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22 abril, 2008




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Era uma vez…

Houve um dia, não era frio, não era chuvoso, nem enevoado, nem maculado. Era um dia, de que mês? Não sei, mas também não importa. Houve um dia em que senti o frio do norte, o vento do mar, e o cincelo da terra. Olhei pela janela e vi esboços tornados gente, pintados das cores da vida. Gente do meu povo que se movia ao ritmo do tempo. Nesse dia sonhei assim:

Era uma vez…

Uma padeira que cozia pão, um velho que procurava a sua ovelha, um pescador e o mar… Criaturas arrancadas à terra, ao barro vermelho da vida, às águas sal do mundo. Moldadas em mãos artesanais de arte sapiente. Entes ásperos como as suas vidas. Temperados com vento, chuva, xisto, sal e água.

Assim um dia aconteceu, que a padeira Júlia foi vender o seu pão pelas terras socalcadas onde o rio beija as contas negras e brancas, e a meio caminho encontrou um velho que se apoiava no cajado velho e sábio no deambular por entre montes. Gente afim cinzelada no granito da vida dorida, amarrados na luta porfiada do amanhã ainda por despontar. Conversaram naqueles monossílabos ásperos que tudo contam e nada dizem mas que a idade entende, a idade mais os sulcos do saber vivido. Assim Júlia e Chico Balido olham-se no caminho percorrido das suas vidas. O sorriso é lento, molengo de áspero, o não hábito, entorpece o esgar. O suor perla-lhes as fontes, não pelo tempo, mas antes pelo esforço de estarem vivos. Passo aqui, passo além vão desfilando as terras agrestes onde o vento silva no redondo de cada esquina. Na paisagem em socalco, por riba um pequeno casebre vomita suspiros de fumo cinzento. Amorna o céu de azul cinzento. Há vida ali. Há calor também. Sem palavras sobem a ladeira íngreme que os leva ao casebre de xisto grosseiro. O interior está vazio, parece-lhes. No canto crepita o toro de madeira. As cinzas espalham-se pelo lar. Parece ter sido acesa já faz tempo. O ar tem aquele cheiro a fumo quente. Sabe bem quando se entra mas depois entorpece. Olham em redor, estranhados do silêncio. Gritam: “Ó de casa!”O som saído das suas gargantas é o único que se evola. Nada.”Estranho”, pensam. Decidida Júlia Papas percorre o casebre. Sai, dá-lhe a volta. Nada. Vazio. Põe a mão em pala sobre os cansados olhos de lince e perscruta o redor. Só o vento assobia. Lá adiante as velhas oliveiras, depois os regos de vinhedo, agitam-se dolentes de carregadas. Ainda não pintaram. Mas não há vivalma por perto, parece-lhe. Nada satisfeita volta a entrar no casebre e diz pró Chico Balido: “-Vou inté ali pra ver, aqui há cousa…na gosto disto. Vomecê assente-se e vá espevitando os cavacos.”

-Ó mulher, ê também vou. Na tem jeito vomecê ir í por baixo, sozinha.

-Atão venha daí.

Em passos desengonçados de apressados deitam-se ao xisto da terra. Os pés pisam -na e o bafo enrola-se no ar de acordo com o ofegar. Já estão no meio do vinhedo. Não há sinal de vida. Mais abaixo o nevoeiro esconde os bardos. Enfrentam-no, ela de queixo resoluto, ele de cajado apontado. Lado a lado como se fossem crianças na procura do amanhã. Júlia Papas pára de repente, puxa o cotovelo do Chico e muda aponta. De bruços sobre a terra gelada, em abandono solitário, de punhos cerrados, está o Manel das Hortas. Velho e morto. Abocanha a terra que o viu nascer e crescer na gaiatice dos anos passados. Frio, gelado e hirto morde a terra mãe que o viu madurar no girar dos anos. A morte abotoou-o quando ele se vestia da lida do dia.

Júlia e Chico benzem-se. Os lábios despem-se de sons, no olhar lêem-se as palavras que não precisam de ser roladas. Entendem-se assim. A dor é fria. Estremece-lhes a alma, arrepanha-lhes os cabelos e torna-os hirtos de sentir. Os olhos já pequenos de idade vertem grandes bagas de água. A sorte do seu amanhã está ali, pendurada aos seus pés. Entranha-se o cheiro e quase os repuxa também. Amedrontados, recuam. Não, pelo pobre Manel das Hortas, mas por eles. Acanalhados voltam-lhes as costas e dão um passo em frente, mas… oh, não … a consciência impera. Prática, Júlia diz: “-Ó Manel fica aqui, que eu vou lá acima avisar. Fica tu com ele, que eu sou mais rápida a andar, tu sabes…” E sem tropeções correu lesta socalco acima. Ofegante chegou à praça, deu a notícia, correu a casa do padre, benzeu-se e depois sentou-se no banco da entrada. Tremeu-lhe o queixo, mais o corpo. Gemeu-lhe o peito mais o coração. Soluçou-lhe a alma. Choraram-lhe os olhos gastos e carpiu finalmente o finado.

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Vergado ao vai e vem dos remos que cortam as águas de ondas cavadas, o Ti Jão deixa-se embalar no vogar líquido do seu mundo vestido de musselina azul-verde. A faina terminou. Mais um dia de sol, sal e água. Vem sozinho, o seu barquito de madeira húmida vestido de cores alegres contrasta com a cor do seu sentir. O seu perene vazio de solidão.

Fora no dia de hoje já lá vai seis invernos, naquela madrugada escura pespontada de laivos amarelos quais folículos de um sol feito alvorejar. O vento sibilava nas águas tornando-as zangadas de movimento. Os gritos vertidos em espuma erguiam-se gigantes sob a esteira da traineira. Chamara pelo seu Miguel um ror de vezes. O filho, teimoso de nascença, denodado de querença e porfiado de vontade, achara que as redes estavam cheias. Elas estavam, era verdade. Mas naquela luta de água, vento e vaga, o mar levou a melhor e roubou-lho. Chamou-o. Lançou-lhe a bóia, pediu auxílio. Nada. O mar é voraz. Suga a gente como resposta ao roubo das suas entranhas. O mar dá, mas o mar tira. Há amor no seu marulhar cantado ou ódio no seu crispar de vagas em crista de espuma.

Fora assim. Levara-o ao seu Miguel. Pelo rosto gretado escorrem duas pedras líquidas de sal, duas lágrimas doridas de amor perdido. Não grita, os velhos não rugem. Os velhos soluçam por dentro desfazendo o coração em tiras de sangue, amassam a alma em névoas estranguladas de dor, uivam nas entranhas ocas de um sentir da carne perdido, mas os velhos não gritam ao ar em sons agudos nem flamantes. Os velhos, os homens, as mulheres sentidas albergam-se na concha matriz de um dia. Essa matriz seca, árida que um dia fora fruto. O fruto feito filho. O seu Miguel. Tinham-lhe amputado a vida, a sua vida. Hoje era somente o reflexo, enternecido na presença dos netos, os filhos do seu filho. Recorda, recorda, cada dia após a morte. Soam-lhe os gritos da nora, a solidão da traineira, o finar da sua Lina. Memórias de um tempo. Rajadas negras que o tinham açoitado impiedosamente. O seu rosto era quadro presente dos sulcos vergastados na alma. A pele era apenas a capa da sua dor interior. Fremente, avassaladora, corrosiva, lancinante, aberta qual chaga infectada. A dor de um pai. Gritar? Carpir? Não! Chora-se sempre o silêncio da ausência quando a nudez do sentir lateja o corpo coarctado.

Quando em cada madrugada crispada de ódio azul e espumada de saliva cuspida, ele e o seu barquito, vogavam acima e abaixo, ele Ti Jão, sentia aquela suave melopeia do mar, aquele marulhar de águas que lhe contava as novas do seu menino. Larga os remos e em jeito faceiro de criança acena ao mar e ao seu menino-homem.

Assim termina o conto da minha gente, gente simples, gente viva do meu povo sentido.


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18 comentários:

  1. muito bonito!

    gostei particularmente:

    Os velhos soluçam por dentro desfazendo o coração em tiras de sangue, amassam a alma em névoas estranguladas de dor, uivam nas entranhas ocas de um sentir da carne perdido, mas os velhos não gritam ao ar em sons agudos nem flamantes...

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  2. Bonito

    A musica (canta tb no meu Velas) arrepia me sempre.

    bjo

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  3. Olá!
    `
    Passei por aqui...
    Gostei do blog!

    Abraços pernambucanbaianos,,,

    Germano
    www.clubedecarteado.blogspot.com

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  4. gostei muitíssimo!
    perdi-me a ler-te (e o tempo a passar...)
    beijo
    luísa

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  5. gente simples mas cujas estórias de vida são plenas de sentimento.

    um beijinho e bom fim de semana.

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  6. It took me a long time:but I have red it.
    So beautiful and full of passion.
    With a perfect image.
    Bello...

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  7. Era uma vez uma mulher azul que escrevía sobre gentes e sobre terra áspera e mares traiçoeiros e dava-lhes de si não só as carnes mas as palavras curtas e choradas da dor.
    Era uma vez uma mulher que escrevía palavras que me contavam histórias em azul.
    Era uma vez uma mulher que do azul fazía arte.

    Um beijo, muito obrigado.

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  8. Repito-me quando te comento, Mateso. tens uma forma muito peculiar de descrever as gentes e os lugares . Estou e sinto "com" e "como" eles quanto te leio. parecem vizinhos a casa da frente que conhecemos toda uma vida. Percebo cada vez mais a tua admiração por Torga, tal como ele também tu tens um amor profundo a esta terra. Conhece-la bem e à natureza humana também .

    Bem Hajas por isso também .

    um beijo grande

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  9. Muito bem, partes da prosa eram poema
    Saudações amigas e boa semana de trabalho

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  10. A vida das gentes simples

    escritas com límpida

    sensibilidade

    e competência

    bjs

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  11. A vida das gentes simples

    escritas com límpida

    sensibilidade

    e competência

    bjs

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  12. transparências escritas:

    o gesto lento

    o fundo rasto das

    palavras ~





    abraçO.beijO

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  13. ...gente que sente...
    Sensibilizada com as vossas palavras. Muito.
    Beijo

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  14. É que cheiram mesmo a terra, os teus contos! Adorei.

    bj

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  15. Gostei muito.
    O próximo, por favor...

    :)

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  16. mantém.se forte este teu contar com jeito

    este teu contar de gente

    de gente nossa

    feita

    AMOR


    - lindo e forte ,como sempre e com que prezer te releio ,regressada


    .
    um beijo ,miúda!

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