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Alguém que ama a vida e odeia as injustiças

16 setembro, 2017

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As vidas do outro lado
Vem enrolado em espiral de frio, o vento, que empurra estrada abaixo. Vem depressa como se fora apanhar o autocarro das oito. Sopra embalando-se no seu silvar.
Na calçada gasta de passos, mais de vento, chuva, terra e anos, Júlia estuga o passo. Tem que se apressar. Já devia ter pegado às oito. Vai entrar com a casa já despida de gente. A patroa não gosta quando ela se atrasa. Depois fica tudo de pernas para o ar. As meninas deixam tudo numa desordem provocada de mimo, a senhora, não; o senhor, muito menos. Só as meninas, sempre as meninas. Dois pivetes de adolescentes estragados. Despem-se e vestem-se, vestem-se e despem-se. Lavam-se e sujam-se, sujam-se e lavam-se. A Júlia apanha, a Júlia lava, a Júlia passa, pendura, ajeita e suspira.
Mais um dia de colheita de roupas, de ajeitar e ordenar. Mais um dia de corre-corre. Mais um dia de trabalho. Tudo desliza maquinalmente. A ordem, o direito e o avesso da casa são-lhe tão familiares que nem precisa de pensar. É só repetir o que fez ontem, anteontem, antes, e antes, sempre, desde o primeiro dia. Depois tudo foi igual. Até o ordenado. Tudo igual. Só aos anos se somaram as dores, que apareceram ora nas pernas, ora nas costas, e por aí fora. Mas isso não conta, o que conta é que daqui a pouco já ganhou o seu dia, o pão que mete na mesa. Também tem adolescentes. Diferentes. Não são melhores nem são piores. Só não jogam o vestir e o despir de roupas atiradas ao chão, ou enroladas nos armários ou atiradas no cesto da roupa suja. A abundância não enfeita os guarda-fatos lá de casa. O tropel dos rapazes e raparigas fica-se pelas escadas ou pela rua. O frigorífico não desatina num abrir e fechar enquanto as prateleiras se esvaziam num pestanejar súbito das bocas. Tudo é pequenino na sua casa. Até o tamanho da sua gente. Aqui, cresceu-se, espigou-se, esticou-se. Lá devagarinho pespontou-se.
As suas meninas e o seu homem não correm, antes, circulam com a lentidão do pulsar escasso das suas vidas. Não há fome em casa. Há apenas pouquidão Não há corre-corre há vagar. Tudo é feito à medida dos bolsos de cada um. Uns são cheios, outros menos cheios, outros ainda pouco cheios e há-os vazios. Os seus são de acordo com os dias do mês, se bem que nunca encheram. Coisas deste lado.
Ela é uma simples empregada de todos os dias. Cabe-lhe arrumar e endireitar parte das vidas corridas dos patrões. O seu papel não é principal, porém secundário também não é. Fica naquela dependência que os patrões têm para que possam avançar. Precisam que lhes poupem o tempo para as tarefas ditas superiores. Mas o que seria da vida, se não houvesse as Júlias e os Manéis para desempenhar o que os outros não sabem ou não querem fazer?- Júlia orgulha-se do seu papel. Ela é o lado, que não se vê mas que é preciso.
Bate a porta e fecha-a. desce os degraus do jardim. Na rua, o vento enrola-a de novo, embala-a. Puxa o casaquito contra o peito e num breve esgar de sorriso murmura: “Vida, mesmo sem porteira. Maldito vento!”

14 setembro, 2017

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Ser velho, idoso, gasto, depauperado, enfim já vivido!

Agostinho é vivo, ardiloso, galante e quiçá quase, quase mulherengo. Agostinho ronda os setenta e muitos. Quem o vê, nota um idoso enxuto, encarquilhado, vacilante, mas de olhar saltitante. Ainda suspira quando passa perto de uma mulher jovem. A sua libido ainda borbulha. Dizem, os malsabidos que os velhos não sentem, são inseguros e pranteiam. Agostinho lacrimeja do pó dos anos, suspira nos dias da Primavera e abre o coração nos dias dourados.
Num dia destes, Agostinho pegou na motoreta, pôs o capacete e foi de passeio até à praia. Não gosta de filas e muito menos de autocarros e elétricos contorcidos de gente com rosto de maçãs verdes. A fruta que Agostinho prefere é o pêssego. Bem maduro, saboroso, meloso e com aquele fio de sumo a pingar pelos beiços. As maçãs verdes e ácidas destes tempos arrepiam-no. Por isso não gosta dos autocarros, sempre cheios e ácidos. Estrídulos como a fruta verde.
Devagar porque a pressa é para quem ainda não vivei e teme pelo tempo, chegou à praia. Espraiou-se na esplanada de um café. Não esborrachou o rosto no ar porque não existia parede de ansiedade. Semicerrou o olhar e apreciou o mulherio. Esbeltas, corças jovens; redondas, leoas de família; as mais velhas de pé aqui, salto ali, uma torcer mais um endireitar provocaram-lhe o sorriso nos lábios finos dos anos. Gostou. Afinal, as mulheres mais despidas ou mais vestidos mantinham aquele jeito de séculos, a sedução. Agostinho reclinou-se e voltou a razão para os jovens desarticulados que se espremiam em olhares e trejeitos perto das corças como se fossem olharapos em andança. Estava satisfeito. Beberricou a sua imperial, recostando-se na cadeira de plástico verde.
Agostinho pensou então como era feliz por ser velho, idoso, depauperado enfim vivido. Ele, o velho, tinha no corpo e na razão o cofre dos anos vividos, o olhar das coisas belas, ele não precisava de descobrir e experimentar, porque sabia. Afinal, concluía Agostinho:
A vida era mesmo um pêssego rosado e suculento. Abaixo a maçãs verdes é acidas. Que feliz estava por ser velho!

07 setembro, 2017


. .Setembro e as lágrimas de verão




Setembro, dizem uns, é o mês da despedida, outros afirmam ser o da chegada. Em permeio ficam os dias. Acordam com lágrimas de neblina e deitam-se enrolados em manta de seda azul rota de estrelas. Há nas horas um não sei quê de espera macia, um rolar de tons vivos, um sussurro do vento que parte, um brincar de desencontros que borbulham nos sentidos. É Setembro. O principio do que vai chegar, e o fim do que está de partida. Setembro é a natureza suspirada. Setembro é o istmo entre o ouro e a púrpura.
Setembro traz no útero a bruma do amanhã. Germina-a. Humedece e deixa cair as lágrimas purpúreas, amarelas e verdes tristes. Tapetes de despedida pisados no vai e vem das horas.
Setembro despe-se. Na sua incipiente nudez há ainda a timidez virginal do tempo de solidão, a inocência do despojo. Setembro é mulher. Caprichosa e despojada.
Setembro é lágrima de verão em prece de Outono

16 agosto, 2017

O Pão dos Dias

. .O Pão dos Dias!
Três e meia a noite ainda enrola o céu. Dentro das paredes de azulejo branco, a luz maravilha a bola de água e farinha que de redonda é puxada, sovada, unida e de novo enrolada em bola. Um gesto maquinal, um salpico de farinha e jaz redonda e tenra naquele fermento de tempo à espera da levedura das horas.
No seu tique-taque o relógio da parede branca marca o compasso das mãos. Uma bola, duas, três, quatro. Tantas que na mesa os tabuleiros se perfilham em alas de soldados de pão. A paz dos corpos. O fogo pacificado das mentes. O sorriso das almas. O pão.
José esfrega as mãos num gesto simples. Fios toscos despegam-se. O esfarelar da massa. Os braços fortes e ágeis continuam incansáveis a sua lide. As mãos macias e doces dão vida à farinha. Acrescenta um beijo de água mais um suspiro de fermento levedado. Com um rodar preciso que os pulsos elásticos sabem imprimir, a massa brota, ali mesmo como se alguém lhe suspirasse vida.
As bolas cresceram, redondas, fortes, lisas e macias. José, padeiro -artista molda-lhes as formas. Umas pequeninas, outras maiores, outras ainda caprichosas. A imaginação vestida de amor.
José padeiro, nem jovem nem velho. Homem calado de olhos avaros de dia e trabalhados de noite. A massa que gera em cada madrugada é o alimento dos seus dias.  Sonha. Os padeiros também sonham. Sonha que aqueles pãezinhos moldados entre os dedos são as sementes de cada dia. Uma barriga cheia é um olhar feliz, um sorriso na boca. Um saciar. A paz da alma que adoça a vontade dos homens.
José sente-se soldado do mundo. A sua arma é diferente. Não vomita, mastiga-se, engole-se. Alimenta. É o pão,o seu pão. E o pão dos dias é a mais bela escopeta de amor.
José também é soldado trincheira da vida.

30 julho, 2017

. .Uma dança
O vento ulula numa morna de verão. Jacinto de olhar mortiço segue o som. Os olhos pequenos e opacos avermelham-se na caixa das lágrimas. Jacinto é velho. Idoso, diz-se, e fica melhor. O vento estremece em movimento de ancas. Contorce-se e suspira. Jacinto pestaneja de olhar húmido. Apoia as mãos nas tiras de madeira do banco do jardim Está sentado, mas há um inclinar do tronco para a frente, como, se o vento o puxasse ou a morna o trepidasse. O vento passa ululando, de novo. Jacinto deita as mãos aos olhos. Lacrimeja. Não de dor ou insipidez. De vento, de solidão. De morna que o agita.
E o vento volta a trás e ri-lhe nos olhos, puxa-lhe as mãos e crispa-lhe as pernas. Puxa-o para a morna. A morna da vida. O vento tem alma. Jacinto espirra. Prosaico. O vento não ri. Gira e gira e contorce-se nas ancas do ar. Espirais redondas de volúpia. Jacinto percebe. Percebe que o chama. O olhar opaco na caixa das lágrimas aviva-se. Já tem luz. E na boca de dentes pardos e ralos, o sorriso rasga-se. Há um agitar no corpo. Vem das entranhas, vem da vida. Jacinto é idoso. É lento e frágil. Tem nos anos de vida a memória das mornas sentidas. Algures, bem dentro de si, a caixa o tempo entreabriu-se deixando escapar a força do átimo já experimentado. Saciado na sua memória, risonho do seu segredo, Jacinto recosta-se no banco do jardim. Fecha a caixa do olhar. Orladas de gotículas a esparsas pestanas pingam suavemente. As mãos, enrugadas de veias bisbilhoteiras abrem-se no ar, para depois se apertarem num decúbito de unhas. Querem guardar aquela morna que o vento teimou em dançar. Jacinto dançou.

26 maio, 2017

Mulher


Mulher
Mulher não é menina nem moça, mulher é gente vergada na liça da vida, é gente de mãos doridas que lava o rosto do futuro, é gente que engole a dor porque o amanhã é matriz do seu ventre, é gente que sorri quando a alma dói, é gente que chora quando o coração estilhaça é gente que cria, esquecendo-se, é gente que se ultrapassa porque se revive em cada dádiva.
Mulher não é mito de carne nem boneca vazia. A essas chamam-se bonecas de carne. As outras, as mulheres do mundo, são a gente de todos os dias. Aquelas que não têm retratos, nem entrevistas, aquelas que não são faladas, mas são lembradas. São as mães, são as mulheres dos homens ocupados ou desleixados, são as profissionais estranguladas em mil ofícios. Mulher é o cansaço de todos os dias derretido sob o sorriso feliz do filho. Mulher é a luta marcada pelo lugar que o mundo lhe negou. Mulher é o direito de Ser.
Mulher é o útero do mundo vomitado na dor altiva do amor. Mulher é a luta do passado, do hoje e do amanhã. Mulher é pedaço de pão levedado em formas caprichadas, tostadas ou esbranquiçadas, mas eternamente saborosas, o alimento do mundo. E, se outras as bocas se abrem famintas, ávidas no desejo eterno da fruição, sorrindo são saciadas.

Mulher é quem estende a mão, veste o corpo e acaricia o rosto. Mulher é quem nua de desejo dobra a alma na cama da vida, mulher é e será o odre da vida hoje e sempre, meus amigos.

28 fevereiro, 2017







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Desrazão

Um, dois, três e os dedos dobram-se e desdobram-se numa melopeia de ritmo. Um, dois, três. É assim que Sãozinha olha o tempo. Sentada na sua velha cadeira, faz das mãos o terço da vida. O olhar perscruta a mancha do fogo, os lábios balbuciam sons já perdidos que não chegam a aflorar e os dedos, oh esses dançam, dançam perdidos no cinzento da desrazão.
Sãozinha para a sua dança de mãos. Balança o tronco e sorri. Depois ergue o olhar tremulado e húmido e sorri. Um sorriso tão terno. Abana a cabeça de doce cinzento e naquele instante o olhar vivifica-se. Voltou. Está cá.
Olha em redor. Curiosamente. E olha de novo. Uma a uma, as pessoas que giram em volta. Não se apresenta porque está apenas de passagem. Silenciosamente olha e sorri. Há curiosidade recatada. Breve. Breve.
Despega-se. Sobe ao mundo das imagens. Aquele que a nutre desde há uns anos. Não precisa de nada. Ele, o mundo dos rostos, dá-lhe tudo. Está em paz. Quando desce há ruído, muito ruído, sons graves e agudos, gritos e até choros. No seu mundo, casa, quarto ou espaço existe apenas o silêncio de rostos que falam com os lábios fechados, e de olhos abertos. Falam-lhe do antigamente, do tempo em que estavam todos juntos. Gosta mais e estar com eles do que com os outros. Quase nunca percebe o que dizem, o que querem. São barulhentos, muito, muito.
Encolhe-se de novo. Quanto mais se encolher menos a veem. Adquiriu o jeito durante os dias. Pensa assim. O seu João vem vê-la muitas vezes, todos os dias. E falam. Falam como nunca conversaram. Entendem-se melhor. Têm tempo, e depois são os anos vivos lado a lado, que descansam finalmente. Sem palavras, com olhares mudos, mas plenos de partilha. Há tanta gente que a visita, há tantas coisas que se lembra, há tantas e tantas recordações a fervilhar. Não tem tempo para estes ruídos, nem os percebe. Uma chatice. Não a deixam em paz, têm a mania de lhe falar alto e ralhar. Como se fosse uma gaiata. A sua vida já não tem a razão, porque é a desrazão o seu tempo. E no aconchego da cadeira estende a mão ao seu João e deixa-se embalar ao ritmo os seus dedos.