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Tríptico de olhares
Uma porta aberta, um cortinado que esvoaça em movimento ténue, um céu azul carregado de promessas de luz, um arabesco subtil que desenha a onda verde do arroz. Um quadro, ou antes, uma visão feliz. No interior, ainda despido de raios de sol, perpassa o som amortecido do novo dia. A vida refulge lentamente nesta manhã de luz. Um corpo, qual linha quebrada, ergue-se por entre o colorido dos lençóis. A massa de cabelos cor de chocolate encobre o rosto, que de pronto livre, aponta para o ar, cumprimentando-o. Roda o corpo apoiando as palmas das mãos. Gesto maquinal. Depois, os pés calçam o chão e levanta-se. É franzina, uma silhueta quase de criança. Sem sobressalto na lentidão própria de quem conhece as horas, Frederica dirige-se para a porta da varanda do seu quarto. Inspira o ar, aquele cheiro a água e lodo, onde as raízes do arroz se vivificam. O olhar perde-se no horizonte. Para além do verde, onde o azul é apenas uma linha, está o mar. As pupilas verdes dilatam-se como se quisessem albergar nelas o outro lado do mundo , o de aguada azul-verde. Suspira e calmamente retrocede. Porém, como que uma voz a chamasse, volta-se de novo, e olha ao longe. Um som possante, estridente, um grito cavo, propalado no vento, fá-la vasculhar o tempo. A viagem da memória invade-a. …
Um subir e descer agoniado, ora acima, ora abaixo. Um bater constante de corpos, um escorregar, um lacerar de carnes sempre que as vagas a sujeitavam ao chão, às paredes, aos objectos. Os golpes dilatados, o sangue quente escorregando em fios vermelhos, o sal que a queimava em bofetadas de água. Um inferno líquido. Não de chamas, mas de vagas. A luta. A esperança. Na loucura da vida procurara fugir à morte e conseguira-o. Trémula encosta-se ao ferro do varandim. Agarra-o com força. As nós dos dedos pintam-se se da cal branca dos tendões hirtos. Uma dor fina, aguda revolve-lhe o peito. Instintivamente olha o cotovelo esquerdo. A cicatriz vertical é testemunha do rasgar da carne, quando a vaga, mais forte, ainda do que as anteriores, a cuspiu para o exterior, fazendo-a emergir da água para o monte de cordame que jazia junto à amurada. A sua carne arrancada como se fora pele. A dor lancinante, rapidamente ultrapassada por uma maior, quando a água salgada lhe banhou a ferida. Desmaiou. Mas o tempo foi curto. Logo acordou, ainda mais exausta, exangue quiçá nefelibata. Hora após hora, num imenso tropel de agonia, o barco vogou ao sabor da tempestade. Os raios coscurantes cortavam a tapeçaria nua de estrelas. Havia o ribombar do trovão furibundo, o bater possante das ondas, estalando-se contra o barco como desejassem esbofetear as vidas no seu interior. Frederica recorda, o comungar uníssono dos elementos, a obstrução permanente do mar encolerizado ao pequeno vapor, caixa-de-noz à deriva rebolando nos alcatruzes das águas, as ondas. Fora nessa variável de semi-tempo, perdida dentro do grande tempo, que o pai fora varrido pelas águas em sibilo avassalador de fúria. Gritos, uivos dolorosos, arrancados à alma numa fusão de dor e impotência, lágrimas quentes de sal misturando-se com o outro que a abrasava, o erguer de braços, mãos em prece, exponente de fé e clemência. Porém houve surdez, houve esquecimento. Houve desdém. E o mar engoliu-o, em boca vazia de dentes, em golfada prenhe de desejo. Logo, recorda, tudo serenou. Como se as entranhas liquidas se tivessem saciado. Sózinha, sofrendo o ostracismo final dos elementos, Frederica pouco mais relembra. O medo, a dor, o cansaço venceram-na.
Frederica recolhe a lembrança. Entra no quarto. A dança da cortina é compasso de sentir. Volta-se. Olha o quadro na parede em frente. Um rosto, masculino. Um olhar, uma certeza. Um passado, um degrau já erodido de passos perdidos. Na tela, o pai, olha-a, sem o distanciamento da sombra que o tempo suportou. Os olhos possuem a luz envolvente do amor. Há um misto de irreverência e ternura como se pretendesse minimizar o caos que o arrebatara para sempre. É o conselheiro mudo das suas manhãs. Frederica sorri-lhe, enviando-lhe um beijo na ponta dos dedos. É assim todos os dias. Uma conversa de sorrisos. O dia recomeça no seu casulo de vivências. Num gesto simples rebola o olhar, gira a cabeça, entrelaça os dedos nos cabelos longos, castanhos e brilhantes, qual moldura vertical de um rosto vivo, onde a vulnerabilidade do passado tem sempre a cancela semi-aberta. Afastar o pesadelo daquela noite sem luar, onde nem o farol da fé brilhou, é método cartesiano de vontade. Já no exterior, no jardim voltado para os arrozais, descalça, pisa a relva onde o orvalho amaciou a dureza da erva, e deu licença à terra húmida para beijar as flores gráceis, ainda meio estremunhadas que limpam os olhos da aurora já recolhida em vitrais de rosácea iridescentes. Inala o ar que lhe traz o odor salgado da sua vida. O verde espraia-se na sua frente. Em breve o grão germinara. Bago branco pespontando na planície viçosa. No horizonte, o limite entre o céu e a terra torna-se difuso. Há uma mistura de tons como se o pastel se tivesse alastrado de uma tela para outra, tomando-lhe a cor. O quadro do tempo azul-verde parece inundar o olhar, e beijar a alma do dia. A beleza da tela, ante os seus olhos, é de tal forma pura e serena que lhe fere os sentidos. E as lágrimas saltam. Duas. Cristais rasgados da saudade, de pena e de solidão. Frederica compara as telas da sua vida. A do passado, forte, azul, branca, vermelha, ladra avara do deu mundo de afectos. A presente, perfeita, verde, branca, azul, dourada, um retalho do seu país em tríptico de uma vida quebrada. A sua.
Logo, quando o sol se puser, o arrozal enterrar-se-á nas suas raízes, tal com ela, no sono das suas memórias e a água deslizará, uma vez mais, nas margens da noite até ao acordar da vida.
poema de continuar
ResponderExcluirpendular
como bater de vento
nos cortinados
na cama aberta
do arrozal
~
um rocegar de sentimentos
ResponderExcluirbelíssimos
[ o que não é de espantar....! ]
em suave catarse
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um beijo
Muito obrigada pela visita. Belo, sereno blog o teu.
ResponderExcluirUm beijo.
Tanto sentimento junto.
ResponderExcluirum bjo
Bela a tua participação!
ResponderExcluirBom fim de semana e
Um abraço.
Mais um belo texto, como nos habituaste desde sempre.
ResponderExcluirParabéns!
Um excelente fim de semana!
Beijihos
Mário
...belíssimo roteiro
ResponderExcluirnos levando ao país
da poesia!
lindo demais!
bjjs
Olá, do Eremitério cheguei ao teu blog, e li o texto que lá não se apresenta inteiro, e dei uma volta pelo teu "espaço" Gostei de ambos, texto e blog, voltarei,
ResponderExcluirAbraço.
Jorge
Para tanto sentimento que nos transportas...
ResponderExcluirBelíssimo.
Beijo
O RIO RECOMEÇA
ResponderExcluirPORQUE A ÁGUA NÃO PÁRA
NÃO DORME
Como sempre um texto que nos transporta para a vida de carne e osso e nos permite voar
Com a visão reduzida tinha perdido o prazer de vir aqui.
ResponderExcluirSaio a sorrir. Obrigada. :)
...bellissimo...tanta poesia...
ResponderExcluirA ilustração é linda!
ResponderExcluirUm texto muito cuidado, construindo o detalhe palavra a palavra, e criando uma atmosfera de intensa vida interior.
ResponderExcluirParabéns pelo verdadeiro exercício literário! :)
Obrigada!!!!
ResponderExcluire
clap clap clap.
por mais um texto....
que nos "arrasa".
è poema em movimento
ResponderExcluirsaudações amigas e boa semana
passado e presente. pedaços onde a vida vive. escorre. harmoniza. harmonizando.nos.
ResponderExcluirbelo e perfeito texto.Parabéns
_____e
deixo-te um beijo
grande
Difícil de comentar depois de tantos já terem dito tudo.
ResponderExcluirEncantou-me, como tudo quanto escreves.
beijinho
saudades de te ler
ResponderExcluiruma memória que lhe ficará em beijos atirados com os dedos.
um abraço
luísa
É assim que vivemos todos... entre beijos enviados com os dedos àqueles que já só nos sorriem a partir das telas a nossa memória; muitas vezes é a memória dos seus sorrisos que justifica o percorrer do caminho que se estende diante de nós. É o caminhos que nos separou um dia e que nos juntará novamente... amanhã.
ResponderExcluirUm longo abraço. Adorei o texto...