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Sol da Índia
Mais uma, só, mais uma. A sovela passa na borracha, do outro lado fica o ponto. Já está cozido só mais este, o do remate com nó. São as bolas, redondas, cozidas pelos dedos dos meninos escuros de olhos grandes, e corpo franzino. São os meninos agachados no chão, sobre a esteira desbotada de pó, mais de anos. Ranjiv, também é menino. Menino de corpo ossudo, calção caído, camisola rota e pé descalço. A tez é escura, castanha, cobre-a o sol da Índia. Ranjiv estica mais as pernas e suspira. Está calor, muito calor. A hora do intervalo não vai chegar tão cedo. Tem sede. Passa a língua pelos lábios secos. As moscas rodam-no, com a mão livre enxota-as. Porém, uma vem poisar e ferra-o. Vai chover. O dia amanheceu pesado. É tempo de monção. O suor empapa-o. E de novo a sovela, em cima, em baixo, em baixo, em cima. Tem fome. Tem tudo e não tem nada. Naquela nesga de casa amontoam-se meninos no vai e vem da sovela. Umas magras rupias para enganar a miséria de casa. Casa? Um quarto escuro, um pedaço de quintal. Cinco irmãos. O pai e a mãe. A miséria escura da Índia. O reboliço do caos, o barulho da fome, o ressoar da vida, a indiferença dos olhares, o rumorejar dos passos, o chapinhar das águas do Jumna, os sons que se erguem no ar adocicado do dia.
Nova Délhi amanhece todos os dias envolta na neblina da gente. Ranjiv levanta-se pelas quatro horas da manhã. São horas de ir buscar o balde de água à torneira pública. Ele, mais os irmãos e o pai. Quatro baldes de água. Não há água corrente em casa. Não têm tanta coisa. Mas é assim a vida. Depois corre para Shapur Jat. Fio e sovela. As bolas que os meninos sonham e que ele cose. Gosta de correr descalço, não tem sapatos, apenas umas chinelas, que descalça logo que corre ou brinca na rua. A sola dos seus pés já é dura. Conhece a geografia da estrada. O seu corpo débil, ossudo, desprovido de carne, enroupado num calção largo e numa camisola meio suja, faz-lhe a vestimenta de todos os dias. Com um chapati na mão, e dependurado no braço, em embrulho colorido, a ração de mais um dia. Lentilhas e chapati. É pouco, muito pouco. Porém o sorriso enche-lhe o rosto já que a barriga se aconchega no seu vazio. Ranjiv bate a porta São seis da manhã Tem uma hora de caminho pela frente. Vai pela borda do Jumna, o rio sagrado. Gosta do chapinhar das águas e das ladainhas dos anciãos. Gosta das flores que deambulam nas águas. Gosta da neblina que o impede de ver a tristeza dos olhos parados. Uma trinca. Tem que mastigar muito, devagar, para durar e, enganar a barriga. Lesto, vai guardando o tesouro do dia. Nove anos. Apenas nove anos. A miséria do mundo em calções.
Devagar circunda a beira do rio. Os anciãos entoam as ladainhas em prece. O corpo deve comungar a alma. Não entende o espaço que medeia a oração da meditação. Somente se embala no ritmo salmodiado das vozes. Fazem-no esquecer a ironia da sua pobreza. Dão-lhe a abastança que as entranhas sonham. Farto de encanto, vazio de alimento, Ranjiv percorre dançante o trilho que o aporta à fábrica. Dez miúdos de olhos grandes, nus de ilusão e prenhes de ternura. Nas bocas vazias pespontam os dentitos podres e partidos por onde a saliva se escapa em baba de criança. Corpos mirrados de carnes e espetados de ossos que se dobram no interlúdio da sovela. Zumbem as moscas, o som cavo da linha e dos nós no cabedal, dão o compasso ao abuso. Os meninos entreabrem os lábios, humedecem-nos e engolem a saliva, alimento de quase uma manhã. O calor aperta, o suor liquefaz-se nas caritas de olhos tristes, porém as mãos ágeis e precisas furam, cosem e embelezam as bolas que farão sonhar os outros, aqueles do outro lado do mundo. Os que correm atrás da bola e não correm pela bola. Ranjiv passa as costas da mão nos lábios gretados pela sede. Remexe os dedos dos pés partindo-lhe a imobilidade hirta da posição. A manhã já se casou com o sol. O amarelo açafrão veste o tempo. Está na hora de mais um chapati e desta vez as lentilhas. A melhor e única refeição do dia. Lambe-se antegozando as migalhas que lhe vestirão o estômago. O menino levanta-se e poisa a bola que tem entre os dedos. Já coseu doze hoje. Meio-dia já foi ganho. Impelidos pela mola dos anos, dez crianças, meninos de rosto triste ,saltam para o pátio nas traseiras.
O sol da Índia veio-lhes aquecer a alma, já que o coração foi arrefecido pelos homens.
uma dura e crua realidade de que todos somos parte responsável muito bem descrita. Acima de tudo descrita com amor e respeito.
ResponderExcluirUm espinho entre tantos que xistem nesta pequena bola rolando no espaço que afinal não é de todos...muito menos para todos.
Um abraço grande e obrigado por este post.
Este doi! magoa!
ResponderExcluirporque sentados, sempre tentamos esquecer as duras realidades dos outros.
e como diz o Eremita
obrigado
beijinho
Sabia me tão bem um coração quente.
ResponderExcluirum bjo
"A sovela passa na borracha, do outro lado fica o ponto."
ResponderExcluirEsta frase faz-nos sentir todo o ritmo do texto, e a palavra «sovela» como marca...
Magnífico.
Beijinho*
o corpo deve comungar a alma
ResponderExcluira alma do menino deve beber
como pássaro
correr como
rio
beijo
~
tudo o que se possa dizer a mais
ResponderExcluiré puro desperdício
fico.me
por
.
um beijo
[ e saio em silêncio absoluto ]
Uma dor só, este texto tão belo. Dor de existirem tantas crianças assim! **
ResponderExcluirEmbora à distância, conheço um pouco essa realidade...Estou envolvido há algum tempo num programa de ajuda a crianças, educação (International Children) e recebo em casa informação aproximada com a realidade que aqui trazes...
ResponderExcluirO coração foi arrefecido pelos homens... dura realidade...
Um beijinho para ti!
Gostei de te visitar...
:)
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ResponderExcluirCru e "insentimental”, gostei!
ResponderExcluirMas... 5 irmãos (mais ele e o pai adulto) e só 4 baldes de água? Nem que fosse ele o mais velho, entre os 5 irmãos certamente que se consegue mais do que 2 baldes, se a necessidade é real como sabemos...
Desculpe mas a minha obsessão por pormenores dá nisto: um uivo à Lua, de lamento por ver tremer parte da força da mensagem...
Hélas!
Sol e coração de índia. E o som? Lindo, lindo.
ResponderExcluirBeijinho
A comoção toma conta de mim.
ResponderExcluirLer-te é abrir uma janela e olhar o mundo, o mundo real, o do imaginário, aquele que acreditamos, mas gostaríamos que não existisse.
Hoje aconteceu-me uma coisa que quero partihar contigo... cruzei-me hoje com um miúdo que ia para a escola, vinha eu a comer um "mimo" que me resolvi dar e ele não tirava os olhos de mim...
- "Já tomaste o pequeno almoço?"
- "Que é isso?" - responde-me
- "Quando te levantaste comeste alguma coisa?"
- "Ah... não, comi ontem à noite uma sopa...a minha mãe não tem dinheiro. A patroa dela ainda não lhe pagou..."
- " E que faz a tua mãe?"
- "Trabalha na casa da patroa, arruma-lhe a casa"
-" Pois, compreendo, a patroa não tem dinheiro, mas tem empregada. Certo!! Está bem... anda daí..."
E foi um gosto vê-lo comer! Tomar o tal pequeno almoço, que nem sabia o que era!
Pedi que me embrulhassem duas sandes americanas (é o que há, a esta hora da manhã...)
- "Olha lá, comes isso ao almoço, ok?"
- "Posso dar metade ao João?"
- "Quem é o João? É teu irmão?!"
- "Não. É o meu amigo João, ele é mais pobre que eu. A mãe nem tem dinheiro para fazer a sopa... e a minha mãe às vezes dá-lhes da nossa"
Que se pode dizer a uma criança depois disto???
Com voz tremida pela comoção, pedi para me embrulharem mais 2 americanas. "Estas são para o João. ok?" "Ah... já agora, como te chamas?"
- " Chamo-me Mário..."
E o sorriso dele deslumbrou-me a alma.
Desculpa este desabafo...
Beijo
Obrigada pela gentileza.
ResponderExcluirMas (a tal obsessão)... 3 irmãos (+ 2 irmãs que ficaram em casa)= 2 baldes? Há um bebé - abaixo dos 8 anos - a que nem foi permitido mais um tempinho de sono, suponho que por ser homem em potencial e portanto ser importante que se levante a horas de ir buscar àgua.
Rais parta a luta pela sobrevivência, mais a arte dos homens de complicar ainda mais a vida difícil.
Hélas!
... já disseste tudo!
ResponderExcluirA tua narrativa é tão especial, doce e violenta, ternura e revolta, é o que me fazes sentir.
___________e
deixo-te um beijo
enorme
no teu coração
Um belo texto
ResponderExcluirescrito com ocoração
nesta terra onde o sol que nasce
mesmo esse
não é para todos
Privados da infância. escravos de uma vida que podia ser evitável. E o comentário ali em cima da menina marota deixou-me de coração apertado. Será possível?!!!
ResponderExcluirAi Mateso como o mundo vai mal.. :(
Beijo
... esta foto a dois dias do 'Dia Mundial da Erradicação da Pobreza'... vale por mil palavras :((
ResponderExcluirUm beijo amistoso
No seu texto sinto-me, ao mesmo tempo, transportado às recordações antigas e distantes da minha aldeia da Beira Alta e à India distante que gostaria de visitar.
ResponderExcluirNão pare de escrever!