-Minha senhora o café vai ficar frio…
Encara o empregado que a olha perspicaz. Murmura:
-Oh desculpe, obrigada.
Pega na chávena e dirige-se para a mesinha
junto à janela. Senta-se, e devagar, saboreando, sorve o líquido.
Um olhar. A noite caiu. O comboio continua
seu o tricotar metálico. A noite será o seu tempo.
Olha em volta. Dois homens ainda jovens. Um
tem a cabeça descaída sobre o peito. Dormita. O outro lê o jornal. Infindável a
leitura de um jornal num comboio. O conteúdo dos artigos ultrapassa-se para
além da frase. É nas entrelinhas que se chegam às grandes conclusões, e dali se
extrapolam os conceitos.
Extrapolar. Imperceptível, é o sorriso, que
lhe aflora os lábios. Quantas vezes, ela ouviu, mesmo a seu lado, os sentidos
extrapolarem a razão? Tantas, o dia-a-dia feito multiplicação.
Do outro lado, duas jovens conversam animadamente.
Apura o ouvido, não por curiosidade, mas para ocupar o seu tempo. Escuta:
-Ó Sara deixei de o curtir. Pronto.
-Assim, de repente? Vocês andavam já há bué de
tempo.
-Sim, três meses. Atrofiei, sabes? Parti p'ra
outra.
-Hum. Percebo. Tá. Tudo na boa.
Desvia os sentidos para outro canto. Um casal
de velhotes ampara-se no trepidar do comboio entre duas sandes de pão branco e
mole e uns goles de um líquido qualquer. Trincam devagar, gostando. Os copos
são levantados em compasso. Bebem e voltam a poisá-los. Entre um acto e outro
entreolham-se sorrindo. Gozam o momento. A idade deu-lhes isso. Roubou-lhes a
juventude e presenteou-os com a singeleza. A troca dos anos. O velho ditado “ a
vida dá e tira” é tão acertado, pensa Sofia. Sente uma especial ternura e uma quase inveja pelo
casal de velhotes. Como chegaram até ali! Tantos anos…
………………
Naquela tarde, enquanto dava a segunda aula,
sentiu-se oprimida. Olhou para fora, pela janela mesmo ao lado da
secretária, as serras respiravam a tormenta. Estavam escuras e poderosas. O céu
pintara-se de cinzento pesado e mal se mexia, oprimido. Sofia entreabriu a janela,
porém o ar não limpou o seu sentir. A borrasca pressentia-se. Iria estalar a
qualquer momento. O suor pespontava-lhe a testa. Sentia no corpo aquele tempo
sem ar.
Caminhou pela ala entre as primeiras
carteiras enquanto debitava a matéria. Uma pergunta aqui e outra ali. E o ritmo
da aula girava. Mas aquela opressão continuava. Despiu o casaquito de algodão e
resolveu fazer uma pausa na explicação. Os cinco minutos de descanso que dava
aos alunos sempre que havia matéria nova. Conversa daqui, conversa dali, e
ei-los distendidos. Podia recomeçar. Recomeçou. Cansada olhou de soslaio para o
pulso onde os ponteiros pareciam colados. Não se mexiam. Alguma coisa ia
acontecer. Conhecia-se por demais para desprezar os sintomas. Aquela opressão
causava-lhe um certo atordoamento mental. Bom, o melhor era mesmo continuar a
aula. Não valia a pena antecipar-se. A ansiedade não lhe daria descanso.
Continuou no seu deambular explicativo,
enquanto os alunos se entretinham entre o conteúdo que escorregava por entre os
ouvidos, noutros casos era bebido pelas mentes, e noutros ainda era devolvido
intacto ao ar pesado da sala.
E o tempo decorreu. E a campainha tocou.
O tropel habitual aconteceu. Apanhou as suas
coisas, atirou o olhar habitual à sala, fechou a porta e caminhou. Na sala do primeiro
andar, onde todos os colegas se reuniam, pairava o calor abafado casado com o
som das vozes. Os professores falam alto. Muito. As vozes têm tendência a
tornarem-se estrídulas. Sofia sentia-se zonza, cada vez mais.
Agora era uma agonia vinda não do estômago,
mas de algures, que não sabia bem definir. Sentou-se.
-Sofia
estás bem? - Ouviu muito longe, a voz.
Quis dizer algo mas a língua estava presa, o
rosto também. Havia como que um força a tomá-la. E lhe tirava a clareza do dia,
embaciava-lhe o cérebro.
Sentiu-se mole. Terrivelmente mole.
Estava num sítio diferente, estranho, quase
diria esquisito. Estava separada. Ela aqui e a outra, ela também, mais além.
Duas pessoas e uma só. Conseguia sentir que a outra lhe pertencia, porém era
diferente. Cansou-se e fechou os olhos.
À medida que o tempo passava, a outra
vinha-se aproximando. Tão devagar que nem dava por isso. E o cansaço
desvanecia-se. Parecia que o torpor a ia deixando. Que o calor e a vibração
começavam a tomá-la.
Abriu os olhos três dias depois. Disseram-lhe
que tinha estado mais para lá do que para cá. Qual quê! Simplesmente adormecera
e deixara que o seu corpo flutuasse. Tão simplesmente. Estava debilitada, sentia-o
mas o seu cérebro funcionava. Foi retomando a posse dos seus sentidos. Sentia-se
quase normal. A vista não. Qualquer coisa não batia certo. Mas não se ia
preocupar agora que tinha acordado e via o mundo à sua volta com outras formas.
Esquisito. Mas as pessoas pareciam-lhe diferentes mais pequenas e sumidas.
Aquele ar de conquista, aquele brilho de vontade, o frenesim do ser ouvido
tinha-se evaporado. Afinal eram comuns. Tal como ela.
Sofia suspirou por entre os lençóis de barra
verde. Com a ponta dos dedos puxou-os para si. Tapou a boca. Os olhos orlados
de macerado, sobressaiam no rosto amarelado de doença, contudo a vida continuava
a espreitar.
Recuperou-se. O AVC deixara-lhe lapsos.
Lapsos de memória, de espaço e até de paciência. Os lapsos de Sofia. Lapsos que,
sub-repticiamente, aprendera a disfarçar com arte e estilo. Uma sobrevivente. Uma
mulher com sorte diziam-lhe.
Talvez sim, talvez não. Já depois, muito
depois quando pensava no caso, Sofia murmurava para si. Talvez sim, talvez não.
O mundo mudara. Ou fora antes ela que mudara?
Os pequenos muitos nadas que tanta importância dava nos dias antes, agora ao
remirá-los, causavam-lhe bocejos. Como as ninharias deixam de ter peso ,quando a
vida está em jogo. Um lugar-comum, aliás um pensamento banal, mas não somos
todos banais? Encolheu os ombros, era algo intrinsecamente seu, pertencia-lhe. Não,
não era displicência, nem um deixa andar, somente o seu trejeito, que dizia: Já
lá vai, mas voltará. A inevitabilidade que sempre a coabitara E foi com um
encolher de ombros que também se lançara na luta de cada dia. Lá no seu íntimo,
sabia que levaria a melhor, e assim de mansinho exterior, mas com a força
interior, atirou-se, e conseguiu.
Sofia venceu a batalha, agora a guerra?
Isso, não sabe, mas o que importa, e depois quem o sabe?
A sua vida em pequenas lutas. São os quadros
que a pintam.
E os pensamentos quais gotículas de cacimbo
deslizam pelo vestíbulo da noite. Não se sente velha como o reflexo teima em
apregoar. Aliás a sua cabeça é um baloiço de agilidade onde o pensamento se entrecruza
com a maturidade do raciocínio. Gosta dos seus cinquenta e oito anos e do
amanhã de todos os dias.
Uma mulher sem história ou uma história de
mulher? Abana ligeiramente o pescoço afastando as divagações que a visitam em
cada segundo. Não quer divagar, apenas pensar. Tem que delinear objectivamente
o seu trajecto. As horas deslizam velozmente à medida que o comboio avança. Amanhã
terá muito que fazer.
……………………
Um comentário:
Sempre belos os seus apeadeiros contados
da vida
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