Uma amêndoa, só uma…
Na velha cozinha de cheiros mornos e adocicados, o velho tacho de cobre resplende sobre o lume espevitado. Nuvens doces de odores evolam-se pela chaminé. Dentro crepita o castanho pastoso e liquefeito de açúcar. Uma volta e mais outra. A colher de pau, de cabo longo, gira no seu voltear lento como se fora velha a dança, mais a dançadeira. Preparam-se as amêndoas para o dia da Ressurreição. Nascem no tacho as bolhas quentes e vidradas do açúcar. O ponto está feito. Em breve o miolo das amêndoas, aquelas pevides meio gorditas revestidas de capa castanha acre ,que quando puxada deixa ver duas metades brancas quase marmóreas ,e cujo sabor é quase néctar de deuses, vai engrossar o castanho. Depois mais volta, e meia volta, até o líquido se evolar. Rapidamente moldadas e depois esfriadas, as amêndoas castanhas, rudes e apetitosas estarão prontas a serem chupadas ou trincadas conforme o estado de espírito.
Neste vai e vem de cozinha, tacho, colher e faces afogueadas Miquinhas de bochechas ofegantes e sorriso largo cantarola as modinhas, emprestando à velha cozinha um ar primaveril. Perpassa, numa onda corrida, o cheiro do rosmaninho. Será da cantiga, será do monte em frente? Quem sabe!
Risonha, afogueada e rechonchuda a Miquinhas chama pelos meninos da casa, sejam eles graúdos ou pequenitos. O tropel enche a cozinha plasmando-se sobre o velho e arquejante tacho de cobre. Espetam-se os dedos, queimam-se as pontas e os mais gulosos conseguem chupar as amêndoas. Os risos, o cheiro, a frescura em frente trazem alma ao momento.
-Estão divinais. Ouve-se.
-Um espanto. Diz-se
-Ó Miquinhas, tu tens cá umas mãos!
-Ai, quem me dera saber fazer disto!
Devagar, devagarinho vão deixando a cozinha. Os lábios vão lambuzados de açúcar, os olhares adoçados de luz doce e a alegria também rejuvenesce o corpo. Sozinha Miquinhas, moçoila quarentinha, suspira e senta-se no escano polido de tantas gerações de servidores. Estica a perna anafada e olha-a como se a sua vida lhe subisse dos pés para a cabeça. As meias de elásticos lassos caem-lhe nos tornozelos inchados, a saia de algodão já debotada de tão lavada, mas ainda de réstia florida espalha-se nas ancas soberbas que se percebem no rodado espalhado. O avental meio sujo e melado enrola-se assimétrico sob umas mãos vermelhas, de dedos fortes e unhas curtas mas que destilam assim mesmo ternura. O tronco é forte e espesso tal como os seios que se erguem pesados sob a camisolita de lã meia amarelada e arregaçada. O pescoço une-se a um rosto de olhos imensos e aguados e sombreados de pestanas. A tez é alva como o resto da pele. Quase leitosa. O nariz aquilino revela um carácter firme que se amacia logo a seguir no olhar terno, ferido de recordações. Pesponta-lhe um sorriso nos lábios cheios e vermelhos. Na cabeça negra riscam-se já de alguns fiozitos de cinza incipiente. O quadro está quase completo. A paleta misturou os tons. Faltam as cores da vida. E a vida de Miquinhas tem tanta cor e odor.
Nascera filha de criada e de jornaleiro. Criara-se por entre espaços de tempo e de sobrevivência. Fizera-se menina de tranças negras, e depois moçoila de formas redondas, plasmadas na dureza das carnes jovens. Apetecia na ligeireza do passo, no sorriso copioso ou ainda no gorjear de bando. Sempre fora a alegria do rancho, a Miquinhas das eiras mais das feiras. Bons verões dançados e pulados e namoriscados. Faceira e mimosa, a Miquinhas trazia os moços pelo beiço. Não lhes ligava. Não se prendia. Era como se fora o catrapiscar do volteio em breve toque matreiro. Assim chegara aos dezoito anos. Fresca, apetecida e atrevida.
Fora numa Páscoa. Quando as flores de pessegueiro, mais da pereira dançavam na brisa do tempo. O ar era fresco e limpo, o céu azul. Os lírios pespontavam nas bermas por entre o verde dos campos. Fumegavam as chaminés na cozedura do pão doce e mais do folar. O ar sentia-se doce, no cheiro das amêndoas. E ouviam-se os sinos. Parecia que o tempo sorria. Ela sorria também. Filha da terra, na terra bebia a sua força e encanto. Fora nesse dia que o vira. Era jovem, risonho, moreno e dançarino. Naquela noite dançara e rodara, rodara até mais não. Acabara na palha numa roda sem fim. Rira, suspirara, abraçara e bebera-o a ele, e ele ,a ela. Um líquido precioso de gosto mélico. Fora uma sofreguidão de horas. Depois ainda meio zonza, erguera-se, cobrira-se e olhara-o bem dentro dos olhos. Soubera logo que era de partida. Não pedira. Sorrira. Estranhamente.
No adeus de braço estendido, ele pegara-lhe no saquito bordado, que tinha à cintura e onde meia dúzia de amêndoas já coladas pelo calor do entrechocar dos corpos, mais da labareda anterior, pingavam meladas, ele, disse-lhe assim… uma amêndoa, só mais uma… e num harpejo de graça puxou-a a ele, e trincou-lhe os lábios túrgidos de desejo de fêmea ainda fremente.
Tremeram-lhe as entranhas,mas docemente, estendeu-lhe a amêndoa do seu ser…
Foram as suas amêndoas mais doces!
Tão bonito e tão triste... Fazes-me recuar uns tempos atrás, quando andava pela cozinha da minha avó, no meio de uma aldeia perdida... :)
ResponderExcluirBeijinho!
cá pelas minhas bandas ,costuma.se dizer - "tardou e arrecadou". pois foi o que aconteceu com vexa ... tardou ,para consolar.nos com mais um dos seus magistrais contos .é de louvar ... mas, como a autora não carece de levar tanto tempo a criar ,se no futuro se verificar um outro espaço de tempo tão demorado ,recorrerei ao sindicato dos bloggers para que decrete uma greve geral de visitantes ... eheheheheheeh ... viperina como só ela [ neste caso ,o je ]
ResponderExcluirbrincadeiras à parte
delicioso ,como sempre
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um beijo
Gostei especialmente deste texto!!!***
ResponderExcluirA Páscoa é uma passagem
ResponderExcluirJá temos ponte
só nos falta o rio
bjs
... triste, lindo!
ResponderExcluirSerena Páscoa!
Beijos
As saudades que o teu lindo triste texto me deixou. Aqui deixo os votos de uma excelente Páscoa e um beijinho.
ResponderExcluirGostei de ler o seu conto e a sua forma de explanar os sentimentos, que quanto a mim eles cont�m um sentimento rom�ntico muito profundo. Parab�ns e v� continuando a escrever que eu voltarei mais vezes
ResponderExcluirESTE É O PAÍS REAL
ResponderExcluirAGRADEÇO ESTE MOMENTO
Vamos lá ver se a mim me toca qualquer coisinha...
ResponderExcluirDesejo-lhe um boa Quadra Pascal.
Que lindo! Transportei-me à minha aldeia, aquela onde vivi em pequena. Uma maravilha.
ResponderExcluirUma boa Páscoa para ti.
Doce a amêndoa, da tua parte, mais um saquinho de palavras bem cozinhadas para nós.
ResponderExcluirBeijinho*
Pinga doçura, este conto...
ResponderExcluirbjs
comecei por sentir o aroma do açúcar... as amêndoas... e acabei por ficar com ela entalada na boca.
ResponderExcluirpergunto-me se a miquinhas continuará a provar as amêndoas na páscoa!
abraço
luísa
Há na paixão do fazer o sabor tão igual ao entregar. Entregar-se. Só mais uma vez, uma única que seja e que adoce pelos tempos fora esta amendoa que mais ninguém a saberá tão genuína quanto Miquinhas.
ResponderExcluirBelissimo texto, tão azul.
Um beijo.
Muito obrigado por estas amendoas de gosto especial.
a páscoa prolonga.se assim tanto ,Matezinha?
ResponderExcluir[volta breve .estás perdoada!!!!!!eheheheheheeheheh]
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um beijo ,Amiga
Já vai longe va Páscoa mas mesmo assim tudo de bom e obrigada pela vossa presença e palavras.
ResponderExcluirBj.