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Alguém que ama a vida e odeia as injustiças

10 fevereiro, 2018

Os Sem-Abrigo

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Os Sem-Abrigo.
Nos dias de frio são mais lembrados. O frio tem a particularidade de degelar os corações e aquecer as mentes, então, os sem-abrigos vêm à lembrança. Há preocupação maior ou única, há uma pena roída no sentir, há, sobretudo, o acompanhamento que não existe nos outros dias do ano. Não sendo cínica, mas pressente-se que a estatística se aprimora nos dias frios!
Os sem-abrigo são homens e são mulheres, são, em suma seres e humanos também.
A Ludovina, velha gasta, trôpega de articulações, rosto de sulcos duros e fundos, cabelo quase emaranhado de mal cortado. Uma ponta que pesponta debaixo do barrete de lãs vivas. Um olhar vigilante de pupilas baças, qual cotovia em presságio das horas, mãos dentro de umas semi-luvas de dedos ao léu, saia rodada de cores baças e nos pés aquelas botas forradas de pelo, onde umas meias grossas, roçadas, de negro espreitam nas pernas finas, tortas, quase, quase trôpegas da vida. A Vina é sem-abrigo, seguiu o estribilho da queda. Dorme no cartão, tem por lençóis as noticias dos jornais que lhe segredam as coisas do mundo. Come na lata do atum ou no púcaro que encontrou. Corre o bairro nas horas do dia e ninguém lhe põe os olhos em cima. Desaparece. Regressa em cada noite, deita-se no vão da escada, acomoda a trouxa que a acompanha, e espera pela manhã de cada dia. Tem frio, tem fome, tem sede e tem tudo, sem nada ter. Um sem-abrigo, é mesmo assim. Falar do passado para quê, recordar a vida, não tem jeito. O passado não lhe dá o presente. O seu presente é conta-gotas da vida. Vive no limbo. Foi atirada para ali. Se tem sonhos, anseios? Desejos? Uns sim, outros não. Desejo de comer e tomar banho sim; anseios de vida melhor, não; sonhos, muito menos. Há que perceber que o sem-abrigo está na última linhado Ser sem Já Estar.
O Victor também é um sem-abrigo. Não é tão velho quanto a Vina, mas está mais acabado. O álcool descarnou-o no corpo e na mente. Ele conhece bem o inferno, o caminho do purgatório, o regresso ao inferno. Ontem, hoje, ontem, tempo sem amanhã. Lutou, caiu, lutou, caiu, lutou e desmotivou. Saiu. Fartou-se de prometer o que não conseguia, fartou-se de querer, sem querer, fartou-se de se empanturrar, de variar, de estar doente, de se vomitar, de sentir a bílis amarga, fartou-se do travo amargo da sua boca, da sua mente, da sua alma. Fartou-se do descrédito dos próximos, do olhar de nojo e compaixão. Fartou-se das súplicas e das lágrimas. Deixou a bebida, mas também deixou tudo. Inexplicavelmente há muitos anos que é um homem sóbrio. Sóbrio de álcool, mas bêbado de miséria. Ah, Victor sabe que nada tem, que nada quer, que nada o espera. Todos os anos risca o um ano naquele calendário tão especial que lhe enche o bolso do casaco velho e tosco que lhe tapa o esqueleto. Os zigomas fortes e salientes são o traço, mais forte do seu rosto. Uns olhos negros, que perscrutam o interlocutor, sem dó nem piedade, uma boca de dentes esconsos, uma voz rouca por onde irrompe um discurso articulado e fluente. Victor teve posição na sua outra vida. Nota-se no gesto, na postura, em pequenos detalhes que fazem a diferença. Porém dorme também nas caixas de cartão. Não se cobre de noticias, mas de cobertores puídos, que depois de enrolados são o maior calor da noite fria. Victor vagueia nos dias da grande cidade como tantos comparsas seus. Um sem-abrigo de passado liquido pontilhado de saberes de outas vidas.
O Manel é o mais velho de todos. É velho nos anos e no tempo de sem-abrigo. Não teve percalços de dinheiro, nem de álcool, nem de outras drogas. Manel foi amputado de afetos. A morte da mulher deixou-o sozinho. Foi escorraçado pelo filho. A rua foi o único lugar que fez sentido. Ali foi parando, ali foi deambulando, ali foi sedimentando a sua invalidez de afectos. Até que ficou. Ficou entre os outros, apesar de estar sozinho. Mas, quando temos outros iguais a nós, quase ao nosso lado, sentimo-nos acompanhados. A diferença afasta, a semelhança abraça. O Manel é velho porque nada tem. Nem nada quer. É o mais solitário dos três. A solidão de não pertencer a ninguém nem a nada, é tremenda. É um casulo roto de ambos os lados, entra-se e cai-se. Não vagueia pela cidade. Não desaparece. Senta-se todos os dias ao sol no banco do jardim. Trás no bolso o pão que mastiga devagar, bebe a água do chafariz do jardim. Recebe no corpo o calor que lhe roubaram à alma. E as lágrimas caem. Não pelo rosto, mas pela garganta macerada de sofrimento. Há quem chore para fora, outros fazem-no para dentro, com dor de quem nada tem, nem a ninguém pertence. À noite enrola-se no seu saco-cama que alguém lhe deu, e dorme sob o dossel das caixas de cartão que lhe dão a ilusão da sua cama de outrora.
São assim os dias frios, quentes, mornos e amargos dos sem-abrigo. São estes os dias que o tempo e a vida teimam em criar. São os dias dos desafectos, da cupidez e vícios que criamos por sermos tão orgulhosamente ignorantes dos que ao nosso lado respiram.
Maria Teresa Soares

04 fevereiro, 2018

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A arte da corrupção
Há quem seja artista e ame as artes na verdade dos seus actos trabalhados: O acrobata, o mimo ou o mágico, entre tantos outros. São artistas que dão o seu melhor, que suam os dias na busca de um lugar ao sol ou simplesmente na esperança da vã glória. Mas, são os verdadeiros, pobres e perseguidores dos seus sonhos.
Há quem seja comum e lute também por cada dia do seu tempo. A luta destes, a dos homens sem proscénio, a quem foi apenas dado o caminho torcido que dá pelo nome de Vida, porque são despidos de arte, mas, não de coração. Os homens da vida de todos os dias. Eu, tu, ele, nós, os que vamos escavando o amanhã.
Nem só de trabalho vive o homem, assim existem os dias de divertimento, aqueles onde todos, ou quase todos podem subir ao carrossel, andar no carrinho de choques ou  na roda gigante. São os dias de feira. As feiras da vida.
Nas feiras existe gente, gente comum, a gente dos dias, da vida bem como a  dos artistas verdadeiros. Existem, também, aqueloutros que invariavelmente sobem dos seus palcos ardilosos para o carrossel do divertimento que os recolhe em cada paragem. Assim misturados ninguém os distingue. As voltas sucedem-se ao ritmo do entretenimento, ao ritmo da vida, do feérico. O esgar de sorriso, nas suas máscaras compostas de bonomia, é evidente. Creem-se impunes e imunes. A vitoria torna-se a amante lasciva, que tudo exige na volúpia de uma posse material.
Actuam esconsos entre penumbras, ridicularizam-se nos carrosséis dos dias, na prodigalidade dos títulos e na conspicuidade dos lugares. Calam-se estes artistas, porque o enredo é de apenas umas linhas que não possuem lexemas. São não frases. São somente tilintares mudos de papel, que se escondem, distribuem aqui e ali na mudez de consciências.
O mundo muda. O homem muda, a arte muda.
Serão estes,os homens de uma arte nova?
Maria Teresa Soares

16 dezembro, 2017


. .Dias de Dezembro. Dias de quase Boa Vontade
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O ar o branco do dia pintalgava-se de cinzento do frio. O céu estava carregado. Não de chuva, mas de vento e tempestade. Um frémito de tristeza percorria -o. Não se via pássaro, nem tão pouco, se ouvia qualquer pipilar. Só o vento vergastava, aqui e ali na dança corrida dos dias tristes. Era dia de Dezembro, daqueles que vêm antes dos vinte e cinco, plenos de intenção, brilhantes de vontade e recheados de doce de coração quente. Dezembro de antes do Natal. Dezembro dos dias tristes e das luzes brilhantes para o enganarem. Dezembro dos que viajam no trenó dos desejos. Era Dezembro de vento e luz. Dezembro do Menino a nascer e do Pai Natal de vermelho. Era Dezembro intermitente de soluços e sorrisos, de lágrimas caídas, apagadas e de impulsos breves, de vontades fáceis. Era o dia frio, antes do dia quente por ser; era o dia triste antes da luz o alumiar. Era o dia das filhós, das rabanadas, dos cânticos salteados no conforto da sala.
Em pé junto à lareira, de olhar preso na chama intensa e quente, o homem cruza maquinalmente os dedos da mão direita.; aliás não é um cruzar, mas antes um sobrepor. Sobrepõe o indicador ao médio, e o médio ao indicador, numa dança hirta de graça. Está ali em pé como poderia estar num outro sítio. Está só. Ouve, ao longe, o barulho da gente, um quase matraquear de sons, que quer indistintos para não os compreender. O homem continua a cruzar os dedos na sua dança de memórias. Cruza e descruza. Voltas e reviravoltas da vida. Dias de hoje e dias de ontem. Vozes aqui, e vozes ali. As que estão, as que foram. Dezembro dos dias. Dezembro das memórias.
O homem cruza nos dedos a sua solidão. Descruza as vidas perdidas. Cruza a dor e descruza o vazio. Cruza o olhar no fogo. Quente e ladrão. Ladrão dos seus dias, da sua vida.
Lá fora, além as vozes continuam. Não as suas vozes. As outras. As que restaram. É Dezembro dos Dias, Dezembro das Horas, Dezembro das Memórias. Dezembro do Renascer, Dezembro do quase Natal. Dezembro cinzento de mágoa e quente, de talvez, ilusão.
Murmura:
_Meu amor estou contigo.

Maria Teresa Soares

17 outubro, 2017

. .Estória do meu país.
A s personagens:
  António vive na vila, é um cidadão comum, tão comum que ao domingo se levanta mais tarde, toma o pequeno almoço no cafezinho da vila, depois vai à missa ouvir a palavra do Senhor regressa a casa almoça um repasto melh
orado, e, depois de uma breve soneca vai dar um passeiozinho com a família, ou então, visita a família espalhada pelas redondezas. Regressa ao anoitecer, vê as noticias, boceja e beatífico vai para a cama. A semana seguinte é de trabalho. Há que repousar.
 Rita é citadina. Não de uma grande cidade, daquela que nós chamamos de província já com boas condições que permitem uma boa qualidade de vida e sobretudo tranquilidade de espirito. Rita também se levanta mais tarde. A semana foi pesada. O inicio do ano escolar é sempre complicado. Há que ajustar mil e uma coisas. A roda dentada dos dias tem que ser oleada. Ser mãe e pai é algo acontecido, não deliberado, mas beatificamente aceite. É a vida.
Hoje vai com os garotos à aldeia. Prometeu aos pais lá ir almoçar.  Fica só a trinta quilómetros entre ir e vir. Tem que se despachar. A preguiça toma o tempo.
Miguel é mecânico de carros. Vive naquele oásis entre a aldeia e a vila. Nas horas vagas é bombeiro. Este fim de semana deixou a mulher e os pequenos e foi apagar o fogo. Tem sido um verão sem parar. Graças a Deus que tem tido alguém a olhar por ele. Já viu coisas que um homem não deve ver, nem saber. Mas é a vida!
Maria é política, tem um lugar de destaque no governo. Levantou-se cedo, aliás foi acordada pelo ruído do telefone.  Arranjou-se e correu para o ministério. Entredentes maldisse a sua vida, ou antes, a ausência dela. O poder estava a começar a cansá-la. Não o poder, sejamos claros, as emergências que o poder exigia.  Uma vez mais os malditos fogos. Não podia fazer muito. Toda a pirâmide estava minada havia décadas. Sem dinheiro, pouco ou nada se podia fazer. Depois havia interesses, coisas que não se podiam mexer. A teia ia muito para além de qualquer reforma da floresta, da prevenção aos incêndios, de mudanças na proteção civil. Em resumo há lobbies em que é quase impossível mexer, e o dos bombeiros também era um. Dizer isto ao cidadão comum era fazer uma enorme clivagem política, de interesses e até de sentimentos. Só podia dar a cara, gerir o pouco que havia para gerir. Evitar o grande caos, se possível. A política não vê, não ouve, não sente. A política apenas se esculpe. E, assim pensando, abriu a porta do gabinete.
Nuno é jornalista. Está na redação desde bem cedo. O instinto leva-o a estar ativo. Pressente, que o dia vai ser longo. Há que dar a noticia, há que não deixar escapar o todo. Estar ali e aqui, estar no acontecimento, estar em direto, estar sempre no local. O público vive das palavras, das imagens, do despoletar dos sentimentos, da dor do outro. Há que mostrar, quase infernizar as consciências. Não criticar somente cobrir o acontecimento. O papel principal de um jornalista em direto.
Os acontecimentos.
Não se quer saber como, mas sabe-se porquê do dos acontecimentos. Alguém ou muitos alguéns resolveram fazer queimadas ou por ignorância, ou por maldade, ou por ganância, ou por tudo aquilo que o povo sabe e não quer pensar.
Da cintura para cima do país labaredas vermelhas, laranjas, quentes, brutais, queimaram, assaram, devastaram, fumaram, enfim criaram a dor e o vazio. As gentes gritaram de dor física, de dor mental, de dor vinda das entranhas apunhaladas na labuta das vidas. Retorcidas nos esgares, nos gestos de mãos erguidas e lágrimas pingadas.; de choro acre e sangrento; de gritos e ais estiolados num ar negro, sufocante de ignescências. As chamas riram-se das gentes boas numa dança de macabra de ambição, podridão e morte. A morte rondou, desceu e roubou gente, a nossa gente. Ontem e hoje o meu país ardeu. Arderam os pinheiros, os eucaliptos, os carvalhos, os castanheiros, as oliveiras e tantas, tantas outras. Arderam as casas, os casebres, as capoeiras, canis e mais e mais. Ardeu a gente por dentro e por fora. Ardeu a alma de um povo. Foi o último domingo de António. Morreu queimado na sua casa, a que construirá com as suas mãos, envolto nas labaredas vermelhas da cor do seu sangue. Morreu na asfixia enrolado em si de mãos hirtas e dedos convulsos.
Rita ficou presa no caminho entre mantas negras que a asfixiaram e aos filhos. Jazem na cama branca entre tubos e emplastros de gordura. Da simplicidade de um almoço e calor parental para frigidez translucida do hospital. Os pais da Rita choram e abanam a s cabeças na sua imensa alma dorida. Miguel, o bombeiro, olha-nos de olhar vazio. Aqueles olhos viram mais do que é permitido à gente deste mundo. Miguel não fala, respira o ar amarelo do dia, apenas porque vive. Vive, perdido no horror do dia de ontem, vive porque teve a sorte de não ser apanhado. Tanta desordem em nome do comando. É o que pensa, é o que sente. Maria saiu do gabinete e entrou noutro maior onde se pressupôs seguir as operações. A politica não sente, a politica não é gente, é intenção. Não serve à gente, não resolve as crises, não mitiga a dor, nem salvaguarda o quotidiano. Perde-se nas palavras, ditas de promessas.
Nuno descansa. O dia foi grande. Cumpriu. Uma desgraça. Passou o caos, passou as palavras dos dirigentes. Palavras contritas, contidas e verdes de esperança. O único verde que remanesceu, porém, já uivado de negro, do ar em que foram proferidas.
Esta foi a estória do meu país. Durante ias vai-se ouvir todas as hipóteses viáveis, corretas e honestas para o futuro. Mas será que teremos mesmo futuro? Será que no meu país o laxismo, facilitismo, o adiar são as ferramentas que o dirigem?
M aria Teresa Soares

15 outubro, 2017

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O Fio dos Dias






Tomás, homem dos dias, balança-se na cadeira do café do bairro. É ali que mata o tempo. É ali que joga ás cartas com os parceiros dos anos. Tomás não é velho, mas é idoso.
Hoje senta-se mais curvado do que nos outros dias. Não que os ossos tenham chiado mais ou que a cadeira esteja mal assente. Hoje é um dia, mais um do que ontem, é certo, e, menos outro do que o de amanhã, em que está, sem estar ,estando em si, todavia com vontade de sair.É daqueles dias em que está irritado, não é bem isso, é algo que vem das entranhas até à cabeça e da cabeça ao corpo. Não sabe definir. Nunca soube. Tem dias assim. Poucos, é verdade, mas tem. E, hoje é um deles. Há impaciência até nos pés titubeantes que descansam no chão de mosaico. Está inquieto desde que se levantou bem cedo. Os gestos denunciam-no. Quando pegou na caneca de leite, entornou-a, quando pôs a manteiga no papo seco, esta saiu dos bordos do pão. A sua Agostinha olhou-o, com aquele olhar dos anos, meneando a cabeça. Calou-se. Só olhou. Nesta altura da vida as palavras não existem porque se gastaram, somente o olhar fala. Saiu para a rua resmungando entredentes contra tudo. Aliviou-se. Mas não descansou.
Caminhou lento até ao café. Vazio. Preguiçosos, os amigos. O Júlio, o dono, olhou-o por entre as pálpebras semicerradas deu-lhe os bons dias. Mais nada. Adivinhou trovoada. Conhecia-o. Tomás sentou-se na cadeira que hoje não estava direita tal como o seu espirito e pegou no jornal que por ali descansava. Folheou-o mais por hábito do que por curiosidade. As noticias eram iguais todos os dias. A prosa repetia-se mo vai e vem dos verbos e adjetivos. Os substantivos eram comuns. Tudo era rotina. Igual. Como os dias.
Tomás pigarreou não para aliviar a garganta, mas antes o espirito. Para se sentir vivo. E os amigos que não chegavam. Queria implicar. Tinha vontade disso. Queria ser ouvido. A idade dera-lhe este atributo. Ter a sua opinião, muita opinião. Passara a vida a cumprir. As regras. As horas, Os dias. O tempo. Tudo organizado no fio da ordem. Agora não tinha fio, não tinha dias, nem horas, nem tempo. Eram dias vazios, quase vazios. Eram cheios pelas palavras do café, pelo silêncio de Agostinha, pelo sono do sofá e o matraquear da televisão. A rotina dos velhos.
Precisava de falar, de se fazer ouvir e ser ouvido. Precisava de que alguém o contradissesse para se sentir vivo. A sua inquietação era afina,l sentir. Sentir. O tempo também lhe estava a levar o sentir. Aquela necessidade de vida, que via fugir. A premissa de pensar, falar, rir e chorar que o tempo lhe estava a roubar. Tomás sabia-o lá bem no fundo, por isso estava irritadiço. Queria rebentar, mas não tinha razão para isso. Ser velho, é isso mesmo querer viver,ainda e sempre.
Tomás suspirou. Estava a rezingar consigo. A sua raiava diluía-se à medida que o entendimento o percorria.
Olhou por entre o vidro da porta e viu João, o velho amigo, virar a esquina.

 O tempo estava a chegar. 
MT Soares




16 setembro, 2017

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A Tolerância e o caos.

Vivemos no mundo que criamos. Não gostamos dele, mas, facto é, que o criamos. Somos como que uma espécie de pais diletantes em pedagogias, as quais, afinal, se voltaram contra nós. O mundo está caótico. Não o queríamos assim, tal como não queremos os nossos filhos amargos e conspícuos.
Pois, então um berbicacho; Uma faca de dois gumes; Algo incontrolável; Uma dor de cabeça. E por aí fora vamos acrescentando mil adjetivos e frases de ocasião para os momentos que paulatinamente fomos gerando, diga-se, com a melhor das intenções e, se acaso não as foram, com a melhor da nossa ignorância feita boa vontade.
 O mundo está um caos.
Prepotências, terrorismo, guerras, más vontades, intrigas, desencontros, inimizades e por aí fora. Assim nos dias pares tentamos colar sorrisos e conceitos quase, quase de faz de conta e que ficam bem, o mais que não seja nas curricula das palavras, pois que no das intenções, ficam quase sempre em arquétipo aberto por ser, respeitantes, claro está, aos dias ímpares.
O mundo está do avesso.
O politicamente correto inundou-nos à laia de tsunami mental, se por acaso tal fora viável. Não se chama mais aos cornos, cornos, nem às coisas o seu nome real porque, vá lá cum Diabo, magoa-se o nosso parceiro, É um magoar superficial, mas é quanto baste. Exatamente como nas receitas. É na superfície que se vive. O que se vê, prevê e entende a dois passos de distância é a regra. O resto, a verdade, crua, nua e obscura, há que esquecer. Até porque não é politicamente correta.
O mundo está incorreto.
O incorreto é visível quando garotos de ambos os géneros se dedicam a praticas de destruição. em nome de uma verdade Divina, de uma crença acrisolada em negação, num míster destrutivo de futuro, em suma aos meus olhos de ocidental respeitador de todas as verdades divinas, numa mentira incontrolável de poder. Não o sabem, alguns, deleitam-se outros, e riem os que manipulam.
O mundo vive de marionetas.
Neste proscénio em avesso, os bonecos são manipulados não pelos paus e fitas que lhes dão vida, mas sim, pela lavagem mental, pelo politicamente correto, pelo verbo tolerante conjugado num presente imperfeito, conjugação presente em modo agudizado. As marionetes deixaram de ser motivo de alegre riso para se tornarem os títeres do passivo presente.
O mundo é o nosso catre
É nele que nos deitamos ou acordamos. É nele que vivemos. Certo. É nele que plasmamos o presente e gizamos o futuro. Analisamos o passado sob a mira precisa do microscópio tentando apagar os erros cretinos dos avoengos. A evolução é a nossa mais valia, e também o nosso maior detrator. Revela a nossa mediocridade em melhorar, em não cair no facilitismo da tolerância balofa. A Tolerância é uma senhora, e não uma meia senhora ou uma qualquer prostituta, digo profissional do sexo como se deve escrever. A Tolerância, a Verdade, o Poder, a Correção, a Sabedoria e o Estar no Mundo são as premissas que fazem o mundo caminhar. Porquê então cortar caminhos e criar atalhos? Porquê então fazer da verdade mentira, e da mentira verdade?
Basta! Sejamos aquilo que somos, isto é Corretos sem o politicamente, Crentes sem acrisolamentos e quase, quase Divinos sem religião.
 Boa Tarde, meus amigos.
MT
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As vidas do outro lado
Vem enrolado em espiral de frio, o vento, que empurra estrada abaixo. Vem depressa como se fora apanhar o autocarro das oito. Sopra embalando-se no seu silvar.
Na calçada gasta de passos, mais de vento, chuva, terra e anos, Júlia estuga o passo. Tem que se apressar. Já devia ter pegado às oito. Vai entrar com a casa já despida de gente. A patroa não gosta quando ela se atrasa. Depois fica tudo de pernas para o ar. As meninas deixam tudo numa desordem provocada de mimo, a senhora, não; o senhor, muito menos. Só as meninas, sempre as meninas. Dois pivetes de adolescentes estragados. Despem-se e vestem-se, vestem-se e despem-se. Lavam-se e sujam-se, sujam-se e lavam-se. A Júlia apanha, a Júlia lava, a Júlia passa, pendura, ajeita e suspira.
Mais um dia de colheita de roupas, de ajeitar e ordenar. Mais um dia de corre-corre. Mais um dia de trabalho. Tudo desliza maquinalmente. A ordem, o direito e o avesso da casa são-lhe tão familiares que nem precisa de pensar. É só repetir o que fez ontem, anteontem, antes, e antes, sempre, desde o primeiro dia. Depois tudo foi igual. Até o ordenado. Tudo igual. Só aos anos se somaram as dores, que apareceram ora nas pernas, ora nas costas, e por aí fora. Mas isso não conta, o que conta é que daqui a pouco já ganhou o seu dia, o pão que mete na mesa. Também tem adolescentes. Diferentes. Não são melhores nem são piores. Só não jogam o vestir e o despir de roupas atiradas ao chão, ou enroladas nos armários ou atiradas no cesto da roupa suja. A abundância não enfeita os guarda-fatos lá de casa. O tropel dos rapazes e raparigas fica-se pelas escadas ou pela rua. O frigorífico não desatina num abrir e fechar enquanto as prateleiras se esvaziam num pestanejar súbito das bocas. Tudo é pequenino na sua casa. Até o tamanho da sua gente. Aqui, cresceu-se, espigou-se, esticou-se. Lá devagarinho pespontou-se.
As suas meninas e o seu homem não correm, antes, circulam com a lentidão do pulsar escasso das suas vidas. Não há fome em casa. Há apenas pouquidão Não há corre-corre há vagar. Tudo é feito à medida dos bolsos de cada um. Uns são cheios, outros menos cheios, outros ainda pouco cheios e há-os vazios. Os seus são de acordo com os dias do mês, se bem que nunca encheram. Coisas deste lado.
Ela é uma simples empregada de todos os dias. Cabe-lhe arrumar e endireitar parte das vidas corridas dos patrões. O seu papel não é principal, porém secundário também não é. Fica naquela dependência que os patrões têm para que possam avançar. Precisam que lhes poupem o tempo para as tarefas ditas superiores. Mas o que seria da vida, se não houvesse as Júlias e os Manéis para desempenhar o que os outros não sabem ou não querem fazer?- Júlia orgulha-se do seu papel. Ela é o lado, que não se vê mas que é preciso.
Bate a porta e fecha-a. desce os degraus do jardim. Na rua, o vento enrola-a de novo, embala-a. Puxa o casaquito contra o peito e num breve esgar de sorriso murmura: “Vida, mesmo sem porteira. Maldito vento!”