Olhos remelosos, boca desdentada de gengivas mirradas, corpo esquálido semi-coberto por um farrapo descaído, unhas cor de viuvez, cabelos hirsutos e pardos. Pele cor de cera. Rosto sulcado de ódio e desprezo. Mãos ávidas de tudo e vazias de nada. Na infinitude de um instante brilha o desprezo da vida, no crispar das mãos o esvair da raiva alojada no côncavo do destino. É velha. Velha de anos, mas, mais ainda, velha de vida. Chamam-lhe Bemvinda. Como se o nome fosse maldição de uma vida. Bemvinda em quê e onde? Bemvinda das Dores. Ei-lo todo, todinho como se o epitáfio tivesse sido feito aos dias de nascer. Bemvinda mendiga o pão de cada dia, de mão estendida, e lábios retesados. Há raiva no seu pedir, há desleixo no seu sorriso. Desleixo não, antes simples esgar de impotência, de descrédito. Bemvinda figura das nossas ruas e vielas, escondidas à luz do dia em subterrâneos de desdém. No vai e vem dos transeuntes, a figura esbate-se por entre o colorido da multidão, ou simplesmente na chuva de cada dia. Um olhar, um pestanejar e logo o esquecimento. Nem sequer uma dor na alma, qual unguento da razão. E o mundo salta por entre as bermas da pobreza. Bemvinda senta-se no degrau da escada, aquele que lhe serve de majestoso sofá já vai para quinze anos. Espraia a saia desbotada de cores mas viva de roda. Pousa as mãos vestidas de luvas rotas no regaço descarnado. Estende o rosto pálido ao sol da tarde e respira. De olhos fechados e ouvido alerta, bebe o som da tarde de domingo, que se entorna por entre passos das gentes. Vozes, conversas aqui e ali. A orquestra da vida. Respira Bemvinda. Não estende a mão ao esmolar. Hoje não. Hoje é domingo. Hoje precisa do silêncio da sua voz. No mutismo reside a preciosidade do seu sentir. Enrola-se em golfadas de água salgada e terra negra calcada. É como o areal de onde partiu. Vazio, seco e inóspito. Um eremitério de tristeza. Um soprar de almas perdidas uivando as sílabas da pobreza. Fugiu. Fugiu. Chegou à grande cidade. Pediu, suplicou por trabalho. Não achou. Então rolou o corpo, abriu o mundo da carne, e, ei-la de rua em rua. Esquina fétida de desejo, quarto esconso de prazer, bolso minguado de algumas notas. A aleivosia do seu ser. O urdir sem teias do seu destino. E foi assim que de esquina, quarto, cama, sexo e sangue, chegou às escadas que lhe servem de sofá. A doença apanhou-a. Não tem cura. Está tomada. Mirra no dia-a-dia. As manchas malditas envolvem-na. A comiseração visita-a nos olhares de rostos efémeros. Não sente piedade, não. Isso é poesia. Sente asco, apenas, não de si, mas do mundo. Bemvinda das Dores olha o azul de cima maculado de branco. Semi-cerra os olhos. E sente-se ir. Deixa que o fluir a arrecade. Partiu. Do outro lado, por entre as brumas o vale vestiu-se de sincelo em fantasmagóricas figuras de gelo, miríades flores vítreas. O irreal povoa o lugar. O frio corta a pele. O vento assobia a canção de embalar. Deixa-se envolver na melodia, no misticismo que o vale emana. Há paz no murmúrio do mundo. Chegou finalmente ao seu destino.
"...És homem, não te esqueças! Só é tua a loucura onde, com lucidez, te reconheças." Miguel Torga
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23 novembro, 2008
Bemvinda
Bemvinda
... profundo, dramático, real!
ResponderExcluirNão vou acrescentar nada a esta história de vida sensivelmente escrita! Sempre uma terna visão das mulheres do nosso país!
Sensibilizada pelo olhar afectuoso em 'fragmentos'!
Uma 'linda' tarde, amanhã... agradeço muito o carinho, mas ser-me-à quase impossível partilhar 'in loco' tua alegria
:(
Belo, sensível, com a tua marca. Um texto que incomoda pela verdade.
ResponderExcluirGostei muito de te conhecer. **
Como sempre, um texto de enorme força, para nos fazer pensar.
ResponderExcluirUma excelente semana!
Beijinhos
Mário
Há paz no murmúrio do mundo!
ResponderExcluirLindo!
um bjo
Excelente escrita.
ResponderExcluirO destino dela é o nosso. Esquecemos isso com tanta facilidade...
Obrigada pelo prazer de ler. :)
Pungente. Assim, tout court.
ResponderExcluirBeijocas,
Selma
Tira o fôlego
ResponderExcluirFaz vertigens
e dobro-me com a dor no estômago pelo soco
beijinho
Esplêndida capacidade para "vestires" todas as peles!
ResponderExcluirUm beijo grande
muito bem, bonita composição
ResponderExcluirsaudações amigas
Um retrato intenso de uma vida no seu fim. :(
ResponderExcluirBem escrito e tocante, como sempre!
Um beijinho
Boa tarde,
ResponderExcluirQuase não consegui respirar! Detesto, como tu detestas, injustiças!
Na verdade quase todos estão nas “tintas” para as injustiças. Importa é estar na “berra”! No escuro da noite, na cegueira, estamos todos nós que nada fazemos. Vemos todos os dias actos desumanos, actos cruéis, seres abandonados e exaustos de sofrimento. Mesmo ao nosso lado vive alguém que desconhecemos – que fazemos? Esta sociedade mete medo! Está quase tudo morto e pensam estarem vivos. Quem está vivo é todo aquele que sofre por que o sofrimento desperta o corpo como se qualquer faca o espetasse. É como uma farta espetado em cima de um boi que escoiceia perante os olhares e as alegrias dos carniceiros. A sociedade civil corre o risco do colapso! Todos nós entrámos numa passividade desesperante de nada fazer como se o problema fosse apenas com os outros e nada irá sobrar para nós.
Estamos todos mortos!
Passo por aqui, para te desejar continuação de uma excelente semana.
ResponderExcluirBeijinhos
Mário
Tela impura feita de palavras puras.
ResponderExcluirTanto que se escoa.
Tanto que se violenta.
Tanto que agarras e ofereces a mãos cheias, desta feita atirada à cara de quem passa e volta o rosto.
"O frio corta a pele"
O teu verbo corta impiedoso o papel.
E eu gosto.
Um beijo
Um retrato impressionante de uma desgraçada que nem chega a ter vida digna desse nome, como afinal tantas outras por aí...
ResponderExcluirGostei, como sempre.
Os teus textos têm muita força.
Quando escreves deves vincar bem o papel... eheheh...
Beijinhos.
mais uma mulher de vida .DA VIDA .e de tão vívida torna.se pungente a sua despedida
ResponderExcluiruma outra belíssima narrativa
mas
,posso lançar.te um desafio?
espero.TE numa gargalhada ...DE VIDA
aceitas?
[eheheheheheeheheh]
.
um beijo
A história milenar repete-se num
ResponderExcluirtexto soberbo neo-real
que não nos dá espaço
para interpretar
mas nos transporta para um acordar
que tropeçamos
mas nem todos querem ver
Parabens