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05 dezembro, 2021



O tempo....
Tenho ouvido, nestes últimos tempos, falar muito de tempo, de bolha de tempo, do que foi e já não volta, do tempo perdido, enfim do passado.
O passado é aquele muro a que subimos, onde nos sentamos e que depois descemos ora titubeando, ora graciosamente ou ainda de supetão. Assim, não se me afigura tão memorável, saudosa ou ainda percetível tantos suspiros de memória, pois que não sendo mais do que o caminho dos nossos dias torna-se o resultado dos nossos passos. Há quem se lave de memória e na memória, quem se vista dela e há aqueloutros que se adornam da mesma. Gostos.
Não acredito em bolhas. Só as de espuma cuja duração é de átimos de segundo. Não acredito no passado revivido ou por viver. Tudo tem o seu peso e a sua conta nesta vida. O que foi, foi, o que era, era, os tempos verbais atestam o concreto.
Bolhas de tempo? Metáfora ou sinestesia? Comparação ou sensação? Na verdade …
Agostinho rijo de tempo e vida nos seus setenta anos ainda abre as portas da sua loja. Lê-se nos vidros pintados em tons de outono” Tino Gourmet”. Quem entra depara-se com prateleiras onde se alinham meticulosamente boiões vestidos de cores quentes da vida que fazem crescer a saliva. E o cheiro? Ui, o cheiro é esfomeante. De um lado, cestas de vime velho repletas de frutas e do outro um balcão de ar sério onde espreita o pão.
O “Gourmet do Tino” é moderno na sua conceção e velho nos seus sabores e odores.
Agostinho Roxo, nascido e criado na velha Lisboa dos anos vinte, viu mais mudanças na sua vida que de peúgas mudou até agora. Senão vejamos: apanhou com o rescaldo da IGM, a gripe espanhola, a IIGM, a Guerra Fria, a Guerra colonial, e outras pelo mundo fora, o explodir dos interesses do médio oriente, as guerras civis, as crises monetárias, as financeiras, as mudanças concetuais da diferença fosse de etnia, género e outras, tanta, tanta coisa, que o pobre homem muitas das vezes é a olhar para a imutabilidade dos seus frascos que consegue apanhar o fio à meada aos dias. Contudo, nunca foi homem de bolhas de tempo, rompeu-as sempre e foi à luta.
Da velha mercearia de bairro, por sinal bem situada, transformou-a numa loja gourmet de acordo com os novos preceitos de mercado. Ouviu falar na Web Summit e pôs-se a caminho, apesar do preço do bilhete não ser para gente pobre. Mas lá foi. Ouviu, ouviu, percebeu pouco de início. Uma linguagem truncada, onde os mais jovens debitavam projetos à velocidade do trânsito lisboeta em sexta-feira à tarde. O pobre Agostinho saiu tonto. Foi para casa e meditou, pesou, telefonou ao filho, à neta e ao contabilista , concluindo que tinha que mudar o rumo do negócio, senão estava acabado.
Se bem o pensou, melhor o fez. Depois meteu mãos à obra.
Fez a sua candidatura pedindo o empréstimo a fundo perdido de acordo com os novos cânones, subordinando-se ao subtítulo em questão de dinamização empresarial. Um projeto cheio de papelada, para” Endogeneizar dinâmicas de inovação proativa em articulação com o mercado, geradora de novos produtos e serviços”.
O funcionário abriu os olhos da monotonia habitual e bom do Agostinho continuou o seu discurso: pretendia
reforçar a sua responsabilidade individual de empresário enquanto agente socialmente responsável pela criação de riqueza; tornando-se um empreendedor ativo e consciente do seu papel positivo na organização, desejava, por outro lado, fazer da "empresa" um espaço permanente de procura da criatividade e do valor transacionável nos mercados internacionais consolidando uma cultura de cooperação ativa entre empresas pequena se grandes, nacionais e hipoteticamente internacionais
O discurso estava bem decorado.
Pois entre papeis, arranques, demoras, desesperos e aceitação, chegou, enfim, o dia em que o empréstimo lhe foi concedido.
Imediatamente as obras na loja começaram. Arrastaram-se mais do que o previsto, mas também é quase bíblia no cantinho em vivemos. Daí somente um pequeno desespero.
Os meses voaram. Finalmente chegou o dia em que o “Gourmet do Tino” abriu portas.
De início os clientes espreitavam receosos, não da qualidade, mas da quantidade de euros. As bolsas da nossa casa são, invariavelmente, modestas. Perante uma clientela arredia, Agostinho começou a ver os seus dias enovoados, cinzentões , a pavimentarem o caminho de mais uma malfadada crise.
Na verdade, o que lhe importava era fazer negócio, fosse ele gourmet ou prosaico. A caixa registadora não tilintava como lhe fora impingido pelas jovens mentes, nemo negócio nada tinha a ver com os gráficos projetados.
Havia um vazio entre o prometido e o vivido. Algo não batia certo. Havia que mudar o estilo, sem mudar o rumo, pois que estava financeiramente atolado.
Não dormia o bom do nosso amigo. A enrascada era demasiado grande e a idade não lhe permitia grande descanso. Conversou com a sua Rita, companheira de muitos altos e baixos nos quase cinquenta anos que levavam juntos. A perceção feminina pura e simples, nua de conceitos e calçada de experiência sugeriu-lhe que mantivesse tudo por fora igual, mas que fizesse uma espécie de promoção semanal dos legumes mais antigos e das outras coisas mais baratas que não tinham tido muita saída ao longo da semana. Assim não só escoavam os bens perecíveis , seriam um chamariz e arrecadariam algum dinheirito.
-Sabes Tino, a gente do nosso bairro, os nossos, ainda não se importam se as coisas vieram ontem da horta ou não, o que eles querem é ter comida para encher a barriga, comer muitos legumes, alguma fruta tal como nos impingem agora, comer saudável como é modo e dizem fazer bem à saúde. Tudo isso desde que não seja caro. O caro, é que é o Diabo, por isso é que desconfiam e arredam.
É verdade, Rita. Mas não posso fazê-lo assim como antigamente. Tenho que lhe dar um ar, tudo tem que ter um Ar novo. É quase lei.
-Ó Agostinho. Há tantas caixas que vêm por aí, é só começar a forrá-las de folhas dando-lhe um ar de cabazes bonitos e saudáveis, com um preço apetecível e ao fim de , digamos , seis cabazes têm direito a um miminho, uma compota, um docinho qualquer e vais ver… claro que nunca te esqueças de ser simpático, muito simpático, ser quase feliz. O cliente espera isso de nós.
-És capaz de ter alguma razão. Não há como experimentar.
Passei no sábado por aquela loja de bairro de nome sonante e não era que estava cheia. Na porta, uma mãe dava a mão à filha e na outra carregava uma bela caixa de legumes que quase parecia uma floreira.
As bolhas do tempo também se abrem …
Chaves out.2021
Maria Teresa Soares
Manuela Lopes, Orinda Caetano e 16 outras pessoas
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