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04 junho, 2022

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O Caracol de sapatos de camurça.

Sendo um animal solitário percorre os dias numa tarefa sincopada e objetiva. Recolhe-se na sua casca e com ela parte para os lugares onde pode encontrar alimento. O caracol porque é um molusco terrestre tem nas costas a sua concha, a qual carrega  diligentemente ao longo da vida, não fosse ela o seu esqueleto 

Pois bem, há quem ao longo da vida, de igual forma, carregue, não tão diligentemente, mas por contingência, não a sua casa, mas as suas malas. Caracóis denominados professores.

As malas são a sua casa, o caminho é feito de percursos vários, todos aqueles que lhe possam facultar o pão nosso de cada dia   e ainda apregoam aos quatro ventos que ensinar, é uma paixão. Bons caracóis sincopados ou antes, professores crédulos, apaixonados e traídos.

José é professor, tem trinta e seis anos. Possui aquele ar tão peculiar dos homens, um misto de independência dependente. Aparentemente sabe bem o seu caminho, porém transversa aqui e ali. Recompõe-se rapidamente e sem muita complicação, continua.

José casou-se há relativamente pouco tempo. Coisa de dois anos. Não tem filhos porque a situação instável ainda não o permite, Laura, a mulher, também não está para aí voltada, tem que palmilhar na profissão, tal como ele. Não é professora, trabalha num laboratório.

Em dois anos de idas e vindas numa distância razoável, a relação sorriu sempre, no limbo do encantamento mútuo. Este ano, porém ,José foi mandado para mais longe. Uma mala, um quartinho, duas refeições diárias, mais umas imposturices e um comboio semanal.

José não está infeliz, feliz também não, amoldurou-se. A mala, a sua casa, leva-o no comboio de volta e regresso. E isso quase lhe basta. A inquietação não faz parte do seu código genético. Filosoficamente a felicidade veste-lhe a filigrana da mente como o seu belo par de sapatos de camurça lhe calça elegantemente os pés que passeia nos seu calcorrear de professor e impõem-se na descida do degrau do comboio. Um cartão, não de visitas, mas de presença.

Hoje é sexta. Mais uma semana que se fecha entre o debitar de conteúdos, o exercício da compreensão, o esgotar da explicação, a aplicação da pedagogia, a síntese do conhecimento e a avaliação das capacidades. O trabalho semanal que nidifica o ensino. Entre o tempo gasto na construção do saber e a imagem, qual reflexo do seu desempenho humano, há lugar a um o espaço tão pequeno onde não cabe o perpassar da inquietação.. Mas afinal, não nos sentamos no decúbito do descanso após o ímpeto da conquista? assim não é de estranhar a complacência quase intermitente do professor.

José possui as imagens e não as inquietações. Revê, a companheira sorridente de olhar alvoraçado e anseia pela viagem de volta. O espaço perdido dos seus dias sacia-se na garganta húmida, no olhar terno , no sorriso fresco e nos braços quentes da sua Laura. Não existem peças caídas, quiçá perdidas de um tempo que foi ontem, somente as imagens, meras memórias. Um tempo esgotado e que crê continuado. Crédulo,

Ah, o tempo tem horas cheias e outras vazias. Tem os ângulos próprios da geometria de cada dia, José descuidou-se na classificação do ângulo da sua vida. Nada é imutável e os ângulos nascem, crescem e apagam-se na sua forma de acordo com as divisões que a circunferência da vida toma.

Longe, na distância da viagem de um comboio, Laura cansa-se da solidão. Recorda com algum enternecimento a biqueira dos sapatos. Sim, o estremeço que lhe dava até há bem pouco quando via aquela biqueira de camurça romper no vazio do degrau do comboio. Hoje, deseja que a biqueira, os sapatos e o dono fiquem longe, onde estão.

As reações nos seus tubos de ensaio são mais precisas, temporais e falíveis. Não existem hiatos. O hiato mata. O hiato não é companheiro do entusiasmo, porém quando o último soluça começa-se a morrer. Laura sabe que o estremecimento se calou.

Como sucedeu?

Não sabe quando a rotina da solidão a fez perder a noção de encantamento. Respirar sem viver foi coisa que lhe revolveu-as entranhas numa agonia de meses e, a facilidade como partiu para novos desafios, encontros e companhias, fá-la rodopiar numa espiral de contentamento. Foi sentir o estremeço do   riso e do alagamento que a cordou para este presente. Não espera pelo comboio e muito menos pelos sapatos de camurça que um dito José, antes mote da sua vida, hoje pretérito imperfeito dos seus dias, cheguem.

E ele?

Inexorável na sua paixão passiva de pedagogo viu a sua vida perder o lastro do estável, para ser mais um entre tantos mil, sem rumo afetivo. Um homem desvaria nos primeiros dias, mergulha nos subsequentes e vem à tona nos outros que chegam. Assim foi.

O ensino absorveu-o mais do que nunca, a solidão que de início o enrolou, no seu fato já gasto de tempo e hábito, essa solidão, que para o mais incauto é sinal de maturidade, despojo e até placidez, tornou-se a sua insegurança insatisfeita. José é um tipo como muitos outros, um inseguro escondido na sua casca de caracol, tornando-a o seu habitat, aí dormitando, nela congeminando e dela saindo para as contracenas que o palco lhe estende. Mais um outro personagem no teatro dos sentires.

E o José-caracol-professor vai deslizar lenta inexoravelmente por entre as escolas, essas as musas da sua paixão, ao mesmo tempo que os sapatos de camurça castanha ficam velhos e  a sua bela casca fica dura até, num dia qualquer ficar vazia…

Chaves, 3 de junho 2022

Maria Teresa Soares

 

25 maio, 2022

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 .As coisas dos dias …
 Há dias que são cinzentos. Há dias que são pesados. Não pelo tempo, mas pelas coisas. São as coisas que vêm, ficam e caem. E os dias afundam
 Há dias pesados. Aqueles que acordam com sol, crescem ventosos, entardecem cinzentos e adormecem húmidos. São os dias da vida.
 Há gentes como os dias. Nascem cinzentos, porém abrem os olhos ao sol, fechando-os de imediato porque a luz desventra-os, permanecendo na letargia das horas pela vida fora. Gente cinzenta, gente pesada, gente dos tempos. Depois os dias cinzentos de gente cinzenta, quais sonâmbulos giram na lentidão dos anos, com meios sorrisos aqui e ali num deslizar de tempo sem alma. Percorrem caminhos sem olhar em redor numa inércia metabólica orlada solavancos e quando chegam, se chegam ao sítio, olham num misto de cansaço e desdém e acomodam-se. Gente cinzenta … 
Há outra gente, leve e móvel que desliza nos dias claros, que sorri e sabe caminhar, que calcorreia os caminhos em passos seguros, em passos de busca
 A natureza das coisas porque é caprichosa tem por devaneio estender atritos que fazem a gente de luz tropeçar, cair, esfolar-se, levantar-se e continuar. Nada lhes é fácil. Nasceram em dias claros, os dias quentes da razão e do porvir. Gente de sorrisos.
 Há dias de chuva. Miúda e semítica. Gotas por ser. Há gente como os dias. Gente pequena do tamanho do nada com a altura do ser. Passam e perpassam entre as gotas semíticas. Alimentam-se delas. Hidratam-se. Húmidos e semíticos partem para a vida. Vivem na humidade do receber e secos no dar, aconchegando-se no bolor húmido de ter. São gotas.
 Há dias de vento soprado, forte, arrepanhado e zangado. Há ventos que quebram, há ventos que fustigam, que marcam que enrolam e varrem. Há dias assim. Assim há gente. 
Gente do vento. Gente impetuosa, agreste, forte. Gente que assobia, ulula e depois serena. Gente apressada qual porta sem tranca que bate de supetão para depois deslizar de mansinho e quedar-se. Gente em azáfama de horas para não se se perder na espiral do tempo. Gente em contraponto.
Há dias falsos. Aqueles que pespontam com luz e se cobrem de sombras numa máscara desbotada de Carnaval cansado. Há gente de máscaras. Tapam os rostos disfarçam-se de arlequins, palhaços, damas, cavaleiros e animais do mundo 
Há dias de tudo, dias num rodopio de faz-de-conta. Passa o tempo, passa o engano, passa o riso de época e a máscara cai. Ah, mas há sempre uma em cada tempo do ano! 
Há dias felizes, dias da terra, dias da gente. Dias em que é natural sonhar, rir e crescer. Há tempos de amanhã com horas de presente. Há gente de presente com alma de amanhã e há amanhã sem presente. A gente faz, a gente desfaz. Há dias de tudo. Dias de agora e dias que vão ser. Há gente que vai ser e de agora. 
Há coisas que são dos dias, há dias que são da gente. Gente dos dias e dias que faz gente. São tão simplesmente as coisas dos dias. 
Chaves 25-05-2022
Maria Teresa Soares


09 março, 2022

Às mulheres ucranianas

. Corre serena na rua vazia de gente e troada de projeteis. Suspira na esquina do fumo entre golfadas de alento. Semicerra os dentes na força do não querer partir e na razão do despedir. No braço leva um saco, nas costas a mochila vazia de tudo, mas cheia de necessidades. Na outra mão, a mão quente, entrelaça os dedos numa mão redonda da criança. É Natalya. É ucraniana. É mulher. Março, oito, 2022. Diz-se Dia Internacional da Mulher, diz-se dia de Direitos. Diz-se dia de Amor. Diz-se… São passos rápidos, fortes e fustigados que a conduzem. São ventos soprados de este que chegam embriagados em vómitos de fogo e raiva. São espasmos bélicos de louco. São labaredas que varram a pele e derretam a alma de um povo. Mas Natalya continua… Tem na mão o futuro, pequeno e macio, trôpego de força, lesto de Amor, cordão umbilical da família. Andriy… Natalya e Andriy sozinhos no gelo defecado de fogo sob um céu cinzento agoniado de dor, caminham… Longe, muito longe estão as mãos que aconchegam, que embalam, que perpassam na alma ferida e suturam, que olham nos olhos partidos de lágrimas e sorriem de esperança. Lá é o lugar. Há que chegar. Há que andar. Há que deixar o caos, a dor, o ódio, a ganância e a loucura. Natalya é mulher, possui a força da árvore, a leveza do ar e a força do caudal. Tem na alma a mater do mundo, e na vontade o sacrifício dos milénios. Caminha nos passos da fuga, caminha porque a vida de mulher é feita de caminhar. Hoje, é o dia, o dia de todas as Natalyas! Coragem! 8 de março 2022