Dona Ivone.
Dona Ivone afasta a mosca que teima em rodar-lhe o carrapito branco. A maldita zumbe-lhe mesmo na boca dos ouvidos, deixando-a irritada. A agulha desliza na laçada de um aberto. O crochet tremelica agastado sob os dedos ossudos. Sentada no seu banquinho ali mesmo junto à soleira da porta da cozinha, a que dá para o quintal, onde as couves e os tomates resfolgam sob o calor da tarde, Dona Ivone entope-se de irritação.
-Raios partam à mosca, murmura enxotoando-a.
Sacode o crochet, renda de rosas abertas e fechadas, estica o pano branco que lhe adoça o regaço, e de novo o girar sincopado do pulso direito. Um, dois, três e uma laçada. Um, dois, três e um aberto. E as flores vão tomando lugar no imaginário da colcha. Rosas. É assim o escorregar das horas na soleira morna da porta da cozinha.
De novo a maldita zumbindo, zumbindo.
-Diacho, se te apanho…
À ameaça, a mosca inverte o círculo, e vai zumbir para outra banda.
Recomposta, Dona Ivone ajeita os fios de prata soltos, alisa com as mãos semi-murchas a bata florida de lilás e de novo aplica-se na sua renda. O fio branco desliza suave enquanto as flores de abertos e fechados vão nascendo em gesto ancestral.
Melopeias sem som.
Na casa térrea de pedra, onde as janelas meio vesgas mal deixavam entrar a luz, onde as portas roncavam a idade, e onde a tristeza se pendurava nas paredes, viviam doze almas. A mãe gasta de tanta criançada mais da pobreza. O pai, coitado, joeirava a terra e depois a mãe. Só que a terra era mais estéril do que o ventre da mulher. Uma jeira de dez bocas.
Ivone nascera entre o terceiro e a quinta, era a quarta. Não tinha lugar, nem jeito especial a não ser o de carregar os penicos dos mais pequenos, esfregar o soalho e andar calada atrás das irmãs mais velhas. Nunca tivera atenção, a não ser quando fizera a primeira comunhão. Aí a mãe comprara um metro e meio de algodão branco e fizera-lhe um vestidinho. Fora o seu momento de importância.
Cresceu. Aliás espigou. Não ficou bonita, ficou diferente. Demasiado alta e magra, branca e ruiva. Os seus predicados tinham-se perdido entre as paredes da escola. Mal soube ler e fazer contas, a mãe de mansinho reconduziu-a ao à rotina dos penicos. Em vão a professora protestou. Em vão. A mãe não atinava com certas sabichices, como ela dizia. Tanta letra, não servia para criar almas. Era a sua sina já desenhada antes de ser linha.
A sua não.
Aos treze sufocava. Aos catorze murchava. Aos quinze extasiou-se.
Fé e Senhor. Um Só. A igreja, o cheiro a velas e cera. Silêncio, oração, espaço. Começou aí a martelar a ideia do convento.
Pensou. Pensou e decidiu.
Maculou-se de um fervor ardente. Um ar ausente e místico, uma beatice pungente, em tudo um jeito, o seu, o de ser diferente.
A mãe, mulher quase analfabeta mas perspicaz, mergulhou os olhinhos pequenos nos dela. Quis ler mas as letras eram demasiado trabalhadas. Ivone impávida suportou-lhe o bisbilhotar. Suspirou e continuou na sua placidez de noviça sem o ser.
A sua força.
Ladeada entre a mãe e o Sr. Padre que cabeceavam o sono das horas, sentia o resfolgar do comboio, o cheiro do tempo e o som de um mundo que se despedia.
Sem saudade.
A fragrância das maçãs verdes perseguiu-a toda manhã. Um cheiro capeado de sabor que lhe enchia a boca. O sumo ácido a cair-lhe no estômago. Aquele ardor a queimá-la. As faces a tingirem-se de calor, um suor frio a empapá-la.
E o comboio a resfolgar.
Foi um dia frio e cinzento. Um beijo e uma bênção. Acabou.
Uma laçada, um fechado.
Uma porta cerrada.
Três anos de orações, ceras, velas e compostura. Postulou.
Não seria noviça. Sentiu-o. Gostava daquela casa de correntes de ar, do cheiro a sabão, dos risos da rotina, das campainhas, dos incensos, contudo havia um vazio. Queria mais. Não sabia o quê. Não era pardal de gaiola. Teve a certeza disso.
Falou com a madre superiora. Mulher clarividente. Não a prendeu mas também não a largou. Colocou-a numa obra religiosa.
Três laçadas e um aberto.
Ivone nascida entre o terceiro e a quinta, de uma jeira de ventre e, vazadora de penicos, noviça sem o ser, era finalmente independente.
Conheceu o seu homem Juntaram-se noivando em abertos e fechados de um casamento por ser. O tempo juntou-os e o tempo separou-os. Os fios do novelo partidos.
Uma laçada rasa.
Ivone chegou. Chegou à vida. Não se sentou, nem ficou de pé. Caminhou em passos seguros. Tragou o pó da escolha, bebeu o vinho da luta. Houve um dia qualquer, sem data nem atavio que a recebeu. A partir de então Ivone deixou de ser a quarta, a vazadora de penicos, e passou a chamar-se Senhora. Assim foi pelos anos fora, até ao dia, em que tomou de novo o combóio e sentou-se na soleira da porta do casebre de janelas vesgas, fazendo as rosas da sua última vontade em abertos de crochet.
sei que há um texto a acmopnahar esta imagem .consigo ler algumas palavras quando entro pela "porta do cavalo" ,mas fico.me por aí
ResponderExcluirpela porta do cavalo
porque não há texto algum publicado no teu post
o que se passa?
.
um beijo ,Matezinha
Ah, as laçadas por vir nesse texto...
ResponderExcluirEnredaram-me em seus fios.
Grande Mateso!
Beijocas.
sabedoria de vida
ResponderExcluirem mais uma narrativa consistente
.
um beijo
Uma noiva linda
ResponderExcluirpara namorar eternamente
nas suas palavras
em passos seguros
no nosso Paredes
Bjs
... e continuas a "brincar" com as palavras como se fossem penas de Gaviâo Real... Bom encontrá-la miscigenada, traduzindo-te em contos, poemas, poesias, musicas e saudades!Feliz de sabê-la sempre em desafios com consoantes e vogais.Parabéns!!!
ResponderExcluirUma grande saudade de Você.
Beijo_da_rua
Muito bom! Adorei, Mateso. A Ivone cativou-me de verdade.
ResponderExcluirBom fim-de-semana e um abraço :)
Não vou exagerar (já ando para te dizer isto há uns meses...).
ResponderExcluirAs tuas crónicas podiam emparceirar com as do Lobo Antunes na Visão. Preferia ler as tuas do que as do autor que publica com o Loboa Antunes, semana sim, semana não.
Faz-lhes uma proposta de colaboração, com alguns exemplos... vai por mim... a blogosfera é demasiado apertada para ti... precisas de maior audiência.
Beijos.
Concordo com o comentário anterior.
ResponderExcluir:)Beijinho*
Excelente narrativa a agarrar o leitor até final.
ResponderExcluirEsta Ivone é bem representativa da ruralidade do Portugal profundo. Não sei bem porquê, lembrei-me automaticamente do verde minhoto.
Fiquei deslumbradamente presa nesta leitura...sem palavras. Beijos.
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