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23 novembro, 2008

Bemvinda

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Bemvinda

Olhos remelosos, boca desdentada de gengivas mirradas, corpo esquálido semi-coberto por um farrapo descaído, unhas cor de viuvez, cabelos hirsutos e pardos. Pele cor de cera. Rosto sulcado de ódio e desprezo. Mãos ávidas de tudo e vazias de nada. Na infinitude de um instante brilha o desprezo da vida, no crispar das mãos o esvair da raiva alojada no côncavo do destino. É velha. Velha de anos, mas, mais ainda, velha de vida. Chamam-lhe Bemvinda. Como se o nome fosse maldição de uma vida. Bemvinda em quê e onde? Bemvinda das Dores. Ei-lo todo, todinho como se o epitáfio tivesse sido feito aos dias de nascer. Bemvinda mendiga o pão de cada dia, de mão estendida, e lábios retesados. Há raiva no seu pedir, há desleixo no seu sorriso. Desleixo não, antes simples esgar de impotência, de descrédito. Bemvinda figura das nossas ruas e vielas, escondidas à luz do dia em subterrâneos de desdém. No vai e vem dos transeuntes, a figura esbate-se por entre o colorido da multidão, ou simplesmente na chuva de cada dia. Um olhar, um pestanejar e logo o esquecimento. Nem sequer uma dor na alma, qual unguento da razão. E o mundo salta por entre as bermas da pobreza. Bemvinda senta-se no degrau da escada, aquele que lhe serve de majestoso sofá já vai para quinze anos. Espraia a saia desbotada de cores mas viva de roda. Pousa as mãos vestidas de luvas rotas no regaço descarnado. Estende o rosto pálido ao sol da tarde e respira. De olhos fechados e ouvido alerta, bebe o som da tarde de domingo, que se entorna por entre passos das gentes. Vozes, conversas aqui e ali. A orquestra da vida. Respira Bemvinda. Não estende a mão ao esmolar. Hoje não. Hoje é domingo. Hoje precisa do silêncio da sua voz. No mutismo reside a preciosidade do seu sentir. Enrola-se em golfadas de água salgada e terra negra calcada. É como o areal de onde partiu. Vazio, seco e inóspito. Um eremitério de tristeza. Um soprar de almas perdidas uivando as sílabas da pobreza. Fugiu. Fugiu. Chegou à grande cidade. Pediu, suplicou por trabalho. Não achou. Então rolou o corpo, abriu o mundo da carne, e, ei-la de rua em rua. Esquina fétida de desejo, quarto esconso de prazer, bolso minguado de algumas notas. A aleivosia do seu ser. O urdir sem teias do seu destino. E foi assim que de esquina, quarto, cama, sexo e sangue, chegou às escadas que lhe servem de sofá. A doença apanhou-a. Não tem cura. Está tomada. Mirra no dia-a-dia. As manchas malditas envolvem-na. A comiseração visita-a nos olhares de rostos efémeros. Não sente piedade, não. Isso é poesia. Sente asco, apenas, não de si, mas do mundo. Bemvinda das Dores olha o azul de cima maculado de branco. Semi-cerra os olhos. E sente-se ir. Deixa que o fluir a arrecade. Partiu. Do outro lado, por entre as brumas o vale vestiu-se de sincelo em fantasmagóricas figuras de gelo, miríades flores vítreas. O irreal povoa o lugar. O frio corta a pele. O vento assobia a canção de embalar. Deixa-se envolver na melodia, no misticismo que o vale emana. Há paz no murmúrio do mundo. Chegou finalmente ao seu destino.

Silk Road - Kitaro

16 comentários:

  1. ... profundo, dramático, real!

    Não vou acrescentar nada a esta história de vida sensivelmente escrita! Sempre uma terna visão das mulheres do nosso país!

    Sensibilizada pelo olhar afectuoso em 'fragmentos'!

    Uma 'linda' tarde, amanhã... agradeço muito o carinho, mas ser-me-à quase impossível partilhar 'in loco' tua alegria
    :(

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  2. Belo, sensível, com a tua marca. Um texto que incomoda pela verdade.
    Gostei muito de te conhecer. **

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  3. Como sempre, um texto de enorme força, para nos fazer pensar.

    Uma excelente semana!

    Beijinhos

    Mário

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  4. Excelente escrita.

    O destino dela é o nosso. Esquecemos isso com tanta facilidade...

    Obrigada pelo prazer de ler. :)

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  5. Pungente. Assim, tout court.

    Beijocas,

    Selma

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  6. Tira o fôlego
    Faz vertigens
    e dobro-me com a dor no estômago pelo soco

    beijinho

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  7. Esplêndida capacidade para "vestires" todas as peles!

    Um beijo grande

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  8. muito bem, bonita composição
    saudações amigas

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  9. Um retrato intenso de uma vida no seu fim. :(

    Bem escrito e tocante, como sempre!

    Um beijinho

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  10. Boa tarde,

    Quase não consegui respirar! Detesto, como tu detestas, injustiças!
    Na verdade quase todos estão nas “tintas” para as injustiças. Importa é estar na “berra”! No escuro da noite, na cegueira, estamos todos nós que nada fazemos. Vemos todos os dias actos desumanos, actos cruéis, seres abandonados e exaustos de sofrimento. Mesmo ao nosso lado vive alguém que desconhecemos – que fazemos? Esta sociedade mete medo! Está quase tudo morto e pensam estarem vivos. Quem está vivo é todo aquele que sofre por que o sofrimento desperta o corpo como se qualquer faca o espetasse. É como uma farta espetado em cima de um boi que escoiceia perante os olhares e as alegrias dos carniceiros. A sociedade civil corre o risco do colapso! Todos nós entrámos numa passividade desesperante de nada fazer como se o problema fosse apenas com os outros e nada irá sobrar para nós.

    Estamos todos mortos!

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  11. Passo por aqui, para te desejar continuação de uma excelente semana.

    Beijinhos

    Mário

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  12. Tela impura feita de palavras puras.
    Tanto que se escoa.
    Tanto que se violenta.
    Tanto que agarras e ofereces a mãos cheias, desta feita atirada à cara de quem passa e volta o rosto.

    "O frio corta a pele"
    O teu verbo corta impiedoso o papel.
    E eu gosto.

    Um beijo

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  13. Um retrato impressionante de uma desgraçada que nem chega a ter vida digna desse nome, como afinal tantas outras por aí...
    Gostei, como sempre.
    Os teus textos têm muita força.
    Quando escreves deves vincar bem o papel... eheheh...
    Beijinhos.

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  14. mais uma mulher de vida .DA VIDA .e de tão vívida torna.se pungente a sua despedida

    uma outra belíssima narrativa

    mas
    ,posso lançar.te um desafio?
    espero.TE numa gargalhada ...DE VIDA
    aceitas?

    [eheheheheheeheheh]

    .
    um beijo

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  15. A história milenar repete-se num

    texto soberbo neo-real

    que não nos dá espaço

    para interpretar

    mas nos transporta para um acordar

    que tropeçamos

    mas nem todos querem ver

    Parabens

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