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13 outubro, 2023

IV
 Lança a pasta para o banco do carro enquanto se senta ao volante. Agarra-o entre as mãos como se quisesse espremer as últimas horas do dia. Não sorri. O olhar é duro. As mãos apertam com força, com toda a sua força, o volante. A raiva estala, forte, jactante. Toma conta dela. Treme. Inclina o dorso para a frente num pequeno gesto de abandono. — Que dia! E haverá mais alguma coisa? Maria Ana abandona-se à raiva surda que rebenta dentro dela. Toma-lhe o corpo que se retrai na medida exata da força interior incontrolada, a mente lateja-lhe num pensamento único: Ódio. — Não, não vou cair, não, não vou… isso é que era bom! Devagar endireita-se, como se colocasse as peças no lugar exacto. A figura está composta. Olha-se no retrovisor, acha que os olhos a traem, que a boca está amarga. Exercita os músculos de sorriso. Depois habilmente pinta os lábios, dá cor às faces e retoca os olhos. As mãos descem pelo tronco alisando hipotéticas rugas. Sobem de novo, entremeando-se nos cabelos castanhos risonhos de cor. Suspira aliviada, mastiga as palavras e põe o carro a trabalhar. — Não vou quebrar, não vou, não! Um sorriso aflora-lhe os lábios, um misto de dor e de decisão Maria Ana é assim, não dá tempo para se sentir infeliz. Não permite que a vida a controle, ela é a controladora. Aquela sensação percorre-a pela segunda vez nos seus quarenta anos. Quando se separou aquele outro dia, em que decidiu separar-se de António, após várias humilhações que jamais pensara ser possível, ela que sempre fora preservada a quase tudo e tão desejada. Mas acontecera. Nessa altura como agora, não sentira que o desespero tomasse conta do seu ser, não, sentia raiva, uma raiva pronta a estilhaçar-se sobre alguém que tivesse a simples desgraça de se aproximar. Maria Ana não tolerava que a colocassem no degrau debaixo. Maria Ana era competitiva até ao osso. Estar na crista da onda, ser adulada e, sobretudo, ser imprescindível. Precisava de tomar as rédeas das coisas desde as mais comezinhas às pseudo-importantes, era assim que o seu ego se satisfazia, dando-lhe milímetros à sua estatura mediana. Estes quid pró quods faziam parte, não na capacidade de entreajuda, mas antes, na busca das luzes da ribalta. Necessitava da adulação. Maria Ana, Ana, para os amigos, acaba de ser dispensada do seu serviço. O termo eufemista para o desemprego. São quarenta anos, doze de trabalho. Não vai baixar os braços. Tem que pensar. Recomeçar parece-lhe desde já o óbvio. Recomeçar. Ontem como hoje. Já lá vão dez anos desde aquele dia em que decidira separar-se. Algo que precisava de ser feito, sobretudo por ela. O casamento fora a maior asneira que cometera nos seus vinte e pico anos. Fizera várias, porém não tão primárias quanto ter-se casado. Aquelas coisas que se fazem, quando se pretende ter uma vidinha semelhante à da mãe ou da avó, ou por aí adiante. Todavia, o tempo não é igual ao delas, nem o sentir. Os conceitos tinham mudado muito e, muito mais ainda, a capacidade de resiliência. Como suportar um homem que embora encantador, não passava de um parasita, e ainda por cima que a traía constantemente. O nome, a família e todo o respetivo devaneio de genealogia foram insuficientes para a prender. Nem o atrativo físico, nem a simpatia, nem a elegância, Tudo pontos positi|vos  IV memória as sensações que a tinham levado à decisão final. A saturação, a raiva do tempo perdido. Recorda. Ana era realista e despida de culpas. O motivo formal do divórcio fora o adultério, mas na verdade fora a saturação. Estava farta. Era jovem, bonita, com sucesso. Os homens sempre se tinham rendido. Era uma sedutora. Tudo simples e linear. A dificuldade vinha com a mãe. Não ia aceitar. A mãe não vivia na realidade, mas antes, naquele limbo onde os sonhos tomam o rosto da certeza, e esta por sua vez, despe-se e tornando-se um quase sonho. Ela adorava o genro, pelo seu encanto pessoal, pelo peso do nome e da sua condição social. Ana era forte, sempre o fora. Decidira e pronto. Agora experimentava a mesma sensação, o mesmo ímpeto que a levava por diante sem medo, sem qualquer recuo, com aquela certeza quase obscena, que iria obter o que queria. — Estou livre, livre. A minha vida profissional recomeça de novo. Amanhã é outro dia, e vai ser meu como os restantes. Põe o carro a trabalhar. Chega a casa, atira-se para os sofás dando um piparote nos sapatos que lhe calçam os pés e deita-se ao comprido. Maquinalmente prime o comando da televisão que imediatamente volta a desligar. Prefere estar em sossego, a escutar os seus pensamentos. Faz a restrospetiva da sua carreira profissional. Sente-se injustiçada. Dera tanto à empresa. A crise internacional, aliada à conjuntura nacional, fizera com que esta fosse desaguar para outras bandas. Sente de novo o amargo da injustiça. Julgara que jamais voltaria a experimentar aquele travo acre de novo, contudo a vida fintara-a uma vez mais. Urge traçar um rumo. Tem a noção exata que o nível de vida que estava habituada irá decrescer. Tem a ideia exata que Ernesto a irá apoiar em tudo o que decidir, pese o facto de a aconselhar com toda a sua ponderação, depois, mais tarde, será o companheiro físico que ela necessita, será a presença quotidiana que lhe preencherá o tempo dos dias. Tem a perfeita noção, que os cordéis da vida são e serão sempre manipulados por si. Aliás, gosta de o fazer. Aquele sentido de domínio, de gestão, de agenda, de compromisso a ser ou não, de uma palavra aqui, outra ali, um sorriso, um sim e um não. O domínio, sentir-se necessária, ser ouvida, aliás a necessidade em ser o holofotedas atenções, uma parte do seu património familiar.. Detestava papéis secundários, sempre fora assim. Podia começar de mansinho, mas a verdade, é que pé ante pé, se fazia pelos lugares principais, sobretudo aqueles de visibilidade. Fora uma jogada mal pensada que a atirara para o desemprego. Não contara com o imponderável, a pouco empatia do chefe e, sabendo-se, no entanto, uma boa profissional, jogara. Nestas coisas a empatia do chefe é muito oportuna e a falta dela, levara-a a ser colocada no rol dos dispensados. Na boca, as papilas trazem-lhe o travo amargo da ocasião, porém, no seu íntimo sabe que irá dar a volta, seja ela qual for, mas irá. Conhece-se. Sabe que o seu sorriso fácil, a loquacidade em que é fértil, o humor fluido e ainda a gargalhada cheia granjeiam-lhe pontos, a par, de muito esforço intelectual que procura disfarçar. Ana pertence àquele grupo de pessoas que, embora providas de capacidades, gosta de fazer crer que a facilidade na obtenção das suas vitórias é algo que lhe está predestinado pelo nascimento, e jamais o resultado de um grande trabalho, o seu, e uma maior estratégia. Ana é uma oportunista esforçada. Já em casa, esticada no sofá, espreguiça-se olhando em redor. O que a rodeia tem sido fruto do seu trabalho. O Pad já está entre as mãos e num ápice as ideias começam a tomar forma. Ter algo de seu. É isso, isso que se vai lançar. A área? Bom… tem que fazer prospeção de mercado, um mercado depauperado, é verdade, contudo, haverá algo que valha a pena, está quase certa, que conseguirá. Vai ser algo | simples, nada de complicado, sabe por natureza que na simplicidade é que reside sempre o segredo do sucesso empresarial. Nada de coisas estereotipadas. Algo de subtil, necessário e sobretudo muito comercial. São seis da manhã, tem que se levantar, arranjar e partir. O aeroporto tornou-se a sua sala de visitas. Aqui e ali, pelos quatro cantos do globo vai fazendo o seu negócio. A Investments and Purchasing Ltd tem-lhe devorado os dias na proporção direta do desafogo familiar. A sociedade de que faz parte conjuntamente com mais dois colaboradores é, de alguma forma, a sua mais recente e desvelada filha. Quere-lhe não só por ser, isso mesmo, uma criação, mas também, porque apesar do tempo conturbado de crise, tem, aliás têm conseguido capitalizar lucros viáveis, permitindo-lhe catapultar-se a negócios mais audazes. A firma, que começa a ser referida no meio, e neste pequeno recétaculo de credulidade, há que investir sempre, mais e melhor. Ela desdobra-se pelos cinco continentes na busca, na agenda de investimento, na compra de imóveis. Tornou-se uma saltimbanca de vendas e uma coletora de compras. Mais uma visita de observação de mercado. É esta a sua vida. Hoje aqui, amanhã ali, um corre, corre fisicamente poderoso, mas que lhe permite distender a ânsia que a possui, que lhe permite percorrer caminhos, conhecer gentes, experimentar emoções. Ser ela na sua verdadeira essência de mulher, na sua criatividade humana, no arquétipo profissional. Ana é assim, sempre foi assim. Nunca se prendeu pelo comezinho, pelo vulgar, pelo menor. Acha que a vida é o que dela se faz. Longe de grandes laços que a sufoquem. Tudo deve estar em plano não convergente, assim jamais haverá o perigo de coincidir algures e em tempo. Recomeçara a sua vida desde que em oitenta e cinco assinara o seu divórcio. A sua família passara a ser Afonso e Ernesto, o companheiro. Faz agora parte da sua vida, e sempre que regressa a casa, | 46 | MARIA TERESA NOBRE em breves hiatos de tempo, ele é o ombro amigo onde repousa a sua cabeça cansada. É diferente dos irmãos, muito diferente, especialmente das irmãs mais velhas, quase suas mães. É impetuosa, trinca com prazer cada tempo e saboreia-o, seja acre ou doce. Frue-o. Não compreende as irmãs mais velhas, tão mediazinhas nas suas vidinhas, com ar meio cansado, sem terem experimentado o pico da vida, no entanto, uma já na casa dos sessenta, a outra no cinquenta, assim sossegadas como se o mundo tivesse parado à porta das suas vidinhas, meio perfeitinhas. Maria Ana odeia tudo isso. Já era uma condescendência enorme, os almoços de família que pouco lhe dizem, não fora a companhia de Vasco, o irmão. Para muitos, o seu trabalho reveste-se de glamour, contudo possui de tudo, exceto, isso mesmo. Aprendeu a colher o melhor de cada situação como uma tábua de sobrevivência no mar, nem sempre calmo, das suas vivências profissionais. É um trabalho cansativo, manipulativo. A carreira fora o seu grande objetivo. Afinal ela, Maria Ana, não era uma mulherzinha de tachos, maridinho e filhos com uma profissãozinha regular. Não. Nada disso. A sua capacidade, o seu jogo de cintura, o seu sorriso e gargalhada fácil, a par de um empenho profundo no que fazia, e espírito analítico tinham-na elevado ao lugar que exercia. Maria Ana era uma mulher inteligente. Ela sabia-o tornando-a displicente junto daqueles que achava menos dotados, ou seja, aos que por uma razão ou outra classificava de “simplinhos”. Maria Ana tem ainda uma figura gentil. Hoje nos seus quarenta embora, embora o rosto se mantenha expressivo, os traços arredondaram-se em consonância com os anos adquiridos. Não possui a elegância física de uma mulher bem-feita, no entanto é apelativa. Talvez mais pela expressão e riso do que pelo feitio, talvez pela sedução física que sabe espargir no momento certo. Maria Ana é, sem dúvida alguma, uma vencedora. Sempre soube tirar partido de  si. Não tem complexos, sorri e ri da vida. É uma mulher em busca, quando as conceções ou emoções rebentam, agarra-as e usa-as, deleitando-se. Não há pruridos na sua mente. Giza o “Ter” e o “Haver” com a destreza do pai. Coisa simples, a vida. Quando deseja vai em busca, quando tem, sacia-se, depois apazigua-se. Então, tranquila, dirige-se para o trabalho que a consome até ao outro momento exato em que o corpo volta a arquejar. Orgástica no seu intelecto e no seu sentir, Maria Ana percorre o mundo com a mesmíssima decisão que um dia caminhara para o escritório de advogados e iniciara o seu processo de divórcio sem quaisquer pruridos de ordem emocional. Levanta-se, agarra no robe que veste. Já na casa de banho despe-se e enfia-se no chuveiro. Depois é a rotina matinal. Vestir-se, maquilhar- -se, tomar o pequeno-almoço. À noite quando aqui voltar, será para fazer a mala, tomar um bom banho, aperaltar-se e descobrir a cidade. Maria Ana, a mais nova dos quatro, sempre fora decidida. A sua afirmação fora-lhe permitida, quer por motivos de idade quer, de proteção. Mimada pela mãe e pelos irmãos, soubera, desde bem cedo, levar a sua avante. O pai condescendera com a sua mais recente obra de arte. Ser pai aos quase cinquenta anos, quarenta e oito mais corretamente, tornara-o vaidoso. Não só pela sua virilidade, como também pelo aumento da sua prole, algo que o orgulhava. Naturalmente que este rebento fora sempre motivo de muita condescendência, e até porque a garota era cativante e sossegada. Muito risonha e depois fizera com que ele, Henrique Gonçalves de Mascarenhas, desempenhasse pela primeira vez pequenos papéis de paternidade, coisa que com os outros sempre descartara, uma vez que Maria Salette estava lá para isso. Nesse tempo costumava dizer: — Ó Maria Salette, olha o miúdo, trata dele! Entre dentes verbalizava bem baixinho: “os miúdos não têm piada nenhuma só depois de mais crescidinhos!” Rapidamente levantava-se e saía ou sentava-se placidamente no seu sofá vermelho ouvindo um trecho de ópera ou mais prosaicamente a rádio Moscovo, proibida naqueles dias. Punha-se um copo de água em cima do aparelho para, segundo os peritos caseiros, interferir nas ondas hertzianas, assim chamadas naqueles dias. Mas a mais nova sempre fora muita senhora do seu nariz, quiçá algo rebelde. Desde que se lembra, nunca nenhum dos outros lhe batera o pé e respondera de queixo erguido e olhos nos olhos. Seria coisa de avô? Talvez. Ela cresceu com um rostinho macio e sereno servindo de capa a um caráter por demais voluntarioso. O rosto doce e a vontade permitiam-lhe que levasse sempre a sua avante. A mãe denominava-a a “menina dos seus olhos” talvez pelas parecenças físicas, talvez pelo tardio da maternidade, talvez por uma pseudo quietude na sua relação que foi isso mesmo, esporádica. Maria Ana cresceu e casou-se. O genro era um tipo engraçado. Nunca lhe caíra muito no goto. Porém, não se meteu, até porque a mulher adorou-o, mais que não fosse pelo beija-mão, pelos gestos cavalheirescos de filme mudo em trejeito de Valentino, bah estava a ser bera, o tipo até era elegante e cavalheiro. Mas não era o seu género e para cúmulo tinha mais dezasseis anos que a sua menina., ou seja, quando ela casou com vinte e seis, António tinha quarenta. Era bom de ver que a coisa não iria dar muito certo, mas ela quis, assim se fez. Do outro lado do mundo, Clara resmunga, como é seu hábito, sobre a pouca vergonha da política e dos políticos, de toda a desumanidade que parece ter assolado o país nestes últimos anos, já para não falar nestes últimos meses. Parece ter tudo enlouquecido. A situação económica parece ter partido, não sabe bem como, a espinha dorsal do povo. Há tristeza nas faces, há fome nas casas e sabe-se lá que mais. Clara resmunga, na mente, porque nas palavras, não vale a pena. As pessoas não gostam de ouvir a verdade nua e crua. Não gostam pelo gostar, mas antes pelo medo. Têm medo de proferir a verdade, pelo simples facto de poderem ser prejudicadas,  de não chegarem ao lugarzinho que desejam, por mais mesquinho que seja, mas será sempre um lugarzinho, têm medo porque podem ser conotadas com alguém crítico que os possa impedir de chegar ao tal lugarzinho, têm medo porque são amigos do amigo que tem um amigo que é importante e pode proporcionar o lugarzinho, têm medo porque a simpatia ou filiação política a isso os impede, de criticar, têm medo ainda, porque são fundamentalmente medrosos de viver. Suspira. O medo e a culpa. Pega na faca e começa a cortar a cebola. Coisa chata, isto de picar cebola, mas lá tem que ser feito. Não há guisado sem refogado, tal como não há resultados sem trabalho. São coisas básicas. A base tem que lá estar sempre, por mais voltas que se deem, por mais premissas que se procurem criar ou recriar, o silogismo final é inevitavelmente lógico. A vida é uma lógica, pena é, que as pessoas não pensem assim, e andem atoleimadas com atributos sem acessórios que as volvem tão frágeis de ilógicas. Lá estou eu a divagar, Santo Deus, que cabeça a minha! — Diz a meia voz Clara. — Bom, vamos lá ao que importa que ninguém está interessado nestes pensamentos, se os pudessem ouvir até me comiam viva. Oh, eu sei… Clara é assim mesmo. Poucos, muito poucos ou talvez ninguém a conheçam. Há alguém que quase a conhece. Quase. Sabe que é diferente. Sempre o soube desde que começou a dialogar consigo ainda bem pequenina. Os anos passaram E o jeito aumentou, um jeito calado, interior. Clara sempre gostou de conversar com o seu pensamento. Cedo, aprendeu que ninguém estava interessado nas suas palavras, e, muito habilmente voltou-se para dentro. Quem a conhece, e conhecem-na quase todos superficialmente, dizem que é uma mulher muito extrovertida. Tal como costuma afirmar: — “Falo muito, mas só aquilo que quero dizer, ou acho por bem dizer.” | O que lhe vai na alma, isso é seu. Não tem interlocutor. O seu trabalho é pensar e analisar. A sua profissão é ensinar. O refogado está pronto, junta-lhe a carne, depois o vinho, coloca a tampa no tacho, baixa o lume e deixa a cozinha. Maquinalmente olha o relógio de parede da cozinha. Tem tempo. Volta para a varanda e senta-se na cadeira. Olha em redor e retoma o fio das suas memórias. Agosto, quinze. Não se vai esquecer da data por muitos anos que viva. Quando aterrou na Portela, o dia pespontava forte de sol. Vira a Ponta de Sagres bem nítida da janela, depois a aridez de um Alentejo em dia de feriado, e finalmente o Tejo mais a ponte, que estava em construção quando saíra de Portugal. A manhã estava soberba. A viagem fora tremenda. Um avião superlotado. Uma paragem de horas no Gabão num aeroporto abrasivo. Meia-noite e quarenta e dois graus. O suor empapava o corpo, melava os cabelos e aturdia ainda mais a mente já de si anestesiada pelos acontecimentos em catadupa. Mas a manhã estava mesmo soberba, vista do interior do avião. Não havia medo. Somente cansaço e uma esperança expectante. Urgia esticar as pernas, receber o dia no corpo. Lavar as feridas do ontem ainda presente. Caminhar para este presente. Caminhar. Quando pôs o pé nas escadas sentiu uma brisa gelada, diferente do calor morno que estava habituada. Um arrepio percorreu- -lhe o corpo jovem. Os cabelos longos esvoaçaram pelos ombros, qual cortina, ajeitando a intimidade. Olhou em frente, sempre gostou de olhar em frente. Mas não viu nada. Nada. A paisagem era fria, como o arrepio que a possuía. Estava de regresso. Percecionou naquele momento exato, tristeza. Rápida sacudiu-se, descendo os degraus dobrada ao peso dos sacos. Nos dias que se seguiram andou um pouco aérea. Rever velhos lugares, ver a família. Sorrisos. Palavras e palavras formais em forma areada. Jeitos de abraços sem calor, sorrisos enviesados. O momento | A  não permitia grandes efusões e depois, depois o atavismo dos afetos vestido da eterna inveja nacional porventura trapos de vingança secular. O pai e a mãe conversavam entre si à noite, ela a mais velha, ficava sozinha no seu mundo. Tinha expectativas, mas ao mesmo tempo uma força que não sabia explicar, tolhia-lhe o peito. Sabia que o seu mundo se fora, que este que pisava já não era o da infância, muito menos do da adolescência e definitivamente o da juventude desaparecera. Jovem, mas nua de futuro. Foram dias tremendos. Dias de verão com o frio do inverno na alma e o calor do sol no corpo. E os dias seguintes vieram. Nas madrugadas arrefecidas de setembro, acordava. Deixava-se ficar deitada de lado com os olhos fechados como se estivesse a dormir. Mas não estava. Recordava os tempos do antes. Esmiuçava-os. As imagens eram, por essa altura, ainda fortes. Deleitava-se nelas. Apertava com mais força os olhos para não as deixar fugir. Viu-se pela primeira vez a crescer de menina a mulher sem tempo e sem espelho. Viu-se, sozinha, mas acompanhada, sofrida e todavia abraçada, ver-se enfim, no futuro áspero que seria o seu percurso. Os primeiros meses foram esquisitos. O apartamento europeu com móveis africanos. Esquisito. Algo estava dissonante. Lá era tão bonita a sua casa. Tão viva, tão alegre. Aqui parecia uma feira de tons. A sensibilidade europeia coaduna-se com os dias pardos. Os tons recolhem-se numa paleta suave. Lá tudo rebentava com o calor e o brilho do tempo. As cores eram fortes, a luz era quente. A vida coloria-se no exterior e nos interiores. O Outono chegou. O tempo da mudança veio com a queda das primeiras folhas. O pai começou a trabalhar devagarinho, a mãe dedicou-se à casa e aos filhos, a mais nova começou a crescer, o do meio a viver sozinho em casa e ela, a mais velha, partiu. Foi trabalhar e foi assim que comprou a sua independência. Anos depois, muitos, compreendeu então |porque não se conseguia entrosar no conceito da sua família. A sua diferença residia na sua maturidade dorida. Os anos submergem no túnel do tempo. As recordações pulsam. Clara pega no comando da televisão. Prime o botão, o canal abre-se. Outra imagem, outra mesa redonda, mais política. Volta a premir. E outra vez, mais outra, até que apaga o aparelho. Recosta-se no sofá. Semicerra os olhos. Está cansada de ver, ouvir, sentir. Mais um dia. A dolência das horas embala-a nas memórias. Velhas e frescas. O silêncio da casa envolve-a. As imagens passeiam-se entre os objetos quietos. Cada um olha-a quando passa. Têm tempos, tempos de ontem, de hoje, de agora. Lá fora a tarde rola na estrada do dia. O morno da tarde é igual à sonolência da vontade. Clara espreguiça-se mais no gesto do que na mente. Essa mantém-se obscuramente, presa ao molhe de imagens que a perseguem. Que vale viver cada dia num esguicho de sonambulismo físico quando a mente se revolta para lá da moldura? Os anos submergem no túnel do tempo. As recordações pulsam. Foi apenas ontem que teve a certeza que o marida a traia. Descobriu tudo. Ele confessou. Depois do choro, depois da dor, depois de recolher na alma a ferida aberta ainda achou força para perdoar, para o receber de volta. Sente-se perdida, muito. Sente que o seu mundo uma vez mais desabou tal como em 61, depois em 74 e agora mais de meio século, tudo se repete. Os círculos da vida. Ergue os punhos ao alto num gesto de raiva e dor. Raiva por ter perdido uma vez mais, e dor por sentir que a sua dádiva de amor fora malbaratada. Dar sem receber é doloroso. Perder, dando, é cruel. Viver no engano é vil. Clara não é mulher de derrotas. Pode perder fisicamente, pode envelhecer, mas na cave do seu ser, a sua vontade é intrépida e embora soe dor em cada poro, não vai entregar os pontos, vai lutar, vai lutar e vai vencer. Ela sabe que vai fazê-lo. O resto? Quem sabe?