Anda nos seus setenta e muitos. Figura doce. Os cabelos são alvos, o rosto ainda é rosado, as faces são pêssegos maduros de covinhas risonhas. Dona Santinha é uma cesta de fruta a cobiçar o desejo de ternura.
Quem a conhece, sabe que a vida foi um cacto espinhoso de criar e moldar. Mas foi …
Enviuvou cedo, demasiado cedo. A prole era de cinco, todos seguidos. O seu, Albano, que tenha a alma em descanso, era homem de necessidades prementes e cuidados descuidados. Todos seguidinhos sem descanso. A Clara, o Francisco, o João, a Susana e o Afonso, o seu derriço e pecado. Hoje é avó de vinte e um netos e bisavó de cinco bisnetos. Mal sabia o seu Albano o que as pressas poderiam dar…
Sentada na sua velha cadeira, misto de chaise-longue e poltrona Dona Santinha vai desfiando o passado com aquele sorriso doce de sabor cheio. Já lá vão cinquenta e muitos anos. Ai, tanto Jesus!
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-Menina, o seu paizinho chama-a à sala.
-O que é que aconteceu, Maria?
-Menina, eu é que sei. … Vá mas é lá. Senão… já sabe.
-Tu sabes. Diz lá… Tá bem. Pronto…
Com o coração apertado, lá se dirigiu á sala. Bateu, entrou e pediu a bênção.
Sentados, os pais esperavam-na. A mãe quase sumida pela presença avultada e áspera do pai, Parecia mais pequena e ele, com aqueles olhos enormes que pareciam querer adivinhá-la., simplesmente pigarreou e afirmou.
-A menina vai casar-se. Arranjei-lhe um marido. A sua mãe dir-lhe-á.
E pronto. Deu meia e volta e saiu. Santinha, perplexa e meio zonza, ouviu a mãe dizer-lhe que o Albano, rapaz às direitas, filho de Artur Nóvoa, era o seu futuro. Estudara e era um rapaz de bem. Ponto final parágrafo.
Casara-se como mandavam os preceitos. De inicio custara. Dormia com um estranho, mas aos poucos fora-se habituando. E depois não havia nada de amores, como Rosarinho, a sua neta mais querida lhe dizia, era só amizade e depois muita ternura. Tanta que ainda hoje suspirava com a falta daquela onda que a costumava invadir.Aos poucos fora nascendo os pequenos. A primeira é que custara mais, depois fora mais fácil.
Foi naquele Verão. No ano seguinte à Clarinha ter entrado para o colégio. Tinham ido para Moledo, como sempre, desde que se lembrava de ser gente. Estava grávida de Afonso. O verão era esplendoroso. As crianças, um bando de andorinhas sempre de um lado para o outro. A sua Maria era o seu grande apoio. Tinha vinte e oito anos. Sentia-se plena, mulher
O dia fora igual a tantos outros na praia, a Maria levara o almoça às crianças na sua grande cesta. Comera-se na barraca como sempre. Ela conversara com as amigas, as crianças brincaram, no mar, na areia, e regressaram a casa. Depois do banho já deitadas, ela sentara-se na saleta para uma breve leitura. Não esqueceria jamais, a chegada convulsa do pai, dando-lhe a notícia … que o seu Albano tivera um acidente. Que tinha que partir rapidamente, as crianças ficariam.
E lá foi ela.
Foi só e ficou só. Só de alma e de ombro amigo na solidão dos dias que correriam.
A vida, doce até então deu uma reviravolta. Teve que fazer face a tudo. Aos filhos, á casa, aos negócios e á vida. Á vida, sobretudo. Mas não descansou os braços no parapeito das convenções. Pouco a pouco tornou-se dona de si, da sua vontade e do seu pequeno mundo, para além das crianças e da casa.
Santinha Nóvoa foi pioneira, no seu tempo de mulher. Não chegou a vestir calças, mas vestiu a determinação das decisões., num mundo feito de homens e para os homens. Era a província dos anos quarenta e cinquenta. Era o Estado Novo. Era o mundo fechado em si e sobre si.
Era vê-la, lado a lado, com os homens e as mulheres na fábrica de tijolo. Aprendeu o ofício, sujou as mãos e partiu as unhas. Ganhou o respeito. E a Telheira foi pão de muita gente da região. Foi também a côdea e o miolo dos seus filhos, da sua casa e de si. Recorda…
-Dona Santinha, a máquina partiu…
-Minha senhora é preciso, enviar esta encomenda…
-Dona Santinha os operários querem aumento…
Minha Senhora…Dona Santinha… Patroa…Mãe… Menina…
Ecoam os chamamentos no tempo ido. Sente alguma saudade. O tempo foi. Já não é. Hoje descansa, pensa e frui o que sobrou de então. Da vida agitada mas cheia. Da casa de riso fresco e cheio. Das portas que batiam e dos passos corridos na tábua já gasta. A casa, armário de pequenas vidas de tamanho já passado. Hoje é grande, solene, vazia quase ermida perdida no alto. Apenas uma vez ao ano, a casa acorda. Pelo Natal. Repete-se há cinquenta e tal anos, inexoravelmente. Revive em cada data. Depois hiberna no tempo.
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Recordou sonhando ou estava acordada? O tempo já lhe prega destas partidas. Ajeita-se e pega no livro. Olha o telemóvel como se esperasse … por uma voz.
Ah, os filhos que se esquecem…os afazeres. Dá-lhes a desculpa. Vidas. Algumas partidas, outras meias feitas. Escolhas, agora dizem-se opções. Não são as escolhas dela, são deles. Mas gosta das suas duas noras e dos seus três genros. Pensa ser assim que deve chamar ao companheiro de Afonso. Bom rapaz. E ele, o seu filho é feliz. Custou-lhe mas acabou por aceitar. Um escândalo no inicio. Os irmãos foram os piores, aliás dividiram-se como sempre acontece nas famílias. Uma vez mais teve que apanhar os cacos e colar a família. Um acto de reconstrução. Hoje coabitam todos, no Natal, diga-se, e ali na casa velha, os pruridos sociais desarmam-se para se tornarem todos filhos e irmãos. Lá fora, no frio do tempo fica o preconceito estreito de quem não sabe amar e aceitar. Cá dentro, tal como o seu coração, crepita a labareda viva da lareira afagando as vontades.
Mas se fora só o seu Afonso. Também o João e a Susana já se tinham divorciado, casado e sabe o que mais. E as netas e netos. Tudo diferente. Já se habituara ao desfile de caras novas. Buscavam a felicidade, tal como o tempo. A instabilidade era apanágio destes dias. Na sua opinião amavam demasiado o amor. Depois ficavam exauridos para amar o concreto. Mas como ela lá dizia para os seus botões. "Que cresçam, que sejam felizes!" Ela também fora diferente e hoje era uma Senhora de coração aberto e alma doce. Pensa amiúde: "A vida é a arte sublime do Homem" porque desprezá-la, então?
Um som forte agita-a. É o telemóvel.
-Estou? Sim?
-Rosarinho, vó.
-Diz , minha querida. Tudo bem?
-Vózinha querida -a voz treme muito, num soluço perdido. -Preciso de si, muito!
-Então, o que se passa, diz que fico aflita.
Um silêncio e um soluço e depois a voz entrecortada.
-O Pedro Maria deixou-me… saiu de casa. Oh Vó…tou tão…
-Minha querida acalma-te. Estás em condições de vir até cá?
-Sim, Vózinha…sim…
-Então espero-te ainda esta noite. Tem calma. Tudo se resolve.
Desligou, suspirou, levantou-se e dirigiu-se para a cozinha. Há que fazer uma boa canja. Depois logo se verá. De novo os cacos. Mais uma colagem, mais uma página lida que terá que ser relida. Ergue as mãos e murmura:
-Que sou Santinha, sei, mas um vá lá, um pouco de Temperança, também não me caía mal.
-" Não resmungues. A auto-comiseração não te fica bem. É mais uma oportunidade de seres útil. E tu sabes fazer isso. É a tua vida."
Olha em redor. Será que ouve vozes? Será? É a sua consciência. Uma inoportuna ao longo da vida, mas uma amiga também. Já refeita, solta uma gargalhada sólida e franca. Inspira a plenos pulmões e diz a meia voz:
-Vamos lá, então ver onde o barro partiu, se foi forno ou defeito…
É destas grandes Santinhas que a alma de um povo também se faz! Beijo!
ResponderExcluirUma vida..
ResponderExcluirbjinhos
"uma vida agitada mas cheia"
ResponderExcluirduma ou doutra maneira pensa-se e deseja-se chegar ao fim, numa chaise longue qualquer e pensar o mesmo...
[digo eu...]
beijos
______.
-Gasolina disse:
ResponderExcluir-----------------------
Desfiando a vida enquanto os cabelos enbranquecem.
Com mestria.
Um beijo, Mateso Azul
impossível resistir ao apelo
ResponderExcluir.
.
mesmo quando o tempo não é muito ,não consigo resistir à não leitura das tuas histórias
.
e às vezes escrevo que o enfabulador é o meu "ele"
e rendo.me ao teu "ele" ,todos os dias
um beijo
( deliciosa ,como sempre ,esta tua Dona Santinha )
"..ver onde o barro partiu, se foi forno ou defeito..."...do barro se moldam almas que correm na ponta das tuas palavras....
ResponderExcluirum abraço
ah!! Lindo conto!!
ResponderExcluirdesculpa não ter vindo mais cedo ler-te. Trai-me a concentração.
Amiude voltarei. Bom fim-de-semana
Arion,
ResponderExcluirSantinhas, quantas não há? tantas ... neste povo e algumas até menos "santinhas".
Bj.
velas ardem até ao fim..
E que vida...
Um beiji.
Letras de Babel,
ResponderExcluirTambém eu queria uma... apenas um sofázinho já me chega ... e depois o meu barro é outro... moldo outras vidas...
Beijo.
Gasolina,
ResponderExcluirOs cabelos ... as brancas... sinónimo de percursos vividos... uns doces outros.. talvez menos.. mas é mesmo assim.
Bj.
cm,
moldar, interpretar, criar é algo intrínseco.. umas vezes sai bem, outras menos bem... mas lá se vai... andando.
Um beijo.
gabriela martins,
ResponderExcluirEfabulador? moi même? Mais non, mamie. Je raconte seulemente des trés petites histoires...vraies, parfois...
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Sensibilizada por esse "forcing on time"... e pelas palavras...
Um beijo.
Teresa Durães,
ResponderExcluirGrata pela visita.
O tempo dá e tira, nesta caso, certamente que dará...
Um beijo.