Gaivota
No corpo seco a camisa de quadrados adeja em balão. As calças voejam quais velas ao vento. O casaco castanho abre-se de par em par lembrando as portadas de uma janela. Os parcos cabelos cinzentos esvoaçam em desalinho. O rosto fino de traços gastos perscruta o penhasco. Pisa a terra húmida sulcada de veios salgados.
E o mar ruge a sua canção de memórias. O olhar esquadrinha aqueloutro verde que se enrola e ulula em lamento Sente a alma expandir-se. O desassossego surdo do seu sentir transborda. A espuma ligeira espraia-se na praia deserta. Está só. Ele e as gaivotas que desfloram as ondas e depois vêm dançar sobre a sua cabeça grasnando a vitória da vida.
Aspira a humidade marítima. Afila o pensamento e cruza os braços sobre o peito. A memória varre-o acutilante. Dói o recordar, soluça o tempo. Uma gaivota plana de asas abertas Segue-a com o olhar. Entreabre os lábios ao movimento posterior do pescoço. Um reflexo. O vento açoita-o. Aperta o casaco contra si e caminha.
A gaivota imita-o. Desce e poisa na areia molhada. De costas para as ondas. Não a seu lado., mas atrás. Ligeira e breve meneia-se debicando o ar. Os passos do homem são as suas pegadas. Traços triangulares na areia embebida de sal e espuma.
O vento sopra rude no rosto do homem. Fustiga-lhe os olhos que lacrimejantes enrolam o sal do dia. Na gaivota, o vento, penteia-lhe o branco das penas.
E o mar escancarado rebola-se em fúria. Ondas verdes, crispadas entrechocam-se e rebentam estrondosas no areal frio. O eco irado do mundo. A consciência aquosa do Ser. O deslizar por entre os altos e baixos da vida e o eclodir final das tensões. Tão simplesmente, ali em toda a geografia líquida. Vogar por entre as águas num ribombar de emoções, rebentar em ondas fortes e possantes ali mesmo na praia deserta. Recolher de novo e recomeçar. De mansinho, serenamente e, engrossando, engrossando até que a explosão vem de novo vomitar o areal. Assim sempre, imutável e perene.
O mar.
A gaivota olha o Homem. Minúsculos botões negros inquisitivos. A consciência do momento. Não lhe responde. À liberdade não se responde, segue-se.
De repente param. Perscrutam-se, avaliando-se. Medem-se.
Ela ladeia o pescoço enrolando a cabeça, o bico movimenta-se como se murmurasse o chamamento, e ei-la a esvoaçar. Plana em linha recta no areal. Grasna o seu cantarolar vivo. Assim repetidas vezes, até que o homem larga o seu mutismo, deslaça os braços e, compondo os óculos que teimam em descair-lhe, grita:
-Julgas que é fácil seguir o vento, julgas? Julgas que não queria ser pássaro e partir? Julgas? Julgas que não sei que a raiva me consome? Julgas que não cuspo o silêncio? Tudo é fácil para ti. Tudo. Não tens lutas, não tens que sobreviver. Não tens! Ah como agonio em cada manhã, quando tenho que olhar a gente, quando tenho que compor a figura e disfarçar-me de Homem. Eu sou um lobo, um solitário, preso na alcateia do mundo. Desprezo-a e amo-a. Pertenço-lhe e ela pertence-me. Ah! Rasgo-me em cada noite ao ouvir os uivos vazios dos lobos meus irmãos, quando lhes saboreio a hipocrisia dos actos e sorrio ao embuste .Ah, o orgulho impede-me de rasgar a mentira. E pactuo. E de novo em cada madrugada a raiva irrompe qual nascente, cresce num novelo duro de arame que me segura e dilacera. A chaga do sentir. Não suporto a contradição. Sou Lobo. Sou solitário. A alma não me transmuta. O corpo é a minha caverna. O meu sentir é a minha essência, a minha razão é o crivo dos meus dias. Latejam-me as têmporas, dói-me o pensamento e salgam-se-me os sentidos. Deixa-me, deixa-me. Sabes? Não tenho asas, não tenho ousadia, não te esqueças que sou lobo. A minha alcateia espera-me!
E a gaivota num grasnar ensurdecedor planou para o mar desflorando onda que a tomou.
.
Love On The Rocks - Neil Diamond.
a cidade
ResponderExcluirtoda cinza
encapuzada de chuva.
ai que saudade do sol...
paro
tiro o capuz!
são os passos frios da cidade.
tudo chega,
tudo parte,
e sobra
apenas a sombra
do ontem.
chuvoso.
cinzento.
o que fazer??
a mim
apetece me
uma longa espreguiçadeira
e olhar
com saudades
o sol.
acredito
que se nascesse outra vez
seria gaivota.
porque gosta de azul
e sabe voar.
viaja sem por os pés no chão.
e
é Sol...
até quando chove!
Boa semana!
Bjo
E assim é nosso processo de criação na escrita. Vem de longe como uma onda, avoluma-se, mas, por vezes, espraia-se fraquinha.
ResponderExcluirDoutras vezes, quando menos esperamos, resulta forte e pujante, lavando corações e mentes. Longo alcance. Como esse texto da querida Mateso.
Beijocas.
Texto bem construído
ResponderExcluiruma gaivota que voa sobre ondas
de azuis
que desejávieis
são diferentes
a conquistar
olhos nos olhos
Que coisa bem escrita e com aroma!
ResponderExcluirE não sou só eu a ter memórias ("E o mar ruge a sua canção de memórias") o mar é mais antigo e, se caímos na terra, é no mar que os "os rios que somos" desaguam.
:)
Obrigada.
Madalena
mesmo não tendo asas, o lobo conhece a floresta
ResponderExcluirAlgo em mim ficou estranho depois de ler-te.
ResponderExcluirD.
em crescendo .de salto em salto vais transformando o conto que se transforma em algo de muito belo quando tu própria te perdes na narrativa e deixas que seja ela a comandar.te .quando te despreocupas e deixas de adjectivar .então ,é o substantivo que substantiva ( propositada redundância )e enriquece - de per si - a trama.
ResponderExcluirgostei muito ,sobretudo a partir do diálogo//monólogo
.
um beijo
Não é fácil seguir o vento
ResponderExcluirmuito menos contrariar o vento
Que re-prazer foi voltar a ler.
ResponderExcluirTudo o que é bom perdura, no meio desta "alcateia". Felizmente.
:)
Lindo...
ResponderExcluirFiquei com vontade de voar...
Muito bom mesmo!
ResponderExcluirE uma gaivota pode ser um dos melhores interlocutores possíveis...
P'la liberdade: um grande beijinho neste nosso Abril :))