Mulheres com Rosto
I
Maria
da Nazareth senta-se na velha poltrona. Silenciosamente move os olhos para a
janela. O olhar esbarra nas cortinas que volteiam docemente. Meia janela
aberta. Uma brisa, um sopro de vento inunda-lhe o rosto. A velha senhora
remexe-se, perscruta o exterior, encosta a cabeça na orelha na poltrona, fecha
os olhos e deixa-se transportar pelo tempo murmurando:
-Tanta
vida, tanto tempo, tanta dor.
…………………….
O
sumo da maçã escorre-lhe pelas comissuras enquanto trinca metodicamente.
Levanta a mão esquerda, e com as costas, limpa os lábios. Na direita, a maçã
vermelha presa entre o indicador e o polegar, brilha branca e suculenta. Tem
nove anos. Verdes e frescos como o vestidinho de nervuras que lhe cobre o
corpito roliço.
No
olhar verde-água há determinação. Uma centelha de fulgor. Rebola a cabeça na
direção da brisa. A cada trinca o sumo escorre pelo queixo. Boa maçã. Ácida e
carnuda. No peitilho de vestido, o verde das nervuras orvalha-se. Saliva e
sumo. Hábil revira a maçã, outra trincadela, uma mastigadela e um suspiro. Os caracóis
loiros dançam no movimento dos maxilares. Maria e a maçã. Atira o caroço pelos
ares. Depois espreita faceira, se alguém viu, ou melhor, se alguém levou com o
objecto, e não ouvindo resmungos entra em casa.
A penumbra cobre o corredor de paredes altas.
O soalho de tábuas já gastas mas bem polidas chia no cheiro de cera. Não se
ouve vivalma. Devem estar a dormir. São três da tarde. O dia é de calor.
Agosto. A casa grande descansa. Aborrecida salta de tábua em tábua num
pé-coxinho de menina. Um, dois, três e quatro. Um e dois, três e quatro. Assim
até á porta que dá para o salão. Estaca à entrada e franze o nariz num trejeito
muito seu. Aquele quadro mesmo em cima do cadeirão de palhinha irrita-a. Diz a
mãe que é de sua Alteza Real, o príncipe D. Luís, pois será mas tem cara de
emproado. Claro que não o diz em voz alta, aliás cá em casa não se diz nada em
voz alta, pelo menos as crianças. E ela é uma delas. Uma irmã, mais três
irmãos. Maria Nazareth, Zinha para todos, nem é a mais nova, nem a mais velha,
nem a do meio em cinco. É a terceira. Um lugar distraído numa família numerosa.
Entre três rapazes ela é a menina. Mas não possui o encanto das primas, e muito
menos a sua doçura. Zinha é diferente.
Habituara-se
a deslizar, a passar despercebida, a não falar muito e a acenar mais. É bom ser
a terceira em tudo. Não
tem que manter a compostura forçada de João, o mais velho, nem ter a ponderação
trabalhada de Caetano, nem muito menos esconder a estouvadice de José. Zinha, a
terceira é simplesmente o vento da casa. Vai e vem.
Gosta
daquelas tardes nuas de vozes e vestidas e silêncio. Sente-se crescer porque se
ouve. Os seus pensamentos disparam em todos os sentidos. O seu mundo gira por
entre os muros altos da quinta, os casais em redor, a quinta dos pavões, a vila
ao fundo da estrada no virar choupos, a praia para lá dos vinhedos de S. Gião e
as duas vezes que foi à capital.
Maria,
a terceira, pára um momento. Recorda a cidade grande. A mãe cheia de sorrisos,
de gestos, de braço dado com o pai e em franca tagarelice com a madrinha.
Estava feliz, a mãe e como era bela, muito. Demasiado. A mãe que ela adora mas
que a faz sentir sempre insignificante, e o pai que a confunde. Há nele o misto
de presença ausente. Sente que ele é um pedaço do seu vento. Sempre que pensa
nele, estremece. Não sabe porquê. É algo que a percorre como um arrepio. E no
entanto, ele afaga-a sorrindo, numa distracção feita de ternura perdida. Um
ritual feito de sopros. Gestos conluiados de afecto e pudor. O pai que os olha
aos quatro como se penitenciasse, mergulhando de imediato o olhar no lago
profundo da mãe. Por vezes pensa que eles não são dois, mas um. Sempre juntos,
sempre rindo entre eles, sempre partindo e chegando. Não sabe onde vão e porque
vão. Mas também não se importa, o seu mundo está do outro lado da porta. Quando
desce os degraus e pisa a terra abrindo os braços ou simplesmente baloiçando as
saias sob o bibe, sente a brisa vinda do mar e o calor dos campos.
II
A
porta do varandim que dá sobre o lado sul do jardim mantém-se fechada., os
cortinados porém estão ligeiramente afastados. No recanto, entre a penumbra da
parede e a luz da janela, senta-se uma mulher. Na escrivaninha pequenos papéis,
que ela, deliberadamente, vai debitando no livro de capa castanha. Figura
fremente de contornos graciosos, a mulher nos seus trinta e picos anos revela
-se num rosto de linhas macias e púberes. O olhar fixa-se algures entre as
páginas e o espaço mais além. Lentamente, passa os dedos esguios pelos cabelos
de avelã enrolados numa magnífica trança ao alto. Quem a vê de costas
hipnotiza-se pela linha altiva do pescoço, pelos ombros direitos porém
graciosos. O tronco reflecte-se. O pescoço inclina-se para o lado direito num
movimento que a mão estabelece ao escrever. Pára por momentos. Relê o que
escrevera. Suspira.
Sopra
suavemente, depois assenta o mata-borrão rosa. Levanta-o cuidadosamente. Na
página, a letra dançante aponta, inexorável, as despesas. Olha os algarismos,
mira-os com a dureza de quem lhe desventra o presente. Não é fácil governar a
sua casa. A sua mão de ferro estende-se pelo casario fora, todavia é impotente
perante os desvarios de Caetano.
Suspira
de novo.
Maria
P. fecha com força o livro de capa castanha. Abre uma gaveta e coloca-o no seu
interior. Estende o braço para o lado esquerdo, abre igualmente uma gavetinha
retirando um livro, desta vez almofadado, e de capa grená. Abre-o docemente.
Puxa um pouco a cadeira para trás e sorrindo relê as suas últimas anotações
A
sua ida a Lisboa. Ela e Caetano. Foram uns dias extraordinários. Sentem-se
felizes quando estão sós sem os filhos, sem as questões menores do dia-a-dia,
só os dois. Saltitando entre o teatro e as compras. O passeio na avenida, os
encontros, as novidades. Vive. Ah, como ela se sente reviver. Os velhos tempos.
A sua infância, a sua mocidade. Depois, depois… o amor, o desmoronar, o
reconstruir, o amor… é quase feliz, quase…a família que a apagou. Já se têm
cruzado. Não baixa os olhos. Nunca!
Os
filhos. Deve pensar neles. Tem tempo. São ainda crianças. João tem onze quase
doze. É voluntarioso, firme e duro. Não é fácil o seu primogénito. Depois
Caetano nos seus dez anos, um rapaz muito sensato, muito calmo. Caetano deveria
ser o mais velho. Maria da Nazaré vem a seguir, uma menina bonita mas muito
solitária. Vagueia pela quinta numa ânsia de liberdade que a assusta. Não
brinca como as outras meninas da sua idade. Lê, lê em excesso, mas Caetano
permite-lhe as extravagâncias. Zinha preocupa-a. E o seu benjamim, o seu
menino, José. O mais doce dos seus filhos. Tem só três anos mas é o seu
derriço. José é o mais amado de todos eles. Tem o porte aristocrático, o olhar
enorme dos olhos negros e o sol nos cabelos que lhe caem em cachos. É lindo o
seu filhinho. Caetano costuma dizer-lhe que José é o seu maior rival.
Conheceram-se.
Ela tinha dezasseis anos e ele vinte e três Durante sete anos amaram-se entre
os vinhedos com o Sisandro a dividi-los. Até que o escândalo rebentou. Maria
foi banida e Caetano aceitou-a. Tomou-a como sua legítima mulher. Afinal já o
era há tanto tempo. Mas sem norma. A norma vestiu-os finalmente, todavia a fome
que os devorava continuou. Há catorze anos que se amam. Loucos e vorazes.
Famintos um do outro. Aquela fome que nunca se sacia. Não percebe o que os
conduz, o que os envolve. Algo de inexoravelmente poderoso. Uma força, uma
ânsia. Alimentam-se por momentos e logo, logo tudo volta ao principio tal como
há catorze anos. Ela sabe, ele sabe, que só se completam quando mergulham um no
outro, quando se sentem e respiram num só. A sua vontade, a vontade dele
perdem-se algures entre o desejo e o êxtase. Os seus corpos são a matéria que
os une. Os seus corpos são as conchas onde bebem o líquido da vida. São
felizes. Tanto que magoa. Os outros, os outros que desconhecem o seu
deslumbramento., não percebem aquela cumplicidade, aquela dependência, aquela
unicidade. Acham-nos quase excêntricos. Ah! Ah! Ah! Ri Maria. A ignorância é
mãe de muitas palavras.
Por
vezes sente uma pequena aguilhoada estremecê-la. Os seus filhos. Os seus. Sabe
que para Caetano eles existem porque saíram dela. Caetano é o amante, não o
pai. Olha os filhos como ramos acidentais, consequência inevitável do amor que
os absorve. Todavia, ela sabe que a seu modo os acarinha, que se sente contente
por eles existirem mas não admite que os filhos interfiram na sua vida. Nas
suas vidas. Na dos dois e na dele, sobretudo. Todo o resto lhe é quase
indiferente. Passa pela vida aflorando os dias. Caetano é um sedutor. Seduz
pelo prazer da sedução, porém logo se cansa. Apenas ela não o aborrece, antes o
espicaça. Maria sabe-o e sorri. Sorri de prazer e de vitória. O seu poder de
mulher fá-la desabrochar em cada verão de S. Gião.
Já
em pé afasta a cortina rendada e observa os campos que se estendem à sua
frente. As cores magoam os sentidos. Nem vivalma.
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