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Lagash
Deitada no beliche do seu camarote, Lagash embala-se no som do vento, que lá fora abocanha o estribilho do tempo. A oscilação do navio torna-a sonolenta. As águas do oceano cinzentas de tédio cospem a sua saliva no vidro da vigia. A agonia, que a veste por dentro, contrasta soberbamente com o seu aspecto. Para trás ficaram as ruínas do seu mundo imersas no soberano desdém dos interesses.
Pela retina dos seus olhos cansados passam, em câmara lenta, as imagens dos últimos dias, quando os ares cuspiam o fogo do ódio. Ódio feito em ambição de irmãos.
Lagash soergue-se, passa os dedos pela massa pendente de cabelos negros espalhados em seu redor, e, pestaneja à visão dilacerada, que teima em permanecer dentro de si. Aquele vulto abocanhando a terra de pernas retorcidas e mãos enclavinhadas no ar que lhe acabou, o outro de olhos vítreos e rosto retorcido, um outro encolhido pela dor da bala recolhida na sua carne, aqueloutro de boca escancarada, olhar perdido no amanhã que não veio. O vermelho do sangue empapando o cinzento do quadro. A cor que escorre da tela por excesso. As cores da sua terra, todas em excesso de vermelho, cinzento, negro e raiva.
O crivo das paredes, os esqueletos de ferro retorcidos, o pó, a cal, a argamassa esboroada, o cheiro de pólvora, o suor liquefeito em rancor, os olhares baixos, cravados na terra árida de vontade e amor. O vento quente que crepita nas ruas faz crer que a vida se esconde por ali, algures. Na esquina perdida de um pneu, no olhar ferido da criança, na burka negra que corre ziguezagueando na busca do alimento ou talvez, quem sabe do corpo caído no asfalto estilhaçado.
E a memória pulula, gira, envolve, amarga, fervilha.
As mãos que se enclavinham, as unhas que rasgam, a dor que mitiga a memória.
Lagash rebola o corpo no beliche, puxa da almofada e esconde o rosto. A memória recrudesce em tons mais ácidos. O marido e a filha mortos. Cá fora perto da palmeira do quintal. Um míssil. Uma explosão. Fumo e cheiro de carne queimada, sangue. Pedaços da sua carne espalhados aqui e além. O horror, a ânsia, a dor. Sentir que as suas entranhas foram rasgadas, sentir, que a sua alma foi roubada, sentir, o nojo, o vómito de estar viva, sentir, o quebrar da vontade, o uivar da mente. Tudo isso. Ajoelhada na terra, bebe o pó enxofrado da morte, grita o horror da insídia dos homens, daqueles que se alvitram seus irmãos. Um irmão não mata, não rouba, não rasga. Um irmão ampara.
Sacode-se. Toda.
Não sorri. Levanta-se e maquinalmente puxa pelo xaile e cobre os ombros magros. Encosta-se à vigia e contempla o mar. Na vasteza do horizonte os seus fantasmas diluem-se. O azul cinzento mergulhado lá ao longe por entre uns raios desmaiados de sol acordam-na para a sua situação real.
É uma refugiada. Política, assim definida.
Lagash.
O nome, a terra, o rio, o Tigre, leito do mundo e cópula da humanidade. Aos milénios de vida sobrepõem-se, agora, os segundos de morte. A sua terra de onde lhe vem o nome. O seu destino parou aqui. O resto, o resto é a sombra de si, da sua alma partida.
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Londres
O ritmo alucinante do jornal torna-os quase histéricas de prazer. As notícias que povoam os teclados e monitores, os telefones que ressoam ininterruptos, conferem aquele ar desarrumado mas fervilhante. No seu gabinete envidraçado, James deita o olhar sobre a redacção. Conhece-os a todos. Os bons, os aspirantes e os trepadores. Cada um a seu género. Mas no final a equipa é soberba.
Aqui conta-se o mundo, jogam-se os destinos, constroem-se os mitos e arrasam-se os conceitos. Todavia, momentos há, em que também se edificam as boas vontades e se vendem as histórias de vida, mas pouco. O bom não é vendável, a miséria é ávida em pormenores, qual fiel de tempos e vidas em desequilíbrio.
Hoje, ele, James Previl, tem uma reportagem fabulosa. Uma sobrevivente, uma mulher. Lagash Mashhadani, a irmã de Tayseer al Mashhadani, a líder dos sunitas feita refém, e posteriormente libertada. Lagash é notícia. Tem a equipa de reportagem pronta para recebê-la em Heathrow, depois de amanhã.
Lagash será a protagonista de uma série de crónicas sobre a verdade do Iraque. James, pese os seus sessenta anos sente-se ligeiramente excitado pelo impacto que prevê ir alcançar, e, sobretudo pelo aumento previsível de vendas Uma mais -valia.
Não é implacável nem desumano. Não fora ele, outro, seria. O clima de luta pelos objectivos lucrativos torna as pessoas metodicamente especulativas. Ele não é diferente, tem um lugar cobiçado a defender.
Esfrega as mãos e levanta-se. Cá em baixo em Fleet street a vida move-se inexorável. O corrupio das horas, dos passos, dos olhares, esgares e sorrisos dão o tom à sua cidade. Londres merece o esforço, merece a notícia.
Dois dias. As folhas riscadas de negro serão manuseados por milhares. A vaidade fá-lo opado. O rosado da face balofa rebrilha a par do cinzento dos olhos. Um fulgor de vitória que trinca antecipadamente.
Senta-se na sua cadeira, gira embalando-se, um sorriso de beatitude cai-lhe do rosto. Fecha as pálpebras, cruza os braços unidos as pontas dos dedos. O sono doce alastra-o. E ela vem, o seu rosto, a sua mágoa, a sua história. A pessoa. Ela que lhe crava o dedo na carne, dilacerando-o. Aquele olhar de censura e ódio também. Acorda. Volve o olhar pelo cubículo. Ninguém, não podia ser. Mais uma comédia de enganos vestida de Morfeu. Puro engano!
James Previl predador de desgraças, gente do mundo encolhe os ombros e esfrega as mãos.
Somente dois dias. Uma pequena espera.
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Lagash.
Novo agitar, outra sacudidela, outro frémito expandido.
Abre a porta e sobe até ao deck. O vento fustiga-lhe o rosto e o corpo. O mar revolto ondula em vagas que a fazem baloiçar. Enfrenta-o. Crepita de fúria. As vagas criam berços cobertos de lençóis de espuma. A chuva batida, vinda sabe-se lá de onde ensopa-a. Agarra-se. Bebe a água, e o sal, e o vento, e o dia.
Bebe. Bebe fundo, bem fundo. Como se lhe purificasse as entranhas em chaga. Sente um ardume, uma dor fina que se alastra que a envolve. Está viva! A sua maldição.
Esperam-na do outro lado. Sabe que a esperam. Sabe as regras do jogo que vai jogar. Sabe que tem a vida por um fio. Sabe o risco. Valerá a pena? Não teme porque nada tem. É livre de razão e coração.
Fica ali, parada em silhueta ondulante ao sabor do mar. A noite cai. O negro cobre-a. Mais um véu, de tantos que a vida a macerou. Porém, este agiganta-se na sua vontade, envolve-a no precipício do tempo. Um gesto, só um. Ei-la. Ali, vogando entre o céu e o mar, no rasto da liberdade, no amanhã renascido.
les feuilles mortes - nana mouskouri
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O longo caminho
ResponderExcluire árduo
para aprender a voar
o salto
ResponderExcluirmortal
amanhã "pode" esperar
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um beijo
Volto para apreciar a leitura com a calma que se impõe face aos teus belos textos :)
ResponderExcluirO blogue está lindíssimo!
Amei o teu conto no Ticho...
ResponderExcluirLá,como aqui, a água...
e, no entanto, a água é fonte de vida!
Bijus
Muito bem saudações amigas e bom domingo
ResponderExcluirViva!
ResponderExcluirGostava de recolher opiniões sobre este texto
agradeço e desejo um bom domingo
o sonho a conquistar que tantas vezes escorre por entre os dedos
ResponderExcluirO verdadeiro tiro no ecuro.
ResponderExcluirDivino.
A Valsa Com Bashir"
obrigada, menina! vestiu-o, sim! já emendei
ResponderExcluirsoberbo!
ResponderExcluir(sugiro:não repetir, nos dois primeiros parágrafos, o verbo cuspir)
perdoa que não tenha lido antes - imperdoável!
de hoje em diante, vamo9s iniciar uma leitra crítica dos nossos textos? gostava muito
um abraço