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24 setembro, 2009

Miséria

ciganos 3 por #rjc.

Miséria

Redonda, desgrenhada, Maria espreita na soleira da porta. Na anca, dez réis de gente olham por entre as melenas sujas. No rostinho, os regos das lágrimas, semeiam as manchas de porcaria. O ranho seco espalha-se entre o lábio e o narizito. Os olhos, esses, redondos e negros possuem a flor do mundo.

Maria Mãe.

Do lado de fora, Toninhe senta-se no tijolo de cimento, que lhe serve de cadeira. Coça a cabeça de cabelos pardos eriçados. A comichão desatina-o. Todo o santo dia, aquela coceira de cima para baixo a apertar-lhe as ideias. Espreita por entre as coxas magras. Fecha um olho. As formigas fazem carreiro. Sortudas arrastam as migalhas. Ele a vê-las, e a barriga a roncar o vazio. Molha os lábios. Coça a cabeça.

Pega no graveto caído na terra e atiça -as no carreiro. Elas zonzas desalinham-se. Logo, porém, retomam o percurso e, direitinhas seguem na fila indiana. Formigas rabigas.

Engole a saliva que lhe inunda a boca. Fome molhada. Maldição!

Puta de vida.

Ai, que o dia ainda vai a meio! O melhor é mesmo deixar as formigas e ir até ao quintal do outro lado. Os figos já pingam, os cachos estão maduros, e as maçãs pesam nas árvores. Tem que comer. Aquele rugido das tripas está a deixá-lo enjoado.

Levanta-se ágil.

O corpo é magro de um moreno mate, bordado de porcaria, está vestido de calções largos, sem cor, presos na cintura por um botão partido, mais de uma t-shirt feita de rasgões encaracolados. Os pés dançam descalços na terra cinzenta. As pernas morenas e baças tremelicam de fome. Está calor.

Uns dedos magros emaranham-se na nuvem crespa de cabelos baços. Coça e coça. Suspira. Danada a coceira, que já lhe pica o pescoço.

Deita o olhar para cima.

Aquele olhar fundo de mundo e aguado de miséria. Olhos que viram mais do que viveram. Olhar de adulto com olhos de menino.

Um olhar, um passo, um assobio, um trejeito. Um ronco.

Maldita fome!

Na soleira da porta, a mãe e a menina esfregam o calor do dia nos corpos balofos. Luz-lhe a pele de esticada. Rebola que roda a anca da mãe, quando muda a menina para o outro lado. Uma onda de carne vazia. A mãe, redonda, de olhos tristes e boca desdentada. A mãe que geme à noite quando o homem vem, e, que chora de manhã quando acorda. A mãe, que ergue os punhos no ar, escancara a boca e grita para dentro. A mãe que o sova e logo o aperta ao peito. A mãe que fala mal e cospe dor. A mãe, a sua.

Não sabe bem se ama, se a odeia. Não sabe, não.

Sabe que a miséria não mora ao lado, vive ali mesmo dentro deles.

Tem a forma de homem quando resfolga na cama da mãe, tem o jeito de fome quando as tripas gritam, tem a dor da diferença. Tem a cor da desgraça e a luz do ontem. A miséria é mesmo assim, um nada de tudo ou todo de nada.

Abre a mão. Vazia.

A menina chora e a mãe embala-a. Mas a fome não tem movimento. A mãe senta-se no tijolo. Tira a mama, aperta-a. Espreme. O leite é pouco. Apenas um breve esguicho. O mamilo na boca da menina enche-a. Só isso.

Logo o choro rebenta. Sentido.

A fome toma-a mais o engano.

Toninhe encontra o olhar da mãe. Súplica. Dor. Raiva. Ódio. Baixa os seus.

Sente aquele tremor por dentro. Sente a sua solidão de criança. Sente as algemas da miséria.

Num impulso desata a correr. Corre, corre, e corre. Não pensa, não sente. As pernas levam-no mais além, sempre ágeis, sem prisão, sem dor. Toninhe é livre!

Fugaz sentir.

O coração explode no peito. Cresceu mais do que a fome. O coração aquece-lhe o corpo. Amacia-lhe o sentir.

Toninhe tem a boca seca. Toninhe não respira. Toninhe tem o mundo nos olhos.

Chegou a casa.

A fome, a raiva, a diferença perderam-se na estrada.

Aqui a alma veste-se de Amor.


Vocalise by Rachmaninov - Rachmaninov


Ponto de Orvalho

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Ponto de Orvalho

Nem se chega a saber como
um inusitado sorriso,
um volver de olhos doentes,
um caminhar indeciso
e cego por entre as gentes,
chamam a si, aglutinam,
essa dor que anda suspensa
(e é dor de toda a maneira)
como o vapor se condensa
sobre núcleos de poeira.
É essa angústia latente
boiando no ar parado
como um trovão iminente,
que em muda voz se pressente
num simples olhar trocado.
Essa angústia universal,
esse humano desespero,
revela-se num sinal,
numa ferida natural
que rói com lento exagero.
Não deita sangue nem pus,
não se mede nem se pesa,
não diz, não chora, não reza,
não se explica nem traduz.
A gente chega, respira,
olha, sorri, cumprimenta,
fala do frio que apoquenta
ou do suor que transpira,
e pronto, sem saber como,
inútil, seco, vazio,
cai na penumbra do rio,
emerge, bóia, soçobra,
fácil e desinteressado
como um papel que se dobra
por onde já foi dobrado.

António Gedeão
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12 setembro, 2009

Em Setembro

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Em Setembro.

Vinham não se sabe de onde. Vinham trazidas pelo vento, novelos de algodão mal embrulhados que, se sentavam no ar, olhando de cima para baixo, à espera não se sabe bem de quê.

Saber, sabia-se, mas esperava-se. Esperava-se então pelos sinais.

Sinais de Setembro.

Entretanto a neblina avolumava-se nas manhãs por acordar, porém displicente esvaía-se logo que o Rei se punha a circular. O vento, esse, porque era traiçoeiro bufava de vez enquando, de mansinho, mas lá ia despindo uma folha aqui, outra ali, ou pior, simplesmente sugando-lhes o resto de seiva. E a terra cobria-se de amarelo de despedida.

Depois, a varinha mágica estremecia e as cores rebentavam de ser. Um esplendor. Uma paleta. Nas árvores, pelos montes ou nos bardos, o vermelho e o rosa velho, amarelo e o laranja, o grená casado com o ouro velho e o verde amarfanhado. Que panóplia! O olhar guloso bebia-as compulsivamente, tal como o bêbado sorve o líquido. Os sentidos acalmavam, por instantes. Em frente no monte que vestia a cidade, a urze tomara tom. Ao longe parecia açafrão. Aquele amarelo bebido de sol da tarde aquecia os olhos. Um aboboral maduro, assim era os amarelos espargidos na terra amornada de luz.

Liquefeitos os sons do vento evocavam a dádiva do tempo, o presente. O espírito jazia ali mesmo na dobra, entre o antes e o depois, soltando-se na despedida e acenando à chegada.

Verão e Outono.

Sol e neblina.

Riso e sorriso.

Respirava-se o ar e bebiam-se os primeiros pingos de chuva. Refrescava-se. Exauridos os cravos-da-índia, amarelos, vermelhos e castanhos cujo odor forte se desprendia no canto do jardim, acordavam da letargia que os tomara e multiplicavam-se numa rapidez apressada. E no dia seguinte já sorriam alegremente. Nas árvores, os figos maduros e leitosos piscavam matreiros o olho às mãos, que os procuravam.

Oferenda mélica entreaberta em gomos amarelos rosados.

Feneciam as folhas. A despedida.

Letargia. Segredo.

Em Setembro.



Aranjuez Mon Amour - Gheorghe Zamfir
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09 setembro, 2009

Sapatos Vermelhos



Sapatos Vermelhos

Olha de um lado para o outro. Não vê, porém olha. O hábito.

Na estrada de asfalto ruço os carros passam, apitam, contorcem-se e deslizam. Chamam-lhe trânsito.

Ela olha. De um lado para outro. Pára mesmo junto á orla do passeio. Na quebra entre a estrada pintada de riscas brancas e a pedra polida. A biqueira dos sapatos vermelhos oscila no ar. O salto prende-se na fenda entre os cubos de basalto, mesmo na ponta da estrela que, azouga o passeio.

Puxa. E puxa de novo. Solta-se, porém a capa ficou. O salto fino ficou despido.

Olha o semáforo. Está verde. Atravessa. O passeio de calcário em ondas de basalto estende-se à sua frente. Percorre-o apressada.

As buzinas mais o bruaá dos carros retumbam memo ao seu lado. A cantiga da cidade. O Retorno. Setembro.

Estuga o passo, porque o tempo urge. Tem que andar mais um bom par de metros.

Sob o cotovelo despido, aperta uma pasta azul. A tiracolo a mala que subtilmente lhe vai dando pancadinhas no côncavo da cintura. A bolsa é vermelha como os sapatos. Os sapatos que começa a arrastar. Os pés estão moídos, apertados e suados.

O dia ainda vai a meio.

Decidida pisa com força. Mais um passo e um carro que passa. O correr escanzelado de vidas.

E ela que tem que caminhar, e o sol quente a apertar. Os sapatos a moerem-lhe os dedos, os calcanhares, a vontade.

Ai a cidade!

Mais uma rua, uma passadeira e um parquezinho, daqueles escondidos, mas tão verdes e sossegados. Ali mesmo, do outro lado da avenida, onde os carros correm em linha recta no asfalto pegajoso do calor. Mas ali sob a sombra do choupo, um banco vazio descansa sereno. Fecha os olhos. Mentalmente vê-se sentada soltando os pés dos calabouços vermelhos.

E se fosse? Ninguém saberia.

Olha por cima do ombro num trejeito inconsciente. Ninguém a olha e todos a vêm. É assim na cidade. Olha-se sem se ver. Desvia-se.

Na pequena alameda os canteiros triangulares espreitam meio assustados os sapatos vermelhos. E as canas da índia vestidas de vermelho ou açafrão espremem-se todas para os ver. Uma novidade.

No banco vermelho senta-se. Tira os pés morenos dos sapatos, remexe os dedos libertando-os e graciosamente traça a perna. Um sapato tomba, o outro direito e alinhado arrecada a ponta do pé que se senta no seu calcanhar.

O alívio é grande. De novo olha em redor. Sossego. Para onde foi o barulho, o sol, o fumo?

Bah, que importa. Que bem se está ali! Espreguiça-se de forma lenta e deliberada. Sorri.

Uma brisa e um abanar de folhas fá-la acordar para o tempo. Olha o pulso e pensa. “Tenho que ir. Já tenho os pés mais aliviados”

Calça os sapatos. Levanta-se. Pega na pasta. Coloca a mala ao ombro. Olha em frente por entre o arvoredo.

Os sapatos vermelhos calcam a alameda. Há de novo um murmúrio nos canteiros. A balada antes do sono. Visão quente dos últimos dias de luz. Suspiram os canteiros que se arrecadam em slow motion.

A cidade surge crua e amarela aos seus olhos. A luz violenta da tarde ofusca-lhe o olhar. Nem os óculos a protegem. A canícula envolve-a numa onda. Gotas perlam-lhe o pescoço empapando os cabelos negros.

-Maldita cidade! Que calor! Pensa.

Desce o olhar. Tem que atravessar. De novo junto ao semáforo os sapatos vermelhos equilibram-se nos seus saltos agulhados. A biqueira já não oscila, calca pesadamente o traço primeiro da passadeira. Quase se arredondou. A transpiração e o palmilhar afearam-na.

Sapatos vermelhos.

Entra no edifício. Sobe no elevador. Abre a porta. Atira-se para a cadeira. Joga no ar os sapatos.

Depois, poisa a pasta, a mala. Despe a saia e a blusa. Veste a bata. Pega na esfregona e no balde vermelho.

No chão a água vestida de espuma refresca-lhe os pés. Murmura:

-Livre!

Do outro lado, abocanhados no chão os sapatos vermelhos gotejam o peso da caminhada




PEEPING TOM Theme -- Brian Easdale __ 1959 (Michael Powell, UK) -





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