(Autor desconhecido)
"...És homem, não te esqueças! Só é tua a loucura onde, com lucidez, te reconheças." Miguel Torga
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29 dezembro, 2007
27 dezembro, 2007
Sarah Brightman - Time to Say Goodbye feat. Andrea Bocelli
Feliz 2008!
20 dezembro, 2007
14 dezembro, 2007
Um Presente de Natal
Agachada em novelo triste de cor de inverno, Miquinhas, corta as couves verdes e viçosas. As mãos vermelhas de frio, gretadas de trabalho e quentes em afagos, deslizam pelo caule até se quedarem mesmo em baixo junto á terra gelada que veste as raízes. A tarde caiu já. O cinzento encolhido de luz envolve o ar, qual casaco puído que tapa mas não aconchega, a geada já se faz sentir nos ossos, nas faces e nos lábios, estremecendo as carnes no tiritar do movimento, para cima para baixo, no cortar das couves para a ceia. Foram estremecidas desde que plantadas lá pelos finais de Setembro, regadas, cuidadas, mondadas. Estão altivas, verdes e tronchudas, esperam pelo calor da panela que as tornará macias e ainda mais verdes, verdes não, mais brilhantes.
Miquinhas, levanta o rosto fresco de setenta e tal invernos, os cabelos cinzentos dançam no ar gélido do fim de tarde, um arabesco de anos e vida, os olhos negros, doces e líquidos olham ainda o amanhã com vigor, o corpo é robusto mas ágil, forte de seis maternidades, seco de trabalhos, lesto de gestos. As botas de borracha amortecem-lhe os passos, estufando-se na terra macia do rego das couves. A sua horta, a menina dos seus desvelos. Levanta o avental de riscado azul em viés, coloca as suas flores-couves no antebraço, e com a outra mão livre ajeita os cabelos que lhe enevoam a vista. Olha em redor, a terra já puxa o cobertor da noite. Em breve as estrelas darão a luz para os passos de quem procura o caminho Assobia o vento no gelar do ar, Miquinhas aperta mais o seu ramo de couves e segue em frente até à luz quente que bruxuleia da janela, laranja-amarela a dançar com chispas vermelhas que se desfazem no ar. É a sua lareira que crepita no ventre da cozinha, aquecendo-a. Não é a luz amarela parada do candeeiro, não, é o lume vivo, da lenha, que arde lá dentro. Estuga o passo, apetece-lhe o calor, que pressente, ao corpo gelado.
A alma dos que partiram senta-se à mesa do seu coração. Sente-os, hoje mais, ainda. A mesa que o serve transborda de saudade, de dor de ausência, de pena carpida mas escondida no sorriso de vida de cada dia. Há que aligeirar o sentir no crescer do tempo. Há que sorrir na dobra de cada ruga nascida, há que amar o resto do tempo esperado. Suspira, e uma lágrima redonda, translúcida de amor recordado, rola macia no rosto morno de mulher-saudade. Sem saber bem como, outra lágrima junta-se à primeira e depois outra e mais outra. Um chorar de recordar, um pranto manso de amor perdido no tempo. Logo hoje, o dia de todos os dias, o estremecer do seu sentir torna-a assim de frágil. Abana a cabeça de fios de prata, as lágrimas redondas de saudade e puras de sentir tornam-se pequenos sulcos brilhantes de luz. Miquinhas sente um arrepio percorrer-lhe o corpo. Coloca a capa sobre os ombros, entrelaça os dedos gastos em prece, gesto mais de oferenda do que de súplica e sorri para o alto, como se enviasse um beijo àqueles outros que também presidem à mesa do seu coração nesta ceia de amor sentido.
Ouve o buzinar dos carros, as portas que batem depois o tilintar do badalo, o anúncio da vida que vibra do outro lado. Ajeita um sorriso, esfrega os olhos, humedece os lábios, alonga os dedos pela prata da cabeça, cruza a capa sobre o peito e deita a mão à maçaneta da porta. Ali mesmo, a da cozinha.
-Mãe, Avó, Mãe….está boa! Há um ano…Dê-me outro beijo. Ai que quentinho!
-Entrem entrem. Filho! Isabel! Ah os meninos que grandes!
-Ó Vó, já tenho dez anos!
- A tua irmã, meu filho? Diz Miquinhas, dirigindo-se a João.
-Deve estar a chegar…olhe é ela…
-Amélia, minha filha! Já não te via, sei lá, até já perdi o conto. Tás tão magrinha. Vens sozinha, ainda?
-Oh Mãe! Tá boa? Sempre a mesma. Sim, estou sozinha. A mãe está na mesma.
Deitadas as saudações, os abraços, beijos e sorrisos, a família reúne-se à volta do lume. O frio enrola lá fora. A geada cai segura na noite estrelada. Cheira a doce de Amor-Natal. É uma massa de afectos da alma batidos no açúcar do coração. E eles são tão fofos por esta altura. Depois endurecem com o tempo, é o ar, o deixar rolar pelos pratos esquecidos do sem tempo do dia-a-dia. Mas nesta noite está tudo morno de ternura e fofo de alma. É noite de todas as noites, sempre o pensou e sentiu a Miquinhas. Já desde bem ganapinha que a Consoada era sentida de mágica e calor. O tempo correu, os invernos da vida arrefeceram, mas o calor da noite, deste dia, ficou sempre latente, tal como as brasas da lareira que são espevitadas para não apagarem. Estão já sentados à mesa vestida de linho alvo que esconde o carvalho grosso já roído dos tempos. As travessas deslizam por entre as mãos. O bacalhau senta-se nos pratos de braço dado com as batatas, as cebolinhas, as meias de ovos e as couves. Oh, as couves que brilham verdes, húmidas, apetitosas, quentes, escorridas e chamam pela vontade de cear. É noite de consoada, imemorável de tempo aquecido e semeado entre as vontades dos Homens na Terra e dos Anjos no Céu. Daqueles que partiram mas que sentam nos corações dos entes queridos por entre o calor e o mel vertido de uma breve noite de Boa Vontade. Somos assim, por isso somos tão humanos nos nossos dias de horas sentidas. Bruxuleia a chama do Amor na mesa de pratos cheios e faces felizes. Entre o bacalhau com couves macias, o arroz doce, aletria e filhós, o Amor vestiu o casaco e sentou-se à mesa bem quentinho e rosou as faces, deu brilho á luz dos olhos, doçura às palavras e sobretudo Boa Vontade.
Voa o tempo, nas asas da alegria, desta noite embalada pelo doce vinho rubro, doirado de lágrima espessa. Em breve chega a meia-noite, a hora mágica dos mais pequeninos e porque não, dos maiores também. Junto do presépio de musgo verde pontilhado de caruma e trevo, onde na sua cabana o menino Eterno olha o mundo que acorda para um novo Amanhã ora de Luz ora de Trevas, perfilam-se as prendas de laços voluptuosos e papéis garridos. João entrega a cada um o seu presente. Lembranças de mais uma noite. Miquinhas recebe o seu quinhão. Fica assim de queda e sem jeito
-Oh, tanta coisa!
- Ora Mãe é só um casaco que estava a precisar, mais umas pantufas para ter sempre os pés quentinhos.
- Obrigada, meus filhos, mas não precisava de nada. Estou tão feliz de estarem aqui. E leva a mão ao peito.
-Ó vó já viu?! Ganhei dois livros e um jogo, o que eu queria.
- Eu tenho as Princesas, olha, olha Vó, exclama a mais pequena.
Miquinhas levanta-se e caminha em direcção ao seu João e á sua Amélia, junta-os. Dá-lhes as mãos, depois solta-se ela. Dirige-se ao armário da cozinha. De lá tira uma travessa, branca, usada, mas perene. Cruza o espaço que os separa. Pára em frente, estende-lhes a travessa e diz-lhes:
- Meus filhos, o meu presente.
Ambos olham de forma interrogativa, mas ela diz-lhes simplesmente.
-É a minha travessa do Amor, está cheia, de Saudades do vosso Pai e da vossa irmã, de Doçuras da vida, de algumas Tristezas, de Solidão, de Desejos, de Boa Vontade, de muita Esperança, de Fé, de Sorrisos, de Sonhos, de Vida e de muito, muito Amor. É vossa. Guardem-na e passem-na aos vossos filhos. É tudo o que tenho. Desculpem.
Lá no alto, no azul estrelado, creio que uma estrela sorriu Feliz e entoou:
Noite Feliz!
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11 dezembro, 2007
Enya - Natal 2006 - Amarantine Special Christmas Edition
Poema de Natal
Vinicius de Moraes
Para isso fomos feitos:
Para lembrar e ser lembrados
Para chorar e fazer chorar
Para enterrar os nossos mortos —
Por isso temos braços longos para os adeuses
Mãos para colher o que foi dado
Dedos para cavar a terra.
Assim será nossa vida:
Uma tarde sempre a esquecer
Uma estrela a se apagar na treva
Um caminho entre dois túmulos —
Por isso precisamos velar
Falar baixo, pisar leve, ver
A noite dormir em silêncio.
Não há muito o que dizer:
Uma canção sobre um berço
Um verso, talvez de amor
Uma prece por quem se vai —
Mas que essa hora não esqueça
E por ela os nossos corações
Se deixem, graves e simples.
Pois para isso fomos feitos:
Para a esperança no milagre
Para a participação da poesia
Para ver a face da morte —
De repente nunca mais esperaremos...
Hoje a noite é jovem; da morte, apenasNascemos, imensamente.
10 dezembro, 2007
04 dezembro, 2007
1- Senhora de humores merencóricos a par de genialidades coléricas.
2-Pouco amante da piada fácil e devota do bom e subtil humor.
3- Impaciente com os subterfúgios tolos e descartáveis.
4-Crente que ainda um dia seremos mais Humanos
5- Dorida perante a cupidez e egoísmo grassante.
6-Amante incondicional do belo e da harmonia.
7- Egoísta q.b. no que respeita o seu Eu.
8- Ainda suficientemente crédula no seu Próximo.
9-Ordenada, e de cabeça arrumada.
10- Essência de uma vida.
01 dezembro, 2007
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Viúva rica, solteira não fica…
Dobrada, recolhida, arreada em meada de negro vestida, Sãozinha carpe a sua dor de viúva recente. O seu finado ainda há uma semana recolheu ao rectângulo de terra certa, ainda estão quentes as lembranças do homem, mais os trejeitos mastigados do marido, e as saudades já apertam no lembrar do cavalheiro obsequioso, gratificante e galante. O seu Orlando, entradote nos anos, mas de figura enxuta, palavreia fluente, presença marcante e carteira falante. Uma preciosidade!
Sãozinha Bastos, seu nome de menina, trabalhara muitos anos no seu aperfeiçoamento visual, físico e temperamental. A sua mente tão ocupada no seu aplainar de curvas, olhares, pestanejar e muitos mais ares, entrara em curto-circuito ainda em tenros anos, embotando-lhe os neurónios restantes. Porém nada visível, pois que o exterior por demais apelativo fazia esquecer quaisquer outros percalços.
Figura de encher o olho, a idade não vai para além dos trinta e picos, muito cuidados alinhados. Bem, talvez quase quarenta, mas tal pertence ao segredo dos deuses mais do cartão amarelo. A nossa viuvinha, enfiada numas calças justinhas que lhe delineiam todos os possíveis, mais um camisolão que faz sonhar pelo que está escondido, afunda-se no seu enorme leito redondo, lugar ainda à bem pouco, de brincadeiras loucas e excitantes. Agora sente-se murcha. Murcha mas não morta, o que sempre é bem diferente. Depois, o viço pode recuperar-se neste caso. Um pouco de chuva e tudo remoça, é a natureza, assim pensa Sãozinha Carpida. Afundada naquele desgosto, não dorido mas antes posto, a viuvinha começa a entediar-se da sua vidinha. Uma semana fechada na gaiola sem esvoaçar por outros beirais que não os seus, fazem-na piar qual cotovia abandonada. Levanta-se, vai até ao enorme espelho que preside ao quarto. Gosta do que vê. Não está mal, não, pensa com os seus botões, e depois sabe que o seu Orlando como zeloso que fora, deixara-a bem fadada de tostões e outros dobrões, pensa a nossa Sãozinha Forrada.
Senta-se de novo na borda da cama e mentalmente faz as contas. Ora o seu Orlando finou-se, vai para doze dias, abrindo a mão conta dedo a dedo, num esforço que a leva a enrugar a testa e a morder o lábio inferior. Bem já está. É isso, doze, será? É, é, responde-lhe a consciência. Mais uma semanita e, pensa ela, vai-se do buraco para fora. Está na altura de mudar de ares. Aqui não pode fazer grande coisa, pois que toda a gente a conhece. Meios pequenos são uma pasmaceira. A sua utilidade advém de se conhecer as pessoas e haver mesuras quando se pressente os bolsos forrados ou então se a gente vem daquelas famílias de nome comprido mas tesas que nem um carapau seco. O seu dinheirinho, bem morninho, espera-a, não que ela tenha falta de imaginação, não, nada disso, é apenas uma questão de ocasião.
Ao vigésimo dia Sãozinha Viajante, tira Mercedes preto da garagem, pensa mentalmente em trocá-lo por um descapotável, carrega-o de malas, maletas, necéssaires e toda ataviada que não de preto, lança-se à estrada. Como desculpa, uma mudança de ares e visitar o santuário de Lourdes como prometera ao seu Orlando. E palavra dada a moribundo é para se cumprir. Estão dadas as explicações, Clara a fiel e devota empregada, fará o favor de espalhar a notícia. Ela conhece o meio, se conhece.
Já longe da terrinha que lhe serviu de tecto, Sãozinha para o carro, suspira, solta uma gargalhada, esfrega as mãos, pega no estojo de maquilhagem, retoca-se e, entre dentes cantarola. Está livre, rica, apetecível, sensível e sobretudo disponível. Também ela é um achado! Mas, alto lá, vai escolher mas bem escolhido, porque dinheirinho tem ela, precisa agora de um rapazão bem folgazão e bonacheirão com muita submissão e nenhuma capitulação. Encontrá-lo vai ser obra, no entanto, tem tempo. É assim a Sãozinha Caçadora.
Já de arma em riste, isto é, de corpo dobrável, sorriso flexível e olhar maleável, Sãozinha Caçadora bate os lugares na busca da presa desejada e suspirada. Eis senão quando, ao cruzar da esquina depara com o espécime sonhado. Um macho alto, de músculos apurados, tisnado de sol, cabelos negros puxados para trás como se fora estrela de Hollywood. Não pensa mais, porque não está na sua natureza. E simplesmente vai de encontro à estátua em movimento. Zás, catrapus. A mala de mão cai obedientemente no chão e o seu recheio solta-se alegremente. Pobre alma! Que desolada fica a nossa Sãozinha. Um rubor, um ah, um ai, um ui, soltam-se ritmicamente da sua boca de lábios bem humedecidos. Submisso, estonteado, o jeitosão baixa-se murmurando um perdão e apanha as traquitanas espalhadas.
Daí ao jantar, a dois, foi coisa de estalar de dedos. Seguiu-se um passeio, rapidamente uma noitada, e ao fim de três dias, pasme-se, estavam noivos. Um tiro certeiro de caçadora experiente!
Ora, esta coisa de noivar em quartos separados, é assunto do passado, e a nossa noivinha é pessoa moderna e gulosa, logo a um invólucro daqueles há que rapidamente tirar o laço, mais a fita-cola e ver bem, experimentar a peça, para se ter a certeza que está conforme e fica bem. E assim foi, assim se provou e serviu, e oh Deus meu, como serviu!
Sãozinha Noivinha ficou de tal modo deslumbrada, que aparvalhada nem deu que estava a ser burlada pelo Gastão, o tal jeitosão. O magano, que de parvo nada tinha, pelo contrário o interior em tudo fazia jus ao exterior, pensou rapidamente: estava ali o seu futuro, sem muito trabalho. E se pensou, melhor o fez. Carinhoso, atencioso, falacioso cercou a pequena a jeito, e com a mesma rapidez enfiou-lhe o anel redondo no dedo direito. Tudo isto, um mês depois do pobre Orlando ter recolhido o espírito, e subido ou descido ao tal Sítio conforme o Suplício.
De fresco casada Sãozinha Esposa esforça-se por satisfazer os caprichos do seu torrãozinho. Um derriço de homem que a sabe fazer feliz, satisfeita e saciada. Não precisa de inventar artes nem de ter cama redonda. O seu Gastão machão é um portento. Ela que o diga. Até já anda a ficar um pouco cansada, mas será talvez devido ao desuso dos últimos tempos. E depois o seu Gastão é um homem culto, ele até tem um curso de gestão, a herança nas suas mãos vai governar. Está encantada, deleitada, sente-se apetecida e estremecida. Uma sonhadora é Sãozinha!
Gastão já não usa gel no cabelo, nem calças de ganga, nada de coisas sem manga. Tudo do bom e do melhor. Elegante, casual e factual. Um homem de fazer o olho estremecer e, o coração derreter. O dinheirinho rebola que rola, que foge nas mãos de Gastão bonitão. Um garanhão de luxo, forte, desenvolto e solto. Diz ser perito em gestão e logo de supetão a fortuna tem na mão. É esperto, o bonitão sabe levar a água ao seu moinho e que bem que ele mói e leveda os sonhos, tão bem que Sãozinha Estonteada nada vê, nada percebe, que o figurão do seu Gastão lhe está comendo as papas, não na cabeça, mas no dinheirão. Pobre Sãozinha-Viuvinha-Carpida-Forrada-Viajante-Caçadora-Noivinha, o que esta alminha passou até chegar a Sãozinha-Casada-Enganada! Que trabalho, congeminações, traições e perdões teve que suportar, elaborar, granjear. Uma vida de verbo, mais de substantivo, de frase rimada, e ideia rodada em estribilho sopesado. Rodam os tempos, rodam as vidas. Gastão, figurão, conduz o seu Mercedes. Sãozinha, coitadinha, meia tontinha arrasta o cesto das compras…viúva rica, solteira não fica, mas a vida sacrifica…
E ainda dizem que há pessoas com sorte!