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08 março, 2016

Mulheres com rosto



IV
- Ó menina, por amor de Deus venha para dentro, se a senhora sua mãe a vê nesses preparos inda se zanga.
-.......
 -Menina, menina, não me ouve? Ponha um chapéu ao menos.
E Lela enrola a ponta do avental meio sujo num triângulo por ser, desata o velho chapéu de palha dirigindo-se para o outro canto do pátio, onde Zinha se debruça sobre não se sabe bem o quê.
- Não me ouviu? Vá lá, ponha isto na cabeça. Já viu o sol? Ai se a sua mãezinha a vê. Porque é que não descansa como toda a gente da casa?
- Já sabes que não gosto!
- Pois isso… E entre dentes vai dizendo para si: “Ai se fosse minha filha…” porém responde:
-Ai a menina Zinha não devia estar aqui, é isso que lhe digo, vá para dentro que este sol não é para andar cá por fora. Mais a mais uma menina da casa.
- E depois? Ó Lela eu não quero descansar., que coisa.
-Mas não precisa, vá para dentro, com tanta coisa bonita lá dentro, pra qé qanda cá fora, neste calor e neste sol. Ainda fica com algum mal de cabeça…oiça o qu’eu lhe digo. Vá por mim.
- Já disse que não vou.
-Prontos, prontos. Então venha pró pé de mim. Ali prá sombrinha. Estou a debulhar o feijão. Sempre vê.
- Ó Lela, eu também vou debulhar.
-Ai, p’la sua santa saudinha.’ Teja queda. Senão inda oiço das grossas. Isso é lá coisa prá menina!
-Ora ninguém vê…
-Vejo eu...e. ós depois….Valha Deus, atão na querem lá vere…Na…na…
-Já disse, eu também vou debulhar!
-Ai que danadinha… ai, ai… tá bem, na há vivalma. Mas logo que comece a bulir a menina sai daqui. Oiça bem o qu’eu lhe digo. Na quero ouvir sermão, percebeu menina? Cada um no sê lugar, é assim cá prá gente.
- Está bem Lela, está bem. Cala-te que ninguém vai saber. Estão todos a descansar. É a sesta.
-Seja, atão venha lá e na suje essas mãozinhas, veja só…
-Eu também quero debulhar.
- Ora, ora, isto só a mim, c’os diabos…! Valha-me Sto Antoninho…
- Escusas de estar para aí a resmungar. Não vale a pena. Deixa-me sentar ao pé de ti.
A velha Lela escuta aquelas palavras vestidas não sabe bem de que doce e o coração logo lhe amolece. A rabugice anterior dá lugar a um sorriso amplo e desdentado mas tão rico de ternura que tudo mais se esquece. Zinha dá-lhe a mão assim suavemente. Aquele momento de ternura fugaz depressa se solta.
 O silêncio senta-se entre elas. Para quê palavras, se já tudo foi percebido? A velha e a criança. Dois mundos, dois tempos duas vidas.
V
Do lado poente uma porta abre-se. No varandim um homem debruça-se. Quem o olha, apercebe um olhar cansado, melhor entediado. O tédio aliás reveste-lhe o semblante. Um todo cromático de castanhos como se fora já uma sépia mas viva. Castanho e bege. Caetano expele uma baforada logo os dedos esguios e alvos seguram a cigarrilha com a displicência de um hábito corriqueiro. A outra mão ergue-se cofiando o bigode quase loiro senão fossem as sombras castanhas. Semi-cerra o olhar azul e entra na penumbra do escritório. Uma grafonola debita os sons arrastados de Rigoletto. O tom plangente do melodrama fá-lo sorrir levemente nas comissuras de uns lábios cheios. Senta-se na velha poltrona. De novo a cigarrilha e o fumo que se eleva em elipses abertas. O silêncio forra o lugar. O pesado veludo isola os sons exteriores. Ali a vida é um segmento. Porém a sépia de Caetano estende-se entre os vultos de sombras. Alimenta o seu espírito e despe a mente. É ali que tudo começa.
1848
José  faz estalar os suspensórios naquele jeito altivo. Olha em redor. Sete cabeças olham-no sem pestanejar. Azeviche e ouro. Sãos os sete filhos. Bela prole. Esperam que se sente para começarem a almoçar. Mathilde já sentada olha vagamente para os filhos. Matilde está sempre ausente. A sua mulher vive noutro mundo. Enfim. Ele não. Ele é presente. É o senhor do seu espaço, da sua casa, das suas terras. Ele manda, os outros obedecem Seguro decide sem titubear Sabe exactamente o que quer. Sempre soube. Não existem franjas de dúvidas no seu dia-a-dia. Logo a indecisão de Matilde sobre os assuntos mais comezinhos quase o enlouquece. Epiphânio gere, dirige, manda e domina a casa grande. Temem-no, sabe-o. Os criados andam ligeiros à sua frente, não levantam os olhos. O gozo do mando. Não lhe passa pela mente que por detrás existe um ódio visceral. Está-se borrifando. Por ora e enquanto puder, Epiphânio é, e será, o senhor. Depois são gentinha sem rei nem roque. Só trabalham quando lhes mandam. Só produzem quando se anda em cima deles. Não pensam, obedecem. Para Epiphânio o trabalho é algo sagrado mas desde que seja ele a mandar. Vem-lhe da terra, que ele venera, esse poder sólido e agreste. É nos campos húmidos ou secos que sorve a força do seu corpo.
Junto à entrada do seu casal existe, um velho carvalho, secular, robusto, guarda fiel do tempo. Para quem chega é o símbolo da casa, do carácter da gente. O carvalho frondoso e altivo. A terra e o espírito. Uma inquietação perene. O carvalho de S. Gião possuía um tronco curto mas tão musculado que infundia protecção e sobretudo respeito. Naquelas tardes vazias de verão, a sua sombra mitigava a canícula e embebedava o espírito. A sua copa era verde como os olhos das mulheres. As folhas dançavam suavemente numa brisa soprada de carícia. E as mulheres da casa largavam os seus recantos e sentavam-se sob o carvalho. Os que vinham de fora, também paravam sob os seus ramos antes de tocarem a sineta.
Quando se dobrava a esquina e se vislumbrava o velho carvalho sentia-se a alma da casa e então dizia-se: “Chegámos”! E assim foi durante quase dois séculos.
Depois um dia, a gente partiu, todavia o carvalho ficou, e ainda hoje a sua copa acena a quem passa.
Epiphânio senta-se no topo da mesa. Deliberadamente olha em redor de forma cáustica. Sentir o temor da prole é quase o preliminar da refeição cujo cheiro já lhe palpita nas narinas. Vem da cozinha mesmo no fundo do corredor. O cheiro da sopa alaga-lhe o estômago e amacia-lhe os sentidos. Humedece. Pigarreia.
– Rita, minha filha, porque é que não foi receber a minha bênção esta manhã?
-Meu Pai fiquei com a Senhora minha mãe que se sentia indisposta.
- Ah!
Olha demoradamente para Mathilde no topo da mesa, perscruta-lhe e olhar e pergunta-lhe?
- Como vai, minha amiga?
Mathilde pálida e ausente rebola o olhar até o fixar em Epiphânio. Não percebeu directamente a pergunta. Aliás nunca o entendeu muito bem. Tartamudeia umas sílabas que soam:
- Bem, estou melhor.
Mergulha a sua atenção na parede. Naquela que se ergue mesmo defronte, e onde uma porta aberta deixa antever uma pequena salinha. O seu olhar poisa algures no vazio. Sente-se escorada. As paredes ausentes devolvem-lhe a segurança ao espírito errante. Ao redor os filhos olham-na. Caritas ausentes de calor materno e acanhadas na rispidez paterna. Olhares claros e escuros semi-obscuros de amor. Todos os dias a cena repete-se. Logo, logo, o pai vai-se levantar, retirar-se, a mãe vai sorrir meio aérea, em seguida, num gesto lento e dorido, levantará a campainha de prata. A fiel Bina virá, pegará nos mais novos que no meio de risadas e afagos deixarão a sala. Mathilde sorrirá lentamente depois com gesto senhoril, pegará na saia que flutuará em redor do seu corpo como se fora uma copa em murmúrio de vento. Eles, os mais velhos, irão escapulir-se acendendo os seus recantos, irão correr por aqui e ali, irão gastar o tempo dos dias, a noite virá, o dia irá acordar de novo, e assim sucessivamente na memória da casa.
Caetano, o quinto na prole de oito, o varão pese as três primeiras, pois que António e, o segundo, falecera, e Maria a terceira também, é sobre quem recai mais a atenção do pai. Questão de varonia. Caetano é um belo rapaz. Da mãe herdou a beleza bem como o carácter. Vive acordado dormindo no mundo por chegar. Detesta a força do pai, o amor à terra, o cheiro dos tonéis, a força do vento e o cheiro do estrume. Caetano é São Gião mas em aguarela. Caetano adora os livros, a música, os passeios. Caetano ama as coisas belas e detesta a verdade da vida. Caetano é um solitário. As irmãs, Rita, e Carolina estranham-no, porém respeitam-no. Não possui laços, um solitário. Os mais novos, são ainda crianças.
Caetano olha de soslaio para a mãe. Uma criatura nua de amor. Tudo nela rescende a vazio. Não há vida. Somente a forma. Lamenta-a. Passar pela vida assim. Raramente a vê sorrir, sempre marmórea. Até o toque é gelado. Um ser glauco. As crianças sorriem-lhe de fugida, o pai olha-a como ser menor. Ele que é tão dominador, tão imponente, dá-lhe pouco mérito. Pensa.
As criadas obedecem-lhe todavia murmuram e dão risadas nas costas. Ele tem visto e ouvido enquanto cresce. Sempre tudo igual. A mãe só tem vida quando os padrinhos vêm almoçar ou seroar, quando vão até à vila e os visitam. Aí a mãe veste a vida. O rosto adquire cor o sorriso vida e o olhar é firme e cintilante. Depois, quando a cena se esvai ela retira-se de novo para o seu mundo que não compartilha. Matilde é mais uma sombra da casa. S. Gião tem tantas sombras, tantas coisas por dizer. Ninguém ousou escutá-las, no entanto elas giram em torno. Caetano por vezes tem a percepção nítida que elas se adensam. Mas cala-se. Há coisas que não se falam, pensam-se.
Já cá fora espreita a tarde com a indiferença das horas por vir. Aspira a secura do tempo. Depois senta-se sob o velho carvalho. Olha em redor. Nada, nem vivalma. Tudo dorme. Sons dispersos dos animais, dos moços que labutam aqui e ali, das lides das mulheres, do campo, da tarde Apoia os cotovelos na mesa de pedra. Enfia o rosto entre as mãos e divaga. Ah, como gostava de ter estado ali mesmo em 1807.A mente povoa-se de homens, de feitos, de S. Gião no coração dos episódios. E ele por nascer. As sensações empapam-no. O alheamento à realidade come-o. Caetano é um fuso numa roca quebrada.
- Menino, Menino Caetano… menino.
Uma mão pisa na sua cabeça. Levanta o olhar. Perde-se no miolo macio do ontem. A imaginação arrebata-o para feitos por acontecer, para glórias perdidas. Os factos romanceiam-se numa mente ávida de fronteiras que não as de vinhas, riachos e lavoura. Caetano repele a terra tal da mesma forma que o pai a ama. O sentimento de ambos tem a mesma força. São diametralmente opostos. A força do pai agasta-o. A sua voz forte, imperiosa, o seu desdém pelos sentimentos. Tudo nele o afasta. Todavia os outros respeitam-no. Ele teme-o. O seu padrinho Caetano de Gibraltar, seu homónimo deveria ser seu pai. Como é bom ouvi-lo. Na casa de Gibraltar os silêncios dormem pouco. A tia Paula e os primos sorriem. A casa é feliz.
Ali em S. Gião as sombras impedem que se respire. Suspira-se muito ou cala-se.
- Menino, menino…menino Caetano.
A voz chega-lhe agora nítida. Está mesmo ali ao lado. Tão nítida que quase o sobressalta. Levanta o olhar. O velho Julião sorri-lhe com jeito preocupado.
- O que há Julião?
- O seu pai… está a chamá-lo há um ror de tempo e…
 - Sim?
-O menino já sabe…vem tempestade por aí, vem, vem…
- Está bem, está bem… já vou.
Caetano ergue-se do tronco de madeira que serve de banco sob o velho carvalho. Sorri contrafeito. O velho Julião de cujo rosto escuro de sóis e enrugado do anos, de boca desdentada, lábios engolidos, sorri-lhe meigamente. Os olhinhos escuros e tolhidos do tempo parecem ampará-lo. O braço descarnado de veias salientes afaga-lhe a cabeça e empurra-o em direcção a casa.
 -Vá, menino, vá lá… senão …
Caetano contrafeito toma o caminho da casa. Entra pela porta de trás. A do pátio da cozinha. As vozes cantantes das mulheres no seu contínuo cacarejar esvaem-se à sua entrada. Baixam a cabeça e enrolam os ombros. Dá-lhes a saudação. Vê a mirada das raparigas e olhar afectuoso das mais velhas. Rápido cruza o pátio e entra na cozinha. Está fresca. Um arrepio percorre-o. Prenúncio de que está para chegar. Os velhos degraus de madeira que o conduzem ao primeiro andar rangem sob os pés. Sobe-os pausadamente. Não há alvoroço, antes um demorar deliberado. Os encontros com o pai são sempre dolorosos. Ele ouve, o pai fala. Ele ouve. O pai vocifera. Ele escuta. O pai ameaça. Ele silencia. É assim sempre. O vermelho das faces casa-se com o fulgor dos olhos, porém os lábios mantêm-se unidos. Não responde, não fala. Espera que o pai o despeça.
- Rico filho! Um calaceiro. Anda pelos cantos em vez de ir comigo ver os homens. Só pensa em disparates. Não vou tolerar que seja igual a sua Mãe. Fique ciente. Amanhã vai levantar-se com os homens e vai para o campo. Vai aprender. A madraçaria só traz vícios e por casa já me chegam. Hei-de fazer de si um Homem ou não me chame Epiphânio! Pode sair!
Caetano abate-se na sua altura. O olhar emite um fulgor porém tem o cuidado de o baixar e numa voz meio imperceptível murmura:
-Com a sua licença meu pai.
Já cá fora Caetano respira fundo. Enfia as mãos nos bolsos e dando meia volta entra no seu quarto. Atira-se para cima da cama, atira com o boné que enrodilhava nas mãos para o ar e cerra os punhos. Como odeia o pai, como odeia a casa, como odeia tudo!
-Um dia hei-de ser feliz! Exclama

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