"...És homem, não te esqueças! Só é tua a loucura onde, com lucidez, te reconheças." Miguel Torga
Páginas
19 dezembro, 2012
Será Natal?
05 dezembro, 2012
Para isso fomos feitos:
Para lembrar e ser lembrados
Para chorar e fazer chorar
Para enterrar os nossos mortos —
Por isso temos braços longos para os adeuses
Mãos para colher o que foi dado
Dedos para cavar a terra.
Assim será nossa vida:
Uma tarde sempre a esquecer
Uma estrela a se apagar na treva
Um caminho entre dois túmulos —
Por isso precisamos velar
Falar baixo, pisar leve, ver
A noite dormir em silêncio.
Não há muito o que dizer:
Uma canção sobre um berço
Um verso, talvez de amor
Uma prece por quem se vai —
Mas que essa hora não esqueça
E por ela os nossos corações
Se deixem, graves e simples.
Pois para isso fomos feitos:
Para a esperança no milagre
Para a participação da poesia
Para ver a face da morte —
De repente nunca mais esperaremos...
Hoje a noite é jovem; da morte, apenas
Nascemos, imensamente.
O poema acima foi foi extraído do livro "Antologia Poética", Editora do Autor - Rio de Janeiro, 1960, pág. 147.
. .
27 novembro, 2012
04 novembro, 2012
Ternura
Eu te peço perdão por te amar de repente
Embora o meu amor
seja uma velha canção nos teus ouvidos
Das horas que passei à sombra dos teus gestos
Bebendo em tua boca o perfume dos sorrisos
Das noites que vivi acalentando
Pela graça indizível
dos teus passos eternamente fugindo
Trago a doçura
dos que aceitam melancolicamente.
E posso te dizer
que o grande afeto que te deixo
Não traz o exaspero das lágrimas
nem a fascinação das promessas
Nem as misteriosas palavras
dos véus da alma...
É um sossego, uma unção,
um transbordamento de carícias
E só te pede que te repouses quieta,
muito quieta
E deixes que as mãos cálidas da noite
encontrem sem fatalidade
o olhar estático da aurora.
Vinícius de Moraes
19 outubro, 2012
. . Algumas Coisas
A morte e a vida morrem
e sob a sua eternidade fica
só a memória do esquecimento de tudo;
também o silêncio de aquele que fala se calará.
Quem fala de estas
coisas e de falar de elas
foge para o puro esquecimento
fora da cabeça e de si.
O que existe falta
sob a eternidade;
saber é esquecer, e
esta é a sabedoria e o esquecimento.
Manuel António Pina, in "Aquele que Quer Morrer"
27 setembro, 2012
Eu desconfiava:
todas as histórias em quadrinho são iguais.
Todos os filmes norte-americanos são iguais.
Todos os filmes de todos os países são iguais.
Todos os best-sellers são iguais
Todos os campeonatos nacionais e internacionais de futebol são
iguais.
Todos os partidos políticos
são iguais.
Todas as mulheres que andam na moda
são iguais.
Todos os sonetos, gazéis, virelais, sextinas e rondós são iguais
e todos, todos
os poemas em verso livre são enfadonhamente iguais.
Todas as guerras do mundo são iguais.
Todas as fomes são iguais.
Todos os amores, iguais iguais iguais.
Iguais todos os rompimentos.
A morte é igualíssima.
Todas as criações da natureza são iguais.
Todas as acções, cruéis, piedosas ou indiferentes, são iguais.
Contudo, o homem não é igual a nenhum outro homem, bicho ou
[coisa.
Ninguém é igual a ninguém.
Todo o ser humano é um estranho
ímpar.
Carlos Drummond de Andrade, in 'A Paixão Medida'. .
16 setembro, 2012
02 setembro, 2012
Da Realidade
Que renda fez a tarde no jardim,
Que há cedros que parecem de enxoval?
Como é difícil ver o natural
Quando a hora não quer!
Ah! não digas que não ao que os teus olhos
Colham nos dias de irrealidade.
Tudo então é verdade,
Toda a rama parece
Um tecido que tece
A eternidade.
Miguel Torga, in 'Nihil Sibi'..
20 agosto, 2012
Sobre saudades de um pai...
Sobre as saudades de um pai...
São cinco anos, quase... ou de quase cinco anos... são longos anos.
Não sabia bem o valor, aliás só se reconhece o sentir quando se torna um sentir só.
Cinco anos.
Tantos e tão pouco na minha vida. Tanto de querer sem ter e Pouco de ter sem muito querer.
O tempo não apaga, o tempo corrói, lenta e subtilmente. As lembranças de ontem são as imagens que a memória tem ainda. Desvanecem-se na neblina dos dias e fica-se só, dorido, enxague de amor.
Pai dói porque eu ainda vivo.
..
14 agosto, 2012
O Mar é longe, mas nós somos o vento
mas
O mar é longe, mas somos nós o vento;
e a lembrança que tira, até ser ele,
é doutro e mesmo, é ar da tua boca
onde o silêncio pasce e a noite aceita.
Donde estás, que névoa me perturba
mais que não ver os olhos da manhã
com que tu mesma a vês e te convém?
Cabelos, dedos, sal e a longa pele,
onde se escondem a tua vida os dá;
e é com mãos solenes, fugitivas,
que te recolho viva e me concedo
a hora em que as ondas se confundem
e nada é necessário ao pé do mar.
Pedro Tamen, in "Daniel na Cova dos Leões"
..
02 agosto, 2012
Fui ver a casa onde passei um dos anos cruciais da minha vida de menino. E nem as portas, nem as janelas, nem o panorama em frente me disseram nada. Tinha cá dentro, é certo, uma nebulosa sentimental de tudo aquilo. Mas o concreto, o real, o número de degraus da escada, a cara da senhoria, a significação terrena de tudo aquilo, desaparecera.
Miguel Torga, in "Diário (1940)"..
16 julho, 2012
06 julho, 2012
02 julho, 2012
14 junho, 2012
Depois de Amanhã (VI)
O comboio parou.
Olha por entre a janela e distingue somente dois vultos, que apressados sobem para as carruagens. Rapidamente a plataforma fica vazia. O escuro da noite tapa os contornos. Apenas os azulejos debitam umas figuras, vestidas de sombras escuras. A noite é escura. Não deveria, pois ainda é Outubro. O mês das penumbras, porém está mesmo escuro. Instintivamente encolhe-se. A noite sente-se fria e ventosa. A chuva miúda varre de quando em vez o ar. Uma daquelas noites em que o sofá mais a manta de quadrados vermelhos e pretos lhe fazem as delícias. Oh como já sente saudades do quente do seu cantinho mais de Manuel!E não chegou ainda.Chegar e partir parece que fora parte da sua vida.As coisas têm sempre uma dimensão diferente quando estão longe. Parecem mais doces, menos reais. A dificuldade entre o que os olhos vêem e as palavras sentem.A percepção e a sensibilidade. Dois sentidos que se completam sem nunca se encontrarem.-Engraçado -pensa Sofia - Porque será que estas duas andam sempre em paralelo quando afinal são gémeas…1962.A noite resvala por entre os copos e os pratos. Sentada na mesa ao lado da mãe e Luís, Sofia mal consegue manter os olhos abertos. Sente o corpo descer pela cadeira. Mesmo em frente, a mãe com aquele olhar, que sempre a faz sentir em falta.Bolas, é só sono. Depois aquele vestido azul com gola de renda, pica-a. Detesta-o. Os sapatos caem-lhe dos pés. E não gosta daquela comida. Tudo muito vermelho e esquisito.Que vontade tem de estar na caminha, no seu quartinho. Mas não, tem que estar ali. A mãe está feliz. Ri-se, ri-se até parece tonta. Só de vez em quando lhe lança aquele olhar que a faz tremer. A mãe olha em redor feliz. Tem brilho, o olhar. Está mais bonita ainda. A mãe é muito bonita. Tanto que a faz olhar. Tem uma cara com vida e um sorriso cheio. Um olhar doce para os outros e acusador para ela. Hoje a mãe está linda. Muito. Sofia sorri entre as pregas do sono. A Mãe e o Luís vão dançar. Ela fica-se a olhar. Deita a cabeça na borda da mesa. Entre os bracitos cruzados. O ninho do seu mundo. Ali fica, quase embalada pela música que crepita, e o sono que a invade enquanto o ano nasce.Amanhã quando acordar tudo será igual. É assim o tempo. Só muda quando a gente muda ,e ela é ainda uma criança…