Páginas

03 abril, 2008


Talvez

Foi num dia pequeno. Naqueles dias em que a manhã é curta, o meio-dia vem cedo demais ,e a noite arregaça-se logo que a luz mal se despe. Foi, portanto um dia curto que se viu pela primeira vez. Não gostou das sombras que a rodearam, não gostou dos rostos difusos que a olharam. Não gostou da palidez nem das correrias. Gritou, berrou. Muito. Foi assim que cumprimentou o mundo.

-Uma menina! Disseram e ouviu. Então era menina. Como se isso importasse para a viajem que tinha que fazer. Depois enfiaram-na em água, rolaram-na de uma lado para outro, puseram-lhe um lenço na cabeça e finalmente deram-lhe comida. Enfiaram-lhe uma bola redonda e não muita dura na boca que chupou. Escorria uma coisa quente que a acalmava. Assim esteve, depois descansou. Pegaram nela, e enfiaram-na numa cova com panos macios. Adormeceu. Estava cansada.

O dia escorreu por entre a cova e as mãos. Entre as caras cinzentas que a olhavam, ente o murmúrio e o olhar cansado da mãe. Ah! tinha uma mãe e um pai. Ficou a saber.

Muitas outras coisas viriam a saber ao longo da sua viagem. Tanta, tantas e muitas tão más.Mas nas viagens tem que se conhecer um pouco de tudo. Cresceu e depressa. O tempo passou como se de um pião em roda se tratasse. Rodou. Ela, e as suas saias engomadas, que rodavam quando ela girava de braços abertos para o sol.

Quando voltou a olhar para si, num olhar perscrutador de gente, já era adulta. O tempo passara tão voado. Talvez o espelho da viagem lhe mostrasse o trilho que ainda tinha que fazer. Mas o espelho enublou-se. Foi o vapor do suspiro. Teve que se levantar do banco em que se sentara. Para ver o reflexo. Mas revolto. O reflexo, não reflectiu, e ela pensou. Foi aí que começou um outro caminho. O trilho da ponderação. Nem sempre gostou do trilho. Ser ponderado, certinho é como um guisado deslavado. Mas o trilho da vida era torto e revolto. Tropeçou, caiu, magoou-se. Feriu-se. Levantou-se, cambaleou, ziguezagueou, endireitou-se. Lacrimejou, fungou, chorou, gritou e riu. Sorriu e gargalhou também. E cresceu um pouco mais.

Cegou a vida das ervas daninhas, ergueu as paredes da sua cela, gerou e pariu a sua família. Criou, amparou, enxugou lágrimas e floresceu sorrisos. Amou, muito, sempre. E cresceu um pouco mais. Não foi poetisa, nem artista, não foi heroína, não foi gente invulgar, não foi mente exaltada. Foi talvez a mulher mais mulher que o dia viu crescer.

Hoje, já não cresce muito qual espiga em campo de trigo. Hoje, cresce nos anos doces da idade. Olha o mundo com ironia, com aquele brilho por detrás dos olhos castanhos mel. Nos lábios já descaídos de trejeitos, ainda se esboçam pequenos ritos de ironia. O asséptico das relações fazem-na suspirar de novo. Os desinfectantes inundaram o mundo das emoções. Hoje o cheiro de éter paira sempre entre as pessoas. Não há medo, há sim, receio. Mas também não percebe. Se há liberdade, porque é que o receio existe. Coisa que ela, não muito dada a exaltações mentais, se limita a encolher os ombros, como resposta. Anota ,então, no caderno rosa que tem junto à alma os pequenos todos ,incongruentes deste mundo. Talvez tenha estado sempre enganada. Talvez seja tudo muito simples. Talvez a vida seja uma equação de pessoas. As incógnitas? Meros passos, que são sempre achados quando o resultado finaliza o exercício.

Talvez…assim seja o mundo.



.

.
Posted by Picasa

10 comentários:

  1. Um percurso de vida. De aprendizagem, de experiência. Num belíssimo texto.

    ResponderExcluir
  2. Não pode ser corajoso aquele que não sente medo. Os que não sentem, são apenas loucos.
    Belo, este texto de "mulher mais mulher"

    bjs

    ResponderExcluir
  3. "O asséptico das relações fazem-na suspirar de novo. Os desinfectantes inundaram o mundo das emoções."

    (E não é preciso dizer muito mais... belo texto mesmo!)

    Beijinho

    ResponderExcluir
  4. talvez a dúvida seja [sempre] aquilo que temos como certo

    duvidamos quando gostamos
    duvidamos quando sabemos
    duvidamos quando escrevemos
    duvidamos quando esperamos
    duvidamos quando fazemos esperar
    duvidamos quando temos tempo
    duvidamos quando não o temos
    duvidamos se somos
    duvidamos de duvidar

    em suma

    a dúvida é a normalidade dos génios

    .
    um beijo ,minha querida
    [ volto a pedir.lhe desculpa pela segunda.feira .acredite que estive a falar com duas pessoas ao mesmo tempo ,ao telefone .agora ,até à Bienal ,é uma perfeita loucura ... se as pessoas pudessem imaginar!!!!!. espero ,sinceramente ,que me desculpe ]

    ResponderExcluir
  5. assim se cresce... mas ficam sempre algumas incógnitas

    ResponderExcluir
  6. Extraordinario este texto.

    Um retrato de uma vida..sempre e sempre o talvez.

    um bjo

    ResponderExcluir
  7. Saudações amigas e desculpe o atraso , mas tenho tido problemas com a internet

    ResponderExcluir
  8. Menina você não escreve, historificas palavras.

    Me encanta.

    ResponderExcluir
  9. "Cogito ergo sum" mas neste caso eu sou apologista do "Dubito ergo sum". A vida desliza entre o "cogitare " sempre seguida do "dubitare" e, por isso mesmo, "ergo sum."
    Obrigada
    Beijos

    ResponderExcluir