A JAPONESA
Haste de pessegueiro florida e vibrátil. Move-se na doçura do vento e sorri na comissura da neblina. A Japonesa. Yoko. Ondeia-lhe o corpo num movimento subtil de tempo. Parece uma pintura, porém, o agitar de ombros revela uma figura de alma e carne. Os passos breves revelam umas zôri vermelhas e pretas. O quimono é vermelho, longo, pesado, bordado em fios brancos, negros, e cinzentos. É majestoso. Demasiado, talvez, para o franzino corpo que veste. Yoko. Dezassete anos. Cinquenta de compostura, milhares de tradição. Na mão, o leque dança ao compasso do esvoaçar dos pássaros da veste. As asas batem e rebatem num adejar de penas e gestos. Lembram a ave em beiral. Criação redonda de um ninho. Sementeira minúscula de vida.
Levanta-se.
Os pássaros adejam à sua volta. Lenta e graciosamente compõe o quimono. Sorri. Duas pequenas covinhas inundam-lhe o rosto oblíquo. Os olhos amendoados, negros e líquidos perscrutam em redor. Tudo vazio. A ordem reveste o tempo.
A fotografia parou. Yoko solta com violência o pesado quimono. Agita-se, vivifica-se. A energia dos anos estala-lhe nos músculos, e rapidamente atira as zôri para um lado. Está quase nua. A elasticidade do corpo jovem vibra nos movimentos rápidos Quer fugir dali. Quer fugir do mundo desenhado que a sufoca.
Yoko menina-mulher.
Um pássaro em adejo de asas. Um corpo de mulher em casulo de criança.
O passado despido de presente. A tradição rasgada de amanhã.
Veste os jeans, enfia o camisolão. Calça as botas, atira rápida com a massa negra de longos cabelos, pega na bolsa, abre a porta, sai, passa pelo salão acena um adeus, e, de um pulo salta os degraus. Está no jardim. O oásis burilado da casa. Nada fora do sítio. O subjugar da natureza. Belo ao olhar, perfeito no gizar, tremendamente sufocante no palpitar.
Yoko não pertence à casa. Não faz parte do jardim.
Do outro lado da cidade num prédio cinzento de um apartamento descorado, uma janela entreabre-se ao bafo cansado da multidão. Nas paredes gritam as cores que os pincéis soltaram. O vermelho e o amarelo compartem o espaço com o verde e o azul. Em permeio fica o cinzento do espírito. A criação parada em dia roto de inspiração.
Ken-ichi rebola o corpo na esteira, coloca os braços sob a cabeça e fita o tecto encardido do tempo. Suspira. Maquinalmente olha as horas. São cinco da tarde. Ela sem vir. Esvaziou-se. A inspiração também. Está pardo de sentir. Precisa de luz. Precisa dela. Da garota. Da liquidez do olhar enviesado, da humidade da boca carnuda. Da agilidade infantil dos seus músculos. Parece um boneco sem corda.
O seu vício.
Amar pode ser um vício. Yoko é o seu vício. Ela sabe-o. Ela joga. Ela tem dezassete anos mas séculos de experiência. Aquela boneca de vida que o afoga e lhe extirpa o alento em cada segundo. Sem ela não é nada. Ele o grande, o primeiro Ken. Ken Shimazu. Um nome de peso, uma tradição o também.
Estende a mão e apanha o maço, puxa um cigarro que acende. Inspira aquele sabor forte que lhe entope os pulmões mas acorda o cérebro. Um estímulo. Tem que pensar. Inebria-se. Parece -lhe que o tecto girou. Talvez. A espiral de fumo desenha cavalos em fuga. A fuga que os sentidos teimam em não querer, mas que o cérebro projecta no ângulo perspectivado da lógica.
Treme agitado pela falta do vício, de Yoko. O corpo grita-lhe. Tem fome. Mais uma baforada. Semi-cerra o olho direito. O esquerdo dilata-se e depois enevoa-se. Arde-lhe.Com a mão esguia e borratada de tintas afasta os cavalos quase desfeitos. O tempo esboroa-se na tarde de Maio. A cerejeira da colina já está em flor. Ele sabe, ele viu as flores brancas esvoaçarem na neblina da manhã, das pétalas que lhe roçaram a face Sentiu-lhes a macieza quando o vento as fez dançar. Ela que não vem. Yoko.
Ken tem quarenta e cinco anos. Não são muitos. São alguns. Não aparenta., não quer aparentar. Não pode. Yoko é menina. Não, não é. É mulher, a sua fêmea. A sua musa. Sem ela não tem inspiração. Não tem alento. Deseja-a sempre, sempre mais. Consome-se nela. Na loucura do corpo, na combustão da alma. Perde-se.
Senta-se.
Está perdido. Despido. Roto de vontade.
Levanta-se.
Agita-se, ajeita-se. Olha-se. Um homem ou uma projecção? Uma figura? Uma Pessoa? Tudo e nada ou antes, nada de tudo. Ken amassa o cigarro, espreme-o no cinzeiro. Depois entreabre as palmas das mãos que desenha em leque. Deixa que o raio deslavado de luz as inunda. As suas mãos. A sua vida, a sua arte. Afaga-as e depois beija-as molhando-as da raiva que brota de si.
Passos largos encurtam o espaço. Vigoroso, pega nos pincéis, traça, cria, esparge uma sombra, aligeira um traço Está febril. Explode. Ei-la que palpitante espreita, aqui, ali, mais aqui e ali, além e mais e mais. Ah! Uns olhos que sorriem, uma boca que murmura, um rosto. Um corpo. Ela toda. Yoko. Ondula na tela. Perfeita. Musa.
Ouve-se um trinado. Uma ave. O artista pára. A sua obra. A sua obra tem alma. A sua mais bela criação tem alma. Olha. Olha. Aspira o cheiro fresco das tintas que o tornam mais pleno ainda. O seu alimento.
É noite. As sombras invadem o quarto. Levanta o olhar. Três figuras. A Arte, o Homem e a Alma.
Japan in me by Zobova , Elena
Aurora - Vanessa Mae
Simplesmente soberbo!! Ela não mais virá...muitos beijos.
ResponderExcluirTrês prazeres de que desfruto há algum tempo: pintar, admirar a tela após a última pincelada e... ler-te, Mateso querida.
ResponderExcluirBeijos!
Selma Barcellos
Três prazeres de que desfruto há algum tempo: pintar, admirar minha obra após a última pincelada e... ler-te, Mateso querida. Um renovado momento de elevação...
ResponderExcluirBeijocas!
Selma Barcellos
Esqueço-me da história contada
ResponderExcluirpara saborear a forma
de renda fina
a arte de manusear os pormenores
e as palavras
Bela trilogia
Muito bom
BJS
excelente este teu texto ,Mateso . um cheiro muito forte a Marguerite Duras com um desfecho extraordinaria mente bem conseguido
ResponderExcluirgostei muito deste teu texto .há muito que não te lia com algo que me enchesse "a alma"
.
um beijo
Um filme.
ResponderExcluirAssisto escondida.
Por vezes sufoca-me o fumo do cigarro ou apenas a ansiedade dele. Por ela. Pela tela. Pelas mãos olhadas na raiva do que não agarra.
Belissimo, belissimo.
Palavras que são imagens.
Um beijo Querida Azul.
Lê-se como quem vê.
ResponderExcluirMuito bonita esta tua tela de sensibilidades intrínsecas a quem cria.
Arte Homem Alma.
Um beijo
eu estevi lá... fizeste-me estar... sentir o cheiro a tintas, ver o fumo...
ResponderExcluirbeijo
Tive a sensação que não estava a ler mas a ver tudo o que contaste, e tão bem contado.
ResponderExcluirum bjo
e na criação todo o modo de visualizar e recriar os momentos
ResponderExcluirA Musa é paixão
ResponderExcluirA Arte é paixão
A Alma, a paixão do Homem
e só quando assim o entender poderá criar.
Belíssimo
beijinho
regresso apenas para deixar um beijinho e perguntar - tens continuado com o facebook ou ,hoje ,fechaste.o?
ResponderExcluireheheheheeh
.
um beijo
( já está!)
Este teu conto é magistral.
ResponderExcluirParabéns.
Já li contos de grandes escritores, de um que por acaso é japonês, que não chegam aos calcanhares deste.
Parabéns, és uma escritora.
Beijo.
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirQue me perdoem as europeias (das americanas nem falar... porque não prestam para nada), as japonesas são do melhor que conheci.
ResponderExcluir(rs)
Desejo-lhe bom fim de semana.
Cumprimentos meus.
D. deixou um novo comentário sobre a sua postagem "A JAPONESA":
ResponderExcluirVocê não quer saber?
Eu quero. Vote.
D.
A música é um encanto .Seu bom Canto.
Mateso querida, permita-me o tratamento, pois é assim que lhe sinto.
ResponderExcluirDevo aos amigos Luiz Quintela e Selma, o prazer de saborear esse teu jeito de encantar leitores...
Com certeza, o selo Blog de Ouro, fez jus a escolha. É um canto para ser visitado e apreciado com espírito aberto.
Obrigado por sua visita ao Sempreviva. O post que me deixou e o link, são dois mimos de carinho!
Voltarei infinitas vezes ao seu encontro... sou afeita a aprender coisas que tocam os sentidos... que transmitem bons sentimentos!
Beijos de carinho e amizade.
Paz & Bem!
Belo texto sobre a JAPONESA...
ResponderExcluirGostei de ler. Fantástico!!!
Convido-te a leres o meu ultimo post sobre
MOMENTOS NA ÍNDIA:
Para subir ao Forte Amber, há uma quantidade enorme de elefantes, até fazem fila, para os turistas se sentarem na cesta e partirem encosta acima.
Como muito bem escreveu o meu amigo Mocho:
..." sem dúvida uma experiência que nunca se esquece, os elefantes sobem a montanha com os turistas que chegam aos magotes para serem recebidos ao som estridente e majestoso de cornetas e tambores como se de verdadeiros marajás se tratassem..."
Bom fim de semana.
Beijokas
Convite para Long Drink "Just The Way You Are" no Angel Bar. Monstros Electrónicos II, verídico... Bom Fim de Semana.
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