A Desrazão
Um, dois, três e os dedos dobram-se e desdobram-se numa
melopeia de ritmo. Um, dois, três. É assim que Sãozinha olha o tempo. Sentada
na sua velha cadeira, faz das mãos o terço da vida. O olhar perscruta a mancha
do fogo, os lábios balbuciam sons já perdidos que não chegam a aflorar e os
dedos, oh esses dançam, dançam perdidos no cinzento da desrazão.
Sãozinha para a sua dança de mãos. Balança o tronco e sorri.
Depois ergue o olhar tremulado e húmido e sorri. Um sorriso tão terno. Abana a
cabeça de doce cinzento e naquele instante o olhar vivifica-se. Voltou. Está
cá.
Olha em redor. Curiosamente. E olha de novo. Uma a uma, as
pessoas que giram em volta. Não se apresenta porque está apenas de passagem.
Silenciosamente olha e sorri. Há curiosidade recatada. Breve. Breve.
Despega-se. Sobe ao mundo das imagens. Aquele que a nutre
desde há uns anos. Não precisa de nada. Ele, o mundo dos rostos, dá-lhe tudo.
Está em paz. Quando desce há ruído, muito ruído, sons graves e agudos, gritos e
até choros. No seu mundo, casa, quarto ou espaço existe apenas o silêncio de
rostos que falam com os lábios fechados, e de olhos abertos. Falam-lhe do
antigamente, do tempo em que estavam todos juntos. Gosta mais e estar com eles
do que com os outros. Quase nunca percebe o que dizem, o que querem. São
barulhentos, muito, muito.
Encolhe-se de novo. Quanto mais se encolher menos a veem. Adquiriu
o jeito durante os dias. Pensa assim. O seu João vem vê-la muitas vezes, todos
os dias. E falam. Falam como nunca conversaram. Entendem-se melhor. Têm tempo,
e depois são os anos vivos lado a lado, que descansam finalmente. Sem palavras,
com olhares mudos, mas plenos de partilha. Há tanta gente que a visita, há
tantas coisas que se lembra, há tantas e tantas recordações a fervilhar. Não
tem tempo para estes ruídos, nem os percebe. Uma chatice. Não a deixam em paz,
têm a mania de lhe falar alto e ralhar. Como se fosse uma gaiata. A sua vida já
não tem a razão, porque é a desrazão o seu tempo. E no aconchego da cadeira
estende a mão ao seu João e deixa-se embalar ao ritmo os seus dedos.