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15 novembro, 2009

A Casa

A CASA

A casa senta-se no alto da encosta. Nas paredes pintadas de branco velho, as sombras do dia enroscam-se nas arestas boleadas. Há um silêncio de memórias. Uma janela aberta sobre um jardim de folhas verdes. Uma cabeça que se mexe por entre as cortinas. Um vidro bafejado de alentos. Uma aragem que perpassa e abana a portada. Desliza suave e intermitente contra a parede. Bate o compasso do tempo. O som percute na velha tília de folhas doces. Uma onda de perfume afaga-a. Adoça-lhe o olhar, aquilata-lhe as memórias, contorna-lhe os segredos.

A casa é o livro.

As paredes são a capa, o interior as páginas. Não são escritas numa caligrafia miúda ou dançante, mas sim impregnadas de imagens diluídas nas paredes ou desenhadas na poalha das horas. E as janelas de geometria perfeita reflectem a elipse do passado feito presente.

As páginas do livro movimentam-se ao sopro das memórias. A página rasgou-se naquele. Janeiro de 1975.Um dia húmido e cinzentão. Sem a luz quente do dia. Um dia de Inverno tosco. Foi naquele dia que Maria morreu. Maria da casa branca no alto da colina.

Cá em baixo, no vale, houve quem visse a casa encolher-se. Recolhimento, breve de dor que logo se recompôs. No seu interior mais uma história foi escrita. O livro fechou-se naquele capítulo. Um pequeno conto. Ou uma vida contada? Simples trocadilho? Talvez. Maria foi a personagem mais marcante das paredes daquela casa no alto da colina. A casa viu-a nascer, crescer e morrer.

Nem sempre a viu viver. Maria partiu durante muitos anos. E a casa continuou no seu ritmo. Ao respirar escreveu as suas páginas. As gerações foram indo e vindo e ela alentou quando se amaram, nasceram, cresceram e morreram. Recorda todos os rostos, guarda todos os sorrisos. Uns mais do que outros. Há sempre um que fica e outro que se desvanece mais. Não por falta de espaço mas sim, por falta de emoção. Quatro gerações povoaram os espaços. Os nomes repetiram-se, as fisionomias adensaram-se ou aligeiraram-se de acordo com os genes herdados, porém a marca subsistiu, o estigma diriam, a mancha vermelha escondida sob os cabelos, ali mesmo no inicio da nuca. Pertenciam à casa.

De todos os seus filhos, Maria foi sem dúvida a eleita. A casa escolheu-a. Maria também escolheu a casa. Uma reciprocidade de emoções casadas na razão. Viver para além da memória.

Maria cresceu como toda a gente.

Jeito calado e olhar penetrante. Estava sempre no seu lugar, sem ali estar. Escutava mais do que falava. Fez do silêncio as palavras por dizer. Tragou as respostas desfazendo-as em matéria acre que a queimavam. As achas que alimentaram a sua adolescência. Mas sorria deslavada. Lá por dentro também não ria, não sabia, a seriedade tinha-a tomado muito cedo, no entanto havia um repicar de algo indefinível, um constante ruído, uma nota dissonante. Algo que cresceu na proporção do tempo, que se maturou, que se agigantou. A sua ironia.

Ser irónico não é acessório é antes atributo, e se o é, logo, não é, nem pode ser nato. Em Maria foi a casa que lhe fez crescer o atributo. E a ironia tomou-a.

Tornou-se cáustica, quase truculenta, depois amaciou. Controlou-se e distendeu-se, floresceu como se fosse canteiro em tempo de Primavera. Apossou-se do seu ego e tornou-se diletante.

Maria percorreu a estrada dos adultos entre dúvidas e progressos. Fez o seu trajecto por entre rectas vazias e curvas apertadas. Derrapou, contorceu-se, embateu mas sobreviveu. A estrada do mundo é uma viela apertada, escorregadia em manhã de chuva, mas inexplicavelmente apetecível quando vista em postal. No coruchéu do seu mundo, Maria viu como os seres se amarrotavam na busca de um lugar ao sol, como se anulavam, amesquinhavam, se prostituíam como lutavam pela glória inglória do nada. Maria aí sorria. Não sorriso da alma, mas da ironia. A sua ironia fê-la sobreviver. Poucos se aperceberam. A ironia é um quase estado de graça, que poucos provam. A graça de aquiescer dizendo não, é algo de paradoxalmente inteligente. Um dom. Maria nasceu e cresceu com o dom, todavia só muito tarde o descobriu. Por isso a sua vida teve duas fases distintas. A de Maria recalcitrante, sempre ou quase sempre zangada com o mundo. Maria descrente no seu próximo, Maria lutando por ideais que aos outros serviam somente de chavões momentâneos de interesse, ou pior, de pequenos nichos de importância. Maria revoltada, incrédula de si, sentindo-se preterida, mal aproveitada. Maria de quarenta anos.

Maria simpática e agridoce. Maria dos cinquenta. Maria complacente e serena dos sessenta. Maria risonha de doce ironia e felicidade luminosa no descer da escada da vida. Maria sábia nos seus oitenta.

Naquele Janeiro cinzentão, Maria finalmente descansou a sua ironia. Fechou os olhos. Partiu. Nos canteiros as camélias brancas ousaram chorar o dia. Apareceram perladas de gotículas sem ter chovido. Talvez já saudade ou tristeza e porque não? Quem sabe explicar os mistérios da terra? Quem?

Uma mão firme colheu flores e ajeitou as jarras. Flores brancas para Maria. Camélias doces. A casa tremeu. A casa amava a sua Maria, talvez mais do que qualquer outro filho seu. Mas Maria nunca o soube. As tais palavras, sentires e afectos que ficam por dizer, por mostrar e por espalhar.

Maria, hoje, pendura-se num na parede do salão. Um olhar penetrante, luminoso, bufão contrastando com uma boca séria demais quase imposta, traço que o artista captou em momento de pose convencional. Quem se senta junto da parede no velho cadeirão rosado, naquele ângulo de luz macia, vê reflectir na tela uma luminosidade que lhe desnuda a face tecendo-lhe no olhar uma centelha por demais brilhante. Algo de tão perene e vivo que chega a doer.

Encolho-me e baixo a cabeça. Porém, de novo sou impelida para aquele rosto, para o olhar negro. Uma vez mais a centelha. Quer dizer-me algo, penso. Impossível riposta a razão. Algo me empurra, decidida enfrento o quadro. Os meus olhos marejam-se. O magnetismo está ali. Eterno, envolvente.

Maria sorri-me, ironicamente penso. Abano a cabeça. Revolvo-me. Acordo da minha letargia. Levanto-me. A minha cabeça lateja, mas estou calma. Percepciono uma força, uma firmeza que me distingue. Vejo o mundo, o meu mundo real nem bom nem mau. Uma ironia!

Rio, rio. Os outros olham. Sorrindo junto-me a eles.

Quem sou? Maria!




Madama Butterfly (From the film Fatal Attraction) - Giacomo Puccini

9 comentários:

  1. ... suponho que posso deduzir, assim numa leitura muito subjectiva, que te viste 'revisitada' por ti mesma, nesse teu pensamento afectuoso e sagaz! A vida vai redimensionando o olhar!

    Linda a tua 'Maria' singela, letrada, altiva!

    Um beijo amistoso,

    Gosto de camélias brancas!

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  2. Muito bem escrito o seu texto.

    Gostei.

    E a propósito da casa, se tiver disposição e tempo, veja
    o que uma amiga brasileira d
    fez (em pps), com um poema meu.

    Está em 2º ou terceiro abaixo do que tenho para hoje.

    Bjs

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  3. brilhante este teu conto .contido ,discurso fluído ,ritmado e ,sobretudo ,de uma maravilhosa clarividência .engraçado ... este teu conto faz.me lembrar um romance que li há algum tempo em que o personagem principal - se de personagem se tratasse - também era uma casa .não me lembro nem o título nem o autor ,mas curiosamente ao ler.te ,lembrei.me desse romance .
    há semelhanças ,não há plágio - entenda.se .
    porque no teu conto ,de certa maneira há dois personagens que se assumem - a casa e maria .

    gostei


    .
    um beijo

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  4. Escreveste um magnífico conto, querida amiga.
    Tem todos os atributos para ser publicável.
    Desculpa não falar nas qualidades literárias que achei fabulosas, mas a verdade é que eu não sei nada de literatura, tecnicamente falando. Não sou bom comentador... e como o lamento quando leio textos deste quilate (coisa que é raro acontecer pela blogosfera...).
    Tem uma boa semana.
    Beijos.

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  5. Uma emoção ler-te em terras lusas. Mais aconchegantes, olhar e percepção.
    Aplaudo, querida, este primor de sensibilidade. Belíssimo.

    Beijos meus.

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  6. minha querida Mateso

    falta aqui qualquer coisa.....dizem que é um conto .... dizem e eu acredito!!!!!!


    .
    um beijo

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  7. sabes que ( e que seja da idade...) a gente é encaminhada (duende, fada, a mão de um deus com letra grande?!)para o que nos é devido ou nos é preciso no momento exacto desta vida, e eu acho que vir ler-te hoje (de madrugada) foi um desses arranjos dos entes celestes, quiçá apenas, e tem menos poesia, mas não deixa por isso de fazer sentido, talvez apenas o destino a fazer o seu caminho, quiçá seja apenas eu a querer dar um sentido em lugar de escrever apenas obrigada porque escreveste isto e eu achei belo (belíssimo!) como se eu mesma estivesse a ver a tela da Maria sentada numa casa que tivesse sido a minha
    muito, do fundo duma alma que nem sei se existe, te agradeço

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