A M É L I A
Amélia é figura e pessoa de artifícios. Brinca com os dedos esguios de unhas vivas no sussurrar das palavras escolhidas. A boca cheia, húmida e gulosa espraia-se num sorriso de dentes alvos. O tom da pele é mate condizente com o negrume da cabeleira longa e tratada Figura de ondulados requebrados e lisuras quentes, ela deixa no trejeito balanceado da anca, o adivinhar de promessas quentes e suadas. Passa lenta e bamboleada. Sobeja-lhe carne na tira de pano, as nádegas duras não estremecem no meneio. Deixa atrás de si o cheiro de fêmea em mil promessas sonhadas. Pé aqui, passo acolá ,e ei-la em frente do carro. Deita um olhar enviesado para trás e sorri. Sabe que os olhares a seguiram. Devagar, devagarinho, baixa o tronco, as pernas, mantém-nas hirtas ,realçando-as. Os seios num semi decúbito espreitam no decote redondo. São frutos maduros de carne acetinada que estremecem em cada suspiro de encanto.
Amélia de proficiente geóloga, no dia-a-dia torna-se em gloriosa acompanhante, ao fim-de-semana. Duas etapas que lhe preenchem as semanas, e lhe vão forrando a carteira bem como os hábitos de vida. Tudo começara há já tanto tempo, parecia-lhe.
Devia andar pelos seus dezassete anos e já era um traço como a chamavam. Tudo nela vibrava desde o cabelo ondulante aos pés esguios e morenos. O corpo, o seu cartão-de-visita, que a mãe queria tapado gritava-lhe de ânsia no côncavo dos dias. Tudo começara de uma forma simples e linear. Um convite para uma festa, um convite para um brinde, um semi-cerrar de olhar, uma mão quente na nádega morna descaindo ligeira para a púbis e…. Todo o resto girou em volta. Depois nem sequer houve lágrimas, antes o desejo incontrolável de mais e mais. Nunca tivera dons especiais mas naquela arte tudo lhe vinha em jeito, era só colocar o desejo do corpo nas mãos e nos lábios, roçar e ondular, envolver, e sentir, sentir tudo. Tornara-se verdadeira artista do amor, sabia pintá-lo nas pregas do desejo em tons de paixão. Era procurada, invejada e adorada
O seu jeito não colidira nem impedira que o curso fosse iniciado e concluído. Deste ao emprego e á carreira foi um salto. A mente e a carne numa dicotomia de géneros. A sua arte subsidiou-lhe o curso, pagou-lhe a integração em meios que nunca sonhara, e fez dela uma referência de bem vestir. Longe do olhar inquisitivo materno e da pequenez do meio que afogava, Amélia lançou-se na profissão mais velha do mundo, mas cheia de classe. A sedução passou a ser mais do que nunca a arte, por excelência. Depois veio o saber estar, pisar, falar, sorrir, comer. Tudo nela é perfeito. Hoje entra no carro com o triunfo da vitória na boca húmida. Aqui é uma desconhecida, no seu meio, uma senhora. Todo o fim-de-semana, ela, Amélia, apanha o avião, o comboio ou simplesmente senta-se ao volante do seu carro percorre milhares de quilómetros, aloja-se em belíssimos hotéis, pousadas, mansões e vive as vidas de sonho que um dia imaginou. Os companheiros, breves condutores de momentos e molas reais dos seus caprichos, sejam eles carnais ou materiais, não contam na sua jogada de vida. São meros epitáfios. Acompanha-os a festas, recepções. Sorri, passeia a sua beleza e guarda a sua inteligência. Ri sobre um chabblis ou sorve delicadamente um cointreau. Mordisca graciosamente um aperitivo. Sussurra amiúde ao ouvido do seu par que invariavelmente assente e lhe sorri do fundo dos olhos. Quando o tempo se arrasta em conversas demasiado pesadas, tem a graça de torcer um salto, entornar ligeiramente o ouro de algum balão ou simplesmente deixar cair algo. Aí é voluptuosa no baixar e no erguer. Rapidamente o silêncio se impõe, e lesta a acompanhante sorri, domina o braço, o olhar, e a vontade do seu par. Depois é levá-lo sendo conduzida para o lugar dos quereres. Aí, qual rainha domina o seu súbdito. A máscara deixa de ser gentil para se tornar ávida e gulosa, feita natureza em labareda.
Um destes dias, numa daquelas vernissages tão em voga e tão decrépitas em si, enquanto acompanhava uma digníssima figura da nossa praça, da arte da escrita, e passeava o seu olhar em redor na tentativa de minorar o aborrecimento, premissa da função, reparou naquela sombra que descrevia em si força, e uma certo ar blasé. Rapidamente, como predadora que é, sentiu a necessidade de se apoderar dela, e pé ante pé, de sorriso e olhar doce, tanto a olhou que, um belo quarentão maduro lhe devolveu o sorriso num olhar bem azul. Com segurança de quem conhece o género, aproximou-se, cumprimentou, trocou as trivialidades habituais e, estabeleceu de imediato a empatia necessária. Aquele fim-de-semana foi excessivo em tempo. O escritor adulado, de sorriso aberto era afinal, um ser quase abjecto, tratando-a como se fora algo descartável. Tivera que cumprir o contracto e nada mais. No dia seguinte já liberta da névoa pesada da noite, e tendo sempre no fundo da cabeça o sorriso azul tratou de utilizar todos os artifícios e artefactos ao seu alcance para o localizar. O nome do seu dono era Fernando. Fernando Cerveira e pronto, telefonou. O encontro foi marcado algures, num restaurantezinho simples e saboroso. O que comeu, bebeu ou falou não recorda, apenas uma sensação de calma e tranquilidade, um compartilhar que não sentira nunca. Não precisou de se utilizar Conversaram sobre tudo e nada, acharam pontos em comum, riram dos nadas e falaram dos muitos. Os encontros sucederam-se durante a semana. Lenitivos da sua vida. Era feliz. Não tinha, pela primeira vez, vontade de partir em aventura. Mas o seu amigo, estava ocupadíssimo ao fim de semana.
-Amélia, os fins-de-semana são sagrados para mim. Não nos podemos encontrar. Estou ocupadíssimo.
-A família talvez? pergunta Amélia
-Ah, ah, ah, minha querida, não de modo nenhum. O eterno feminino. Não apenas a minha profissão…
Aceitou, havia os outros dias da semana, e eles eram tão preenchidos pelos dois. Fernando começara por subir até sua casa, depois a jantar, conversar, e finalmente a amarem-se.
Tudo acontecera naturalmente no leito do seu quarto. Entregavam-se calmamente, sorriam no jogo leve de sedução, respiravam em uníssono na entrega e riam felizes na consumação. Era a descoberta. Diferente, uma doçura viva e não uma labareda atiçada em cavacos de desejo. Seriamente começou a descuidar os seus fins-de-semana, a entreter-se com coisas diferentes da sua pessoa, a prestar atenção às pequenas coisas em seu redor. O mundo era mais próximo.
É domingo. Está em casa e abre a janela, respira o ar que a brisa do mar espalha Enche os pulmões e pensa no que vai fazer.
-É isso, diz para os seus botões, vou dar um passeio pelo velho Porto. Uma visitinha cultural. Já faz tempo.
Veste-se ligeira de forma solta mas coquete. Desce e entra no carro. Conduz alegre cantarolando livremente. Brinca-lhe nos lábios o sorriso da vida e nos gestos o calor do encantamento.
Já no adro da Sé percorre-o lentamente, e olhando em redor de pálpebras semi-cerradas abrange as colinas debruçadas no rio ziguezagueante que se perde na boca do mar. As cores alargam-se nas margens crepitando de vidas. É a sua cidade. É bela, velha e sábia.
Dá meia volta e vê a velha Sé. Imutável no tempo, sólida na amargura e doce no amparo. Hesita. Não é lá muito de igrejas…é só uma visita. Entra. A penumbra varre-lhe o corpo e aflora-lhe o espírito. Está quase vazia. Percorre a ala lateral e lentamente ajoelha-se. Não sabe porque o faz. Ergue o olhar e fixa-o na imagem de Cristo crucificado Entabula um solilóquio que a recolhe profundamente. De tão absorta não ouve o os passos, nem o rangido do banco. Sente a mão no ombro…a voz pressente-a no seu interior. Ergue a cabeça e olha sem ver. Uma cegueira não de sol mas de negação. Olha uma vez e outra… e outra. A seu lado uma sotaina, um colarinho branco e um olhar azul, dizem-lhe que a igreja vai ser encerrada.
-Tu?! Tu?!
-Oh, Amélia!
Salta e corre para o exterior. Atrás de si vem a batina… a batina!
-Oh meu Deus! És mesmo padre? És padre?
-Sim.
- Como…pudeste…?
-Pude, fiz, e sou aquilo que vês. O meu voo começa e acaba aqui. O corpo leva-me mas o espírito traz-me. Perdoa-me, se puderes.
-É só…? Nada mais?
-Sim!
Amélia baixa-se lentamente como se fora cair. Mas apenas se acocora. Abana vivamente a cabeça, os cabelos espalham-se finos e revoltos no rosto. Tapam-lhe as narinas quase impedindo-a de respirar O olhar é negro, dorido, partido e sofrido. Desapareceu o brilho e há a luz do ódio. Os punhos cerrados golpeiam o muro…Não grita, porque o som desapareceu perdido no peito latejante.
Já de pé corre para o carro. Conduz rápida e arfante. Não chora, não soluça, não treme. O seu voo começara, as asas estavam abertas e ela planava livre, livre… no azul do seu espírito…
Durante toda a leitura evoquei alguns filmes de Manuel Oliveira.Um beijinho.
ResponderExcluirporque raio os preconceitos hão.de negar o prazer?
ResponderExcluir.
e depois?
.
que mal fizera se o haviam achado a dois .raios partam a batina que havia de estragar tudo .e raios partam esta Amélia que não teve coragem de continuar em contra.mão
.
( amanhã, quando for à missa - ehehehehe - vou olhar para os olhos do padre .se calhar são azuis... )
beijinhos cheios de sem vergonhice
Juataposição corpo e alma
ResponderExcluirOu seria injusta?
bjs
Ana
Escrita perfeita. Dá gosto ler-te. Pergunto-me: seriam diferentes, Amélia e o seu padre? Pássaros de voos clandestinos. A vida é multifacetada. Quase sempre.**
ResponderExcluirÉ a 1ª vez que por aqui passo, embora uma amiga já me tivesse comentado o blog.
ResponderExcluirEstou nos ínicios das minhas postagens, tentando criar alguma coisa que valha a pena...
Por isso, acho que não devo deixar de comentar quando tropeço em algo que deveras gosto.
Um conto espectacular, no meu modesto ponto de vista.
Vou continuar a visitar o blog.
Soube a Mel! Coitada da madame, é que nem casado o homem era, era padre mesmo!tau! Não deve ter sido inocente a associação à Amélia e ao Amaro queirózianos;)
ResponderExcluirbj
Sabes o que é ler com sofreguidão? Pois foi assim que te li. Gosto da riqueza dos pormenores que nos facultas. Montas o cenário e as personagens, só temos que seguir a istória e podemos dizer. Eu sei, eu vi , eu estava lá.
ResponderExcluirSe por um lado tenho pena da Amélia por outro critico-a, Afinal foi à luta fazendo do seu corpo alma para ter todos os bens materiais que desejava e baixou os braços quando foi para lutar por aquilo que realmente era importante. Tantas Amélias cobardes que andam por aí.
Adorei
um beijo
O amor não tem fronteiras
ResponderExcluirpara quem ama.
Coitado do padre.
Como sempre texto bem escrito
Olá!
ResponderExcluirConvido-te a escrever uma CARTA POR DARFUR!
E estarás a lutar por uma grande injustiça da humanidade...genocidio...
http://eu-estou-aki.blogspot.com
bjts
Gosto de ler-te. Consegues prolongar um momento por muitas palavras e não deixas fugir os ângulos, mesmo os mais esguios :) És uma boa contadora de histórias.
ResponderExcluirEsta Amélia é forte, ..., não vai ter qualquer dificuldade em voar.
E as batinas impedem o amor!*
ResponderExcluirE porque não?
ResponderExcluirO clero é lá abstinente!!
Beijinho, Mateso
(a vida é cheia de surpresas, pois claro)
esta canção na voz de carlos mendes é linda de morrer
ResponderExcluir.
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venho ,amiúde, apenas ouvi.la
.
agora apeteceu.me deixar o registo
( menina ,este teu blogue ,para além do bom gosto, prima pelo hino saudável à verdadeira BELEZA )
vou sair para voltar de mansinho!!!!
beijos
ao fim de não sei quantas tentativas não resisti ... a "amélia" voou para o canto.chão ... se quiseres retiro ,mas gosto demais deste poema musicado
ResponderExcluir1 bj
É muito dificil para mim comentar-te. Fico sem palavras.
ResponderExcluirLi e reli e acho que amanhã estou cá a ler outra vez, está divino.
Obrigada por estes momentos que se não foses tu nunca os teria.
Beijinho
texto que se come
ResponderExcluirmas sobretudo se
saboreia.
letra a letra.
passo a passo.
com intenso prazer.
/como um jantar requintado!!
muito belo.intenso!!
:)beijO
Querida amiga,
ResponderExcluirSimplesmente fantástico, este conto!
Em jeito de comentário. Te deixo este meu poema.
Beijinhos
Por seres mulher!
Bem cedo, dizem-te como deves ser
O que, como, e o que deves fazer
Esquecem que podes ter outras vontades
Tentam impor-te velhas realidades
Mas se inconformada, ignoras os rituais,
E segues só os teus impulsos naturais…
Logo clamam contra a tua rebeldia
Dizem que és obstinada e irreverente,
Difícil, e até inconveniente
Pois ser assim é demais, é ousadia!
Sorrindo, entre as teias desta contradição
Assente, desde sempre, em subtil opressão
Vais resistindo, sem a tentação, sequer…
Que teimam em dizer que és, por seres mulher!
Mário Margaride
Que lindo, belo conto...
ResponderExcluirboa noite
gostei deveras
ResponderExcluirsaudações amigas
há sempre espaços por preencher com palavras salpicadas de cor...um abraço
ResponderExcluirLinda m�sica e quadros muito bons.
ResponderExcluirVoltarei com mais deten�a.
boa noite, por aqui passei e voltei
ResponderExcluirpara reler
saudações amigas
Gosto de ver assim expostas as hipocrisias, com a beleza da letra sábia. Quanto a beatices, não as suporto....
ResponderExcluir(ainda não li, prometo que cá voltarei. vi o teu comentário na Gi - Pequenos nadas - e não resisti em dizer
ResponderExcluir"Miguel Torga tinha a particularidade (que ali a mateso deve ter também!) da paixão pela sua terra e a sua gente"
Em primeiro lugar, devo pedir desculpas por este comentário tão tardio. Não podia deixar passar mais tempo sem te dizer que o último texto no meu blog surgiu depois do desafio que me lançaste no mês de Agosto (e ao qual eu vergonhosamente não respondi). A verdade é que focaste três séries televisivas que eu gosto muito, "A Ferreirinha", "Anjos na América", e "Dr. House". De imediato, veio à minha memória uma frase desta última série: "That’s what life is. It’s a series of rooms. And who we get stuck in those rooms with adds up to what our lives are.” E foi a partir desta ideia que o meu texto surgiu. Da ideia de eu estar presa no quarto comigo mesma. Por isso, quero agradecer-te o desafio e a inspiração. Quero dizer-te que gosto de viver estas personagens que crias e nas quais facilmente nos perdemos.
ResponderExcluirUm beijo,
Sofia.
addiragram.
ResponderExcluirFico sensibilizada pela comparação. mas não possuo os espaços de Manuel de Oliveira.
Beijinho.
Gariela Martins.
Eram azuis? duvido... e jeitoso? ainda mais...
Porque não lutou ele também?
Eram dois, não eram ?
Beijinhos.
Anónimo.
ResponderExcluirClaramente
Beijinho
Vida de Vidro.
Se é.. mas vamos tentando justificá-la.
Obrigada
Beijinho
mena g.
ResponderExcluirObrigada pela visita ao meu cantinho bem como pelas palavras.
Também já dei uma olhadela no teu espaço. Bonito.
Beijinhos.
Abssinto.
Nem com mel, estás vingantivo.. anda por aí uma vingançazita.. ai...ai.
Obrigada pela atenção
Beijinho
Gi.
ResponderExcluirGrata pela crítica. Fico feliz por estares lá.. é sempre bom poder ouvir isso.
Beijinho.
Mar Arável.
Coitado?! Desculpa mas dicordo...
Obrigada pela vista e apreciação.
elsa nyny
ResponderExcluirJá respondi ao solicitado.
Beijinho
Carteiro,
Pois... as pontas geralmente gosto de as transformar em laços...
muito sensibilizada pelas tuas palavras.
Obrigada.
Yardbird. Claro que o clero não é.. todos sabemos,. Mas também sabemos que na hora da escolha recuam quase sempre.
ResponderExcluirÉ um facto...
Beijo.
Al.jib.
De modo algum. Sensibilizada pelas palavras.
Um beijinho.
Calimera.
ResponderExcluirQue exagero minha querida! É apenas um pequeno conto. De qualquer das formas ,fico sensibilizada pelas tuas palavras.
Um beijinho
Un-dress.
Simplesmente
obrigada.
Beijo
Mário Margaride.
ResponderExcluirMuito sensibilizada pelo teu poema.
Obrigada.
Um beijo
Jasmim.
Grata pela visita e palavras.
Beijo
c Valente.
ResponderExcluirGrata pelas visitas e comentários,amigo
Bjs.
Cm.
Espero contar sempre com a tua visita
Um beijinho
lapa.
ResponderExcluirContente pela visita. Obrigada pela apreciação. Beijos
Arion.Vasco.
Desculpa mas gosto mais assim.
Há que dizer a verdade... senão somos meninos feios, não será assim?
Beijinhos
Teresa Durães.
ResponderExcluirJá te respondi lána gi. Sabes sou um pouco palavrosa...Volta sempre.
Um beijinho
Ana sofia cavadas.
Minha querida fico feliz se por alguma pequena razão te dei azo a inspiração. Depois o texto é óptimo, aliás já te disse que escreves muito bem, se bem me lembro ( ui que nenésiana) comentei-o extensamente.
Obrigada minha querida e aparece sempre.
Beijo.