Três da manhã. O corpo, ainda quente de uns lençóis de sono, curva-se ao frio que percorre o espaço. Sentada no sofá branco da sala ainda vestida do dia anterior, cruza os braços sobre o ventre, apertando a angústia que a possui. Não fora ,há muito, que o sentira a seu lado. Deitado. Dormia, ou fazia que dormia. Mas devia dormr. Os homens resvalam no sono com uma facilidade incoerente. Enrola-se sobre si, tentando dobrar o vazio que a envolve. Há desapego. Rememora os tempos vazios de palavras, os olhares desencontrados, opacos de sentir e fixos no ar. Esse hiato que os separa. Depois aquela frieza sonolenta sempre enroupada no silêncio do cansaço. É assim de há uns tempos a esta parte. Um sorriso oco, um pestanejar de trabalho e a distância começando a engordar os sentimentos. Atira a cabeça para trás. As paredes rolam, e com elas os quadros que se espalham nas paredes. Os Modigliani tornam-se mais esguios. As faces estáticas têm um súbito alongamento de sofrimento. Os olhos abertos naquela expressão parada dos retratos parecem exprimir dó. Tem trinta e picos anos. Um quarto de tigela de vida. Porém, o sentido é como se tivesse transbordado. Nesse chapinhar de águas, o pulsar dos sentidos acha-se por demais turgescido. Maria mulher-menina. Algo que não vai no mundo do seu casamento, no lagar dos sentimentos. Algo que a deixa ulcerada de sentir. Oito anos, a rotina mascarada de carreira sentou-se no meio deles. A rotina é amante insaciável. Suga a réstia de vontade, veste o vestido vermelho do desejo e descalça os sapatos da partilha. Ela sente-o. Ela sabe. Ele está indiferente. Deita-se da mesma forma que se levanta: ausente. Ausência de corpo presente. Sente-se sozinha. A desilusão abraça-a. São três da manhã.
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Rola o líquido dourado estendendo-o numa pequena onda, que logo se recolhe nas paredes geladas do copo. Ela olha sem ver. Caminha na sala de sofás vermelhos e um branco. Tudo repousa na sua ordem. É elegante. Povoam-na os objectos que a vida comprou. Os Modigliani continuam imutáveis na sua composição esguia. Conjugam-se na calidez dos tons. É perfeita a harmonia. Pára junto a aparelhagem. Coloca o CD. Baixa o volume automaticamente mesmo antes de a primeira nota soar. “As time goes by…” ecoa nostálgico, muito dolente. As notas estalam na madrugada aberta. E o copo, entre as palmas das mãos ,unge-as de frio. Um ligeiro estremecer fá-la pegar na manta que repousa nos braços do sofá branco, o do canto junto da janela virada a poente. O sofá dos pensamentos. Aquele que sempre a ouviu nos seus mutismos expectantes. Está cansada. Muito. Olha em redor e humedece os lábios. Valeu a pena todo o esforço? Houve momentos inexcedíveis. Fulgores liquefeitos de carne e espírito. Comunhão. Houve correntes fortes, rodopiadas de razões e desejos mascarados. Houve raivas despoletadas em pináculo de gargantas escancaradas. Houve meiguices fugazes e perdões aceites. Enrosca-se no sofá branco. Dobra as pernas sob si. O líquido continua a ondear. O gelo desfalece gelando o vidro, enregelando-lhe a ponta dos dedos A manta cobre-lhe os ombros arredondados, caindo solta por cima de uma breve camisa. São os quarenta e sete anos. A vida repousa agora. Lá em cima no quarto deitado na cama de sempre, ele dorme. Amanhã bem cedo a rotina será a sua mais-valia. A profissão toma-o, as horas circunscrevem-no. Os interesses ficam do outro lado. Ouve o rumorejar das palavras por dizer no silêncio do coração. Um mundo de dois, dividido pelas paredes cheias de sonhos e vazias de alma. O casamento de vinte e tal anos murcho. Um girassol caído, redondo e amarelo, mas caído. Seco de afectos mais do que de água. Sorve um gole. Sente que o sangue volta a palpitar. Levanta-se. Despeja o conteúdo do copo no vaso do seu girassol.
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Maria desce as escadas pé ante pé. Enverga o robe azul claro, aquele macio que a aconchega neste tempo de Outono. A madrugada ainda não saltou da noite. O alvorar ainda não despiu a lua nem as estrelas. São cinco da manhã. O sono há já muito a deixou. É assim agora. Acorda cedo, muito. Enquanto desce ajeita o cabelo. Mentalmente pensa em ir arranjá-lo, lá para o meio da manhã. O rosto claro de rugas finas tem a doçura da idade e a estória do tempo vivido. O olhar, arguto mas também calmo, poisa à entrada da sua sala. O branco veste-a. Sempre gostou dos tons pastel. Dão-lhe paz. Houve, uma altura, à coisa de uns quase vinte anos, que a sala se vestira de vermelho nos sofás, muito a gosto da maturação dos anos. O tempo rolou. A garridice começou a ferir-lhe a simpatia. Os velhos quadros começaram a desmaiar nas paredes. Achou excessivo tamanho espargir de cor. O espírito passara a ser mais ténue menos arrebatado. O sentir mais sereno. A visão irritava-se sempre que se sentava no sofá branco., o da reflexão e, olhava em redor. Depois de muito pensar, repensar, achou-se no meio da renovação. A sala ficou branca e azul. Serena. Tão serena como o CD que coloca”Sonata de Outono” Os acordes inundam-na. Sente o rodopiar dos seus sessenta e muitos anos. Memórias quentes e frias de épocas idas. As calendas da sua vida. Abana a cabeça e os caracóis despenteados soltam-se na testa. O rosto torna-se quase juvenil na penumbra da sala. O fulgor do olhar desmente-lhe a idade. Soergue-se. Depois avança até ao centro da sua sala. Abre o robe azul claro e macio, deita a cabeça para trás e enceta um valsar embalando o suspiro do tempo. Não há mais rancor, nem fúria, nem desatino, nem vazio, nem… nem… Ah, Santo Deus como se sentira infeliz, como sonhara o casamento e afinal o prosaísmo era o adjectivo comum de uma vida a dois. Atributo de uma relação sentida, estável, plena de contradições e vazia de soluções definitivas. O seu pequeno barco navegara o rio dos anos. De casca de noz transmutara-se em tronco robusto de raízes múltiplas, bebendo a seiva no leito do rio chamada vida. As águas, essas, ora límpidas espelhadas em poças de sol, ora turvas amareladas de chuva ríspida que a revolviam e, ainda picadas de vento gelado, foram o caudal do seu casamento. A perenidade do amor é o mais mutável slogan do sentir feito palavra, que o homem achou por bem proferir. Aquele frémito a que chamam amor, não é senão uma catarata de sentir caindo forte e chapinhado. Inflama o leito das águas e fá-las cuspir, brotar, girar, rodopiar, mas depois o curso torna-se manso, espraiando-se pelas margens ao longo dos campos. É assim o amor. Mas só a idade o revela. A chave de mundo sem porta. O sorriso embala-a na descoberta do seu baú de sentires.
Nas paredes os Modigliani, sempre esguios, piscam o olho por entre os azuis e amarelos. Oh ,há um rosa que sorri mais…E na porta com chave uma voz diz:
-Maria, outra vez levantada? ...Vem, vem, meu amor, vamo-nos deitar!
Nocturne in C# minor - Frederic Chopin
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Quanta sabedoria de vida nesse texto! O passar dos anos tudo adoça, é verdade. E modifica a nossa visão do que é realmente importante. Excelente. **
ResponderExcluirMuito bom texto, continua
ResponderExcluirSaudações amigas
Um texto excelente.
ResponderExcluirum bjo
... sempre uma bela 'contadora'! O passar dos anos, ou melhor a maturidade, o que nem sempre passa pela idade...
ResponderExcluirSensibilizada pelo olhar amistoso em 'fragmentos'!
Lamento o 'isolamento' :(
Esta é uma das maneiras de sentir, sempre cheia de maturidade, sapiência e beleza
ResponderExcluirmas há outras....
Beijinho
Achas que posso dar a minha versão da Maria?
Belos textos
ResponderExcluire bela "caminhada" por entre o sofá brando da rotina que é desilusão o xaile o robe e os Modigliani
_____e
"É assim o amor. Mas só a idade o revela"
Um beijo
de ternura.
Anda-se a escrever com fôlego por estas bandas... parabéns! E, já agora, deixo aqui um convite! Beijos.
ResponderExcluirTambém se busca a calma nas margens das estórias...mas o vazio e a distância deixam "traços" na "alma" e no sonho.
ResponderExcluirDe todo o modo, uma história Bem contada.
Um beijo.
Não sei quanto tempo demora a escrever um texto assim, porque nunca o faço (pelo menos agora.) Sei que se lê como um gole de água fresca em dia de calor. :)
ResponderExcluirExcelente texto cara amiga.
ResponderExcluirGostei imenso. Tens talento.
Beijinhos.
Excelente como o ar que se respira
ResponderExcluirno campo
Passei e desejo boa semana
ResponderExcluirSaudações amigas
Mateso. Com muita alegria encontrei seu blog ao entrar no de Tia Selma. Beleza, sensibilidade, cultura, enfim, prazer garantido de boa leitura e maravilhosa música. Agradeço-lhe por esses momentos.
ResponderExcluirPresentes. Cada vez que aqui venho recebo presentes dos teus dedos, dos teus olhos.
ResponderExcluirSinto-me um pouco ridicula ao tentar comentar o que acabei de ler... mas isto sou eu, que apelo ao silêncio quando encontro beleza.
Um beijo.
apenas para acrescentar
ResponderExcluir.
um beijo
ao já dito
Uma lágrima rola pela minha face... os motivos? Sentimentos... comunhão tão íntima, que não há palavras que traduzam...
ResponderExcluirBeijo