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04 abril, 2024

. .VII
 No café da aldeia os últimos homens saem. O cheiro a café, aguardente, suor e ao resto do dia paira no ar. Júlia passa o pano húmido pelo balcão moída de cansaço. A um canto, as filhas rebolam-se de sono entre olhos revirados e cabeças despenteadas. São pequenas as suas meninas mas são a sua fortuna. Júlia tem que varrer o chão, desligar as máquinas e fechar o recinto. Mais meia hora. Abana as filhas, pega nelas em redor do corpo e sai. Uns passos e a escada da casa está mesmo ali ao lado. Abre a porta da cozinha, acende a luz e sobe até ao andar de cima. Deita-as nas camas, beija- -as suavemente e apaga a luz. A mais velha ainda entaramela algo, impercetível, a mais nova dorme profundamente. Já vai para mais de duas horas que tinha aterrado no descanso. Entra no seu quarto, despe-se, enfia uma camisa, e literalmente, atira-se para a cama vazia. Está só, mas mais rica, tem as filhas. Labuta entre o pouco e o nada, na mira da sobrevivência. Assim foi desde que se casara. Tantos a alertaram para o passo falso que iria dar. Não acreditou. Alguém acredita quando se tem um amor serôdio, quando se confunde paixão com compaixão, quando se tem um homem, quando se completa o quadro que foi incutido em anos de vida: Ter um marido! Claro, que não se acredita, claro que se pensa que se irá dar a volta por cima, que se irá conseguir. Todavia, quando os anos passam, quando tudo se esboroa, quando se acorda e vê que esse que ressona ao nosso lado é um fraco aí, os ferros do portão |da vida sentem-se no corpo, mas, mais ainda na alma. A prisão do quotidiano, a angústia de cada dia, o vazio de amanhã. Os dias que escorrem por entre os meses desaguando em anos amarfanhados sobre o corpo dorido do trabalho. Apenas as filhas lhe sorriem do quarto ao lado. É por elas que mantém a labuta insana dos dias, suporta o homem que ressona a seu lado. Sabe que deixá-lo seria libertar-se do seu pesadelo, porém as convenções e quiçá a resignação secular de mulher de aldeia, fá-la manter-se ao leme dos dias. A confusão de Júlia, a resignação de Júlia nasceu nos dias de meninice. A mãe, que Deus a tenha em descanso, se acaso pode, era uma mulher muito especial. Não por possuir quaisquer qualidades extraordinárias, pelo contrário. Um ser difícil de trato, de compreensão. Em muitos anos de convivência nunca se conseguia perceber aquilo de que gostava, no entanto, era bem patente o que não gostava, mais que não fosse por um cerrar de lábios e um fechar de rosto. O parece mal preenchia-lhe o código de conduta até à medula, consequentemente, a educação da filha foi uma quase castração de sentires, castrador possível, atendendo aos tempos pois que eram os idos de sessenta, setenta. Por esses tempos já muita coisa tinha levedado nas mentalidades das mulheres, todavia, a da mãe de Júlia manteve-se igualzinha a ela mesma. Pão ázimo. Sem tirar nem pôr. Júlia, que por infelicidade hormonal bem cedo teve atributos físicos de mulher, foi como castigo proibida de brincar com as outras crianças e obrigada a aprender os pontos de cheio e meios pontos do croché e bordados. Chegara o tempo da feitura do enxoval. Sendo uma criança viva, ao ver-se aperreada, iniciou um processo de rebeldia interna que lhe acarretou sérios problemas, os quais ainda hoje carrega, pese a lucidez da idade a ter visitado há já alguns anos e, se não fora esta a própria dureza de existir, tornou-a mais serena. Anos depois, tomou-os como a sua cruz, suportando um tipo cujo molhe | 65 | de defeitos daria quase para um fardo de boa palha. O tipo em questão também não foi senão uma vítima de uma família de sentidos e sentimentos rudes onde o carinho e a educação foram primários, onde o intuito primeiro foi sempre o de fazer dinheiro e comprar bens. O resto, como compreensão, a educação são supérfluos, aliás ditos como coisa de ricos. Isto, não é senão a história de um povo. Vivem no Douro, região tão pródiga em fabulosas riquezas visuais e tão acre em sentimentos, rude como o solo xistoso e seco. As gentes são talhadas no xisto que cobre o solo. Cortantes, secas e miúdas. Labutam há gerações no pequeno socalco, na apanha do cacho, no pisoteio da uva. São vergastados pelo trabalho, endurecidos pela vida. As palavras soltam-se ácidas e adulteradas. Não existe facilidade de expressão que é tapada pela boca cheia de palavras mal ditas ou pelo jargão constante. — Ó Zeza, na viste por í o mê home? O filho de um cabrão saiu de manhã e ainda na pôs os cornos em casa… Este é o falar da gente do povo. Nada de frases limadas, nada de artifícios doces. Assim duro e puro. Júlia teve como pais dois seres da terra. A mãe, não usaria o jargão, por uma espécie de prurido que a acompanhou ao longo dos anos, já o pai, à medida que os anos o dobravam, utilizava-o para se aliviar, talvez do dia-a-dia, talvez de si mesmo. Júlia fugiu dali. Cresceu, tornou-se maior e viveu, depois apaixonou-se compadecendo-se. A confusão que lhe vinha dos anos tenros estalou uma vez mais, uma desordem que sempre sentiu entre o amor e a compaixão. E assim casou-se. Hoje confessa que deu um mau passo. Repetidamente serve os copos de vinho, os cafés, o isco e os gelados. Entre o tabuleiro e o balcão, a conversa rude solta-se, as vozes prenhas de álcool e ela, em antítese, muda em gesto preciso. Não ouve as frases somente os sons abocanhados de álcool e rudeza.  Olha o relógio, mais uma hora e tempo de fechar. O pano limpa os pingos de tinto. O cheiro uma vez mais sobe-lhe pelas entranhas revolvendo-a. Olha. Olha com aquele olhar redondo e vazio. Os dias caem estilhaçados nos meses que se esgotam. A sobrevivência, a vida, as filhas são o pêndulo que a acorda todas as manhãs Na tasca, a culpa da vida, bebe-se em goles de tinto
. .VI Hoje tal como ontem os gritos originaram mais uma querela. Tem sido assim ao longo dos anos. Manuel, o marido, é um ser difícil. Um individuo cujo humor é semelhante aos dias. Tem uns, em que se alaga, tem outros, em que se confrange. Entre uns e outros fica aquele período difícil no qual é quase impossível falar, pois que os gritos e o mau humor são uma constante. Não aceita que o contradigam sobretudo quando se fala sobre o meio rural e a sua dificuldade evolutiva social. A ancestralidade rural põe-no sempre em defesa. É como um caracol que ao toque se fecha na sua casca, assim é com a diferença que enquanto as antenas do caracol continuam macias, Manuel sem as ter, exibe-as virtuais, acutilantes, veementes e defensivas. Sempre que o seu mau feitio se interpõe à clareza do raciocínio, Manuel torna-se compulsivo em má educação. A ancestralidade aflora-lhe o espírito e dele faz capa de imediato. A bestialidade oral e gesto tornam-se a sua defesa. Desconheceu-o durante muitos anos. Tomou-o como uma pessoa de génio controlado com espasmos episódicos, a vida, no entanto, encarregou-se de o mostrar tal como é. Evita falar da sua infância e juventude, aliás esconde-a. Manuel foi uma criança de medos. A necessidade de afeto foi sempre marcante na sua vida. Gostava que gostassem dele, que o rodeassem, chegava a dar os brinquedos, os poucos que possuía, para ter meninos junto dele. Em casa, a mãe silenciosa no ramerrão da lide caseira jamais lhe   prestou a atenção que carecia, e nem tão pouco o carinho que necessitava. — Nelo vai tomar conta da tua irmã! Nelo, vai estudar, Nelo vai depressa à mercearia do sr. Edgar buscar um quilo de arroz, depressa, avia-te. Nelo vai… vai… vai. E o Nelo ia. Bem-mandado, ordenado, calado e submisso. A escola foi o seu martírio. Detestava-a. Na maioria das vezes não percebia do que se falava. Estava longe, muito longe. Depois as más notas saltavam ao ritmo das cinturadas do pai, quer pela omissão quer pela negação. Pela mentira que escolhia para se esconder. E a revolta nasceu por aquele tempo. Indistinta, casual, mas crescendo mais do que o seu corpo. Estava lá, adormecida porque não sabia ainda falar. Mas estava lá. Os anos passaram. A vida esgueirou-se por entre os tempos. Criou-se — Ó Nelo, então pá, onde estás a trabalhar? — Casaste? — Ah, ainda bem. — Eu? Oh estou bem. Tenho uma fábrica, a minha mulher é artista plástica tem um estúdio em casa e expõe. Filhos? Tenho um casal. Ele está nos Estados Unidos a tirar o doutoramento, ela em Londres, a trabalhar em investigação. É assim pá. E tu? De forma resumida Manuel dá-lhe os parâmetros de vida. Óscar, o colega, olha-o detalhadamente, incrédulo. Na sua mente perpassa a imagem do jovem pobremente vestido, cujo aspeto suscitava as origens sempre a fazer parte de todas as associações de estudante para ter acesso ao que os outros tinham por inerência familiar. Manuel detesta que conheçam os seus pontos fracos, e as suas misérias. Vestir a pele de alguém emprestado pela mente, tornou-se durante muitos anos o seu fato número um. O que dizer de uma pessoa, com um carácter fraco e inúmeros defeitos e que, todavia, é  boa pessoa. Uma contradição poderá pensar-se, no entanto, é esta a verdade. Manuel é emocionalmente instável, A sua instabilidade levou-o durante muitos anos a viver colado a figurinos. O dia-a-dia não se faz de figurinos nem de cópias. Respirar cada dia é aprender a fazer as escolhas, e na maioria das vezes elas, as escolhas, são puros atos de humildade e esquecimento. Nada tem a ver com imagens retocadas de vidas que não existem, que são apenas relatadas na terceira pessoa porque chegar à primeira é viver e elas, as personagens de figurino, são fictícias. Não vivem, desenham-se. Naturalmente que sempre foi e será mais fácil viver no faz de conta, no limbo entre a verdade e a mentira. Um espaço opaco, porém, suficiente para resistirem. Manuel por ingenuidade ou por falta de caráter acomodou-se na opacidade. Quem o visse nos seus quarenta anos, suporia tratar- -se de uma figura, já que o seu aspeto físico sempre foi muito agradável. A loquacidade, que em breves momentos se munia, pressupunha um indivíduo falador e bem-disposto. Nada disso. Em família, era distante quiçá agressivo logo que contrariado, fechando-se mais e mais em si. Um homem, duas pessoas, uma cara e várias solidões. Ao volante do carro, no desfilar da estrada, com o vento a soprar- -lhe no corpo, quente e suado, sente-se livre, sente que ali existe. O quotidiano da vida, os problemas que não soube resolver, a vida em si, pesa-lhe mais do que o seu próprio corpo e, quando só vê correr o tempo à sua frente numa estrada algures, sente-se feliz. Não tem capacidade de resolução, de firmeza, de decisão. — Se pudesse… se pudesse… eu… Se, talvez fosse a sua divisa. Se isto tivesse sido assim… se eu tivesse tido mais sorte, se, se, se… infindavelmente tem participado da sua vida justificando as situações criadas, muitas vezes por displicência, por ausência de lógica, ou e quase sempre por incapacidade de definição de prioridades. Depois as origens levam-no a ser condescendente com os menos privilegiados em contraponto com a intolerância para os favorecidos. Tem gerido o seu caminho entre compromissos mentais e necessidades anímicas, que na maioria das vezes prevaleceram, deixando ir as oportunidades pelo cano abaixo ou simplesmente perdendo-as de vista por inação. O tempo não tem horas sempre que resolve tomá-lo sem ponteiros. Amolece na própria indolência tornando-se irascível quando chamado a atenção. Outras alturas, em que o dinamismo é tremendo querendo fazer tudo, sem horas, de novo. Tem uma tremenda dificuldade em lidar com o tempo e mais ainda com os relógios que não usa. Ama a sua privacidade cuja partilha é um ato que desconhece. Não por mal, mas porque é a sua natureza. O seu íntimo é uma sedimentação de sensações, de ideais, de incapacidades, de vitórias, de atos vividos, por viver, de coisas boas e más. A serenidade dos dias tem que ser o seu caminho, caso contrário, perde rapidamente o prumo entrando em negação. Lidar com obstáculos, não é de forma alguma um ato, é antes de mais, uma violação. Quando estável é doce, mas em tudo retraído. Não existe muita espontaneidade nos seus atos. Refletem quase sempre o medo de não ser bem-recebido, a timidez da insegurança emocional e social. Mas Manuel é, sem sombra de dúvida, um homem interessante e envolvente. O sorriso fácil, o olhar direto e analítico, avaliativo da presa sempre que o género feminino está do outro lado, concedem- -lhe o elogio que gosta. A bizarria do seu carácter advém da dupla forma de estar na vida. Uma forma fechada, algo acre para casa, outra cativante para os de fora. Clara conhece-o bem, tão bem que na maioria das vezes até consegue saber o que lhe vai no espírito por um simples olhar, por um silêncio, por um trejeito. É um ser simples movido por impulsos  mais do que pela mente, o que lhe acarreta muitos dissabores no mundo atual. Embora passe por ponderado não o é, relativamente às suas opções. A liberdade em espiral de movimentos, de escolhas atrai-o de forma irresistível. Não sopesa as sequelas e estas, na maioria das vezes, tornam-se avassaladoras. O dia decorreu normal até ao suceder uma pequena pergunta sobre um gasto. O dinheiro, algo que põe Manuel fora de si, particularmente quando se lhe pergunta sobre esta ou aquela despesa. Manuel não gosta, aliás detesta prestar contas, mostrar contas. Tem sempre o pressuposto que se desconfia dele. Não se percebe de onde lhe advém semelhante conceção. Mas em mais de um quarto de século de casamento, Clara, nunca soube como o marido geria o seu dinheiro sobretudo nos tempos de abundância. A necessidade compulsiva de esconder as contas tem causado dissabores e muito afastamento. Manuel é incapaz de enfrentar a verdade. É incapaz. Esconde, mente e nega. Foi sempre assim, quando está em falta é patente a sua inaptidão em assumir-se, esconde-se, dribla-se a si próprio. Mais tarde, quando a verdade vem ao de cima, embora óbvia, a negação continua a ser uma defesa. Só depois é que assume, quando as evidências são tão contundentes, que já não existe espaço de fuga. O seu rosto, por esta altura, pinta-se de uma autocomiseração como se fosse a grande vítima, como se a vida lhe fosse madrasta. Clara tem a certeza, ou pelo menos assim o quer acreditar, para o bem de ambos, que Manuel é um indivíduo algo, como diria, algo inconsequente. Não mede os efeitos dos seus atos, não avalia os resultados dos seus disparates. Acredita que as coisas escondidas não vêm à tona. Vive numa dualidade entre enfrentar aquilo de que tem a plena consciência que fez mal e o dia-a-dia em que se passa pelo que não é. Hoje, como ontem, o mau humor rebentou e os gestos mais do que as palavras, pois que é bastante parco nelas, esmagam o ambiente. | A violência rebenta-lhe nos poros. Clara deixa-o, e a resmungar a meia-voz vai dizendo: que devia estar fora de si quando o conheceu ou então que ele a ludibriou com falinhas mansas. Senta-se no seu quarto e remói a vida, tantas vezes o fez, que chega à conclusão, de que já não há muito para remoer. A tarde vai caindo, a escuridão veste a casa. Depois, a inação toma conta de ambos. Um no quarto, outro cá fora no jardim. Por fim, Clara, e sempre Clara, levanta-se e procura-o. Tenta falar-lhe. De início o silêncio, o eterno silêncio. Não quer responder, não quer, não gosta. Assim em silêncio enfrentam o resto do dia. Não vale a pena. É igual a si mesmo. Amanhã o muro já terá brechas e a vida continuará. Naturalmente que poderá ser um dia feliz e alegre, como eventualmente poderá haver outra recaída. Os dias são assim. Manuel é assim. Foi há tanto tempo