rispidez paterna.
Olhares claros e escuros semi-obscuros de amor. Todos os dias a cena repete-se.
Logo, logo, o pai vai-se levantar, retirar-se, a mãe vai sorrir meio aérea, em
seguida, num gesto lento e dorido, levantará a campainha de prata. A fiel Bina
virá, pegará nos mais novos que no meio de risadas e afagos deixarão a sala.
Mathilde sorrirá lentamente depois com gesto senhoril, pegará na saia que
flutuará em redor do seu corpo como se fora uma copa em murmúrio de vento.
Eles, os mais velhos, irão escapulir-se acendendo os seus recantos, irão correr
por aqui e ali, irão gastar o tempo dos dias, a noite virá, o dia irá acordar
de novo, e assim sucessivamente na memória da casa.
Caetano, o quinto na prole de oito, o
varão pese as três primeiras, pois que António e, o segundo, falecera, e Maria
a terceira também, é sobre quem recai mais a atenção do pai. Questão de
varonia. Caetano é um belo rapaz. Da mãe herdou a beleza bem como o carácter.
Vive acordado dormindo no mundo por chegar. Detesta a força do pai, o amor à
terra, o cheiro dos tonéis, a força do vento e o cheiro do estrume. Caetano é
São Gião mas em aguarela. Caetano adora os livros, a música, os passeios.
Caetano ama as coisas belas e detesta a verdade da vida. Caetano é um
solitário. As irmãs, Rita, e Carolina estranham-no, porém respeitam-no. Não
possui laços, um solitário. Os mais novos, são ainda crianças.
Caetano olha de soslaio para a mãe. Uma
criatura nua de amor. Tudo nela rescende a vazio. Não há vida. Somente a forma.
Lamenta-a. Passar pela vida assim. Raramente a vê sorrir, sempre marmórea. Até
o toque é gelado. Um ser glauco. As crianças sorriem-lhe de fugida, o pai
olha-a como ser menor. Ele que é tão dominador, tão imponente, dá-lhe pouco
mérito. Pensa.
As criadas obedecem-lhe todavia murmuram
e dão risadas nas costas. Ele tem visto e ouvido enquanto cresce. Sempre tudo
igual. A mãe só tem vida quando os padrinhos vêm almoçar ou seroar, quando vão
até à vila e os visitam. Aí a mãe veste a vida. O rosto adquire cor o sorriso
vida e o olhar é firme e cintilante. Depois, quando a cena se esvai ela
retira-se de novo para o seu mundo que não compartilha. Matilde é mais uma
sombra da casa. S. Gião tem tantas sombras, tantas coisas por dizer. Ninguém
ousou escutá-las, no entanto elas giram em torno. Caetano por vezes tem a
percepção nítida que elas se adensam. Mas cala-se. Há coisas que não se falam, pensam-se.
Já cá fora espreita a tarde com a
indiferença das horas por vir. Aspira a secura do tempo. Depois senta-se sob o
velho carvalho. Olha em redor. Nada, nem vivalma. Tudo dorme. Sons dispersos
dos animais, dos moços que labutam aqui e ali, das lides das mulheres, do
campo, da tarde Apoia os cotovelos na mesa de pedra. Enfia o rosto entre as
mãos e divaga. Ah, como gostava de ter estado ali mesmo em 1807.A mente
povoa-se de homens, de feitos, de S. Gião no coração dos episódios. E ele por
nascer. As sensações empapam-no. O alheamento à realidade come-o. Caetano é um
fuso numa roca quebrada.
- Menino, Menino Caetano… menino.
Uma mão pisa na sua cabeça. Levanta o
olhar. Perde-se no miolo macio do ontem. A imaginação arrebata-o para feitos
por acontecer, para glórias perdidas. Os factos romanceiam-se numa mente ávida
de fronteiras que não as de vinhas, riachos e lavoura. Caetano repele a terra
tal da mesma forma que o pai a ama. O sentimento de ambos tem a mesma força.
São diametralmente opostos. A força do pai agasta-o. A sua voz forte,
imperiosa, o seu desdém pelos sentimentos. Tudo nele o afasta. Todavia os
outros respeitam-no. Ele teme-o. O seu padrinho Caetano de Gibraltar, seu
homónimo deveria ser seu pai. Como é bom ouvi-lo. Na casa de Gibraltar os
silêncios dormem pouco. A tia Paula e os primos sorriem. A casa é feliz.
Ali em S. Gião as sombras impedem que se
respire. Suspira-se muito ou cala-se.
- Menino, menino…menino Caetano.
A voz chega-lhe agora nítida. Está mesmo
ali ao lado. Tão nítida que quase o sobressalta. Levanta o olhar. O velho
Julião sorri-lhe com jeito preocupado.
- O que há Julião?
- O seu pai… está a chamá-lo há um ror de
tempo e…
-
Sim?
-O menino já sabe…vem tempestade por aí,
vem, vem…
- Está bem, está bem… já vou.
Caetano ergue-se do tronco de madeira que
serve de banco sob o velho carvalho. Sorri contrafeito. O velho Julião de cujo
rosto escuro de sóis e enrugado do anos, de boca desdentada, lábios engolidos,
sorri-lhe meigamente. Os olhinhos escuros e tolhidos do tempo parecem
ampará-lo. O braço descarnado de veias salientes afaga-lhe a cabeça e empurra-o
em direcção a casa.
-Vá, menino, vá lá… senão …
Caetano contrafeito toma o caminho da
casa. Entra pela porta de trás. A do pátio da cozinha. As vozes cantantes das
mulheres no seu contínuo cacarejar esvaem-se à sua entrada. Baixam a cabeça e
enrolam os ombros. Dá-lhes a saudação. Vê a mirada das raparigas e olhar
afectuoso das mais velhas. Rápido cruza o pátio e entra na cozinha. Está
fresca. Um arrepio percorre-o. Prenúncio de que está para chegar. Os velhos
degraus de madeira que o conduzem ao primeiro andar rangem sob os pés. Sobe-os pausadamente. Não há alvoroço, antes um
demorar deliberado. Os encontros com o pai são sempre dolorosos. Ele ouve, o
pai fala. Ele ouve. O pai vocifera. Ele escuta. O pai ameaça. Ele silencia. É
assim sempre. O vermelho das faces casa-se com o fulgor dos olhos, porém os
lábios mantêm-se unidos. Não responde, não fala. Espera que o pai o despeça.
- Rico filho! Um calaceiro. Anda pelos
cantos em vez de ir comigo ver os homens. Só pensa em disparates. Não vou
tolerar que seja igual a sua Mãe. Fique ciente. Amanhã vai levantar-se com os
homens e vai para o campo. Vai aprender. A madraçaria só traz vícios e por casa
já me chegam. Hei-de fazer de si um Homem ou não me chame Epiphânio! Pode sair!
Caetano abate-se na sua altura. O olhar
emite um fulgor porém tem o cuidado de o baixar e numa voz meio imperceptível
murmura:
-Com a sua licença meu pai.
Já cá fora Caetano respira fundo. Enfia
as mãos nos bolsos e dando meia volta entra no seu quarto. Atira-se para cima
da cama, atira com o boné que enrodilhava nas mãos para o ar e cerra os punhos.
Como odeia o pai, como odeia a casa, como odeia tudo!
-Um dia hei-de ser feliz! Exclama
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