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Alguém que ama a vida e odeia as injustiças

26 setembro, 2013

Setembrando...



O outono é corpo maduro de mulher em brisa húmida setembrando-se no gesto macio de um ondular de ancas ou no fulgor de um seio prenhe. Os braços em asas de vida rodeiam os dias. A boca redonda, túrgida vomita o desejo em beijo sentido. Deleita-se o olhar cheio do tempo vivido ,e sacia-se na dádiva do ser. Na plenitude dos sentidos, na maciez do querer há um breve arrepio de tempo. Tempo de fim, tempo de princípio. No princípio chegam as névoas tímidas, lágrimas escorridas dos dias findos regando as manhãs, logo, logo os casulos de sol abertos que se deixam perder no vento soprado aquecem as tardes já quase breves.
 O Outono é tempo.
 Setembram-se as manhãs vestindo o corpo da neblina húmida qual réstia de um lençol chorado da noite e agostam-se as tardes com o casaco de milho maduro cujas espigas rebentam nos casulos já prenhes de calor. Setembram-se os homens que lentos no despir do verão entornam o olhar pelas folhas já encaracoladas por onde espreitam bagos grávidos de mel e moscatel. A terra-mãe serena-se no aconchego do tempo, que lento mas firme desenrola os seus os seus cabelos de sol por entre as últimas árvores carregadas. Sorriem as maçãs ainda adolescentes, baloiçam pesadas maduras peras em minuete de despedida. Pingam liquefeitos os figos numa baba doce e convidativa, os marmelos aconchegados das suas écharpes de veludo maduram no alto da folhagem, os dióspiros, crianças ainda, alimentam-se do resto do tempo passado e os cachos? Oh, esses senhores absolutos pendem grossos, maduros, tintos e dourados na perfeição do seu tempo.
O Outono é vindima
Setembra-se o sentir em cachos robustos que latejam o orvalho da vida. Espreitam arquejantes por entre os laços verdes, rosados, dourados, roxos, macios, hirtos e quebrados que lhes adornam o toucado. Esperam ansiosos pela hora do amor. Vindimados, saciados, os bagos eclodem em líquido doce e prenhe. Tempo de vida.
Os bardos nus estremecem à neblina, ao calor que desce, à noite que cai. Nas lágrimas da terra recolhe-se aquele outro corpo de mulher. Dobra-se sobre si qual lótus saciado. Amanhã é tempo de remanso. Descaem as pálpebras, fecha-se o olhar, poisam os braços, descaem as pernas, o tronco recolhe-se, o frémito passa, o desejo adormece.
O Outono já embala o amanhã da vida.
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21 setembro, 2013

Apresentação 

 Aqui está minha vida — esta areia tão clara
com desenhos de andar dedicados ao vento.

Aqui está minha voz — esta concha vazia,
sombra de som curtindo o seu próprio lamento.

Aqui está minha dor — este coral quebrado,
sobrevivendo ao seu patético momento.

Aqui está minha herança — este mar solitário,
que de um lado era amor e, do outro, esquecimento.

Cecília Meireles, in 'Retrato
Natural'
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19 junho, 2013

. .Dentro de dias  farias anos, mais um,  e uma vez mais os versos de João de Deus soltar-se-íam   :" com que então caíu na asneira..../Não sei quem foi que me disse que fez a mesma tolice aqui no ano passado,.../ Não faça tal, porque os anos /que nos trazem? Desenganos/ Que fazem a gente velho...Paravas por aqui e assim o faço também , mas acrescento apenas um poema, de alguém maior, de alguém que também muito amo. Aqui vai com um eterno e doce beijo.

O Pai 
 Terra de semente inculta e bravia,
terra onde não há esteiros ou caminhos,
sob o sol minha vida se alonga e estremece.

Pai, nada podem teus olhos doces,
como nada puderam as estrelas
que me abrasam os olhos e as faces.

Escureceu-me a vista o mal de amor
e na doce fonte do meu sonho
outra fonte tremida se reflecte.

Depois... Pergunta a Deus porque me deram
o que me deram e porque depois
conheci a solidão do céu e da terra.

Olha, minha juventude foi um puro
botão que ficou por rebentar e perde
a sua doçura de seiva e de sangue.

O sol que cai e cai eternamente
cansou-se de a beijar... E o outono.
Pai, nada podem teus olhos doces.

Escutarei de noite as tuas palavras:
... menino, meu menino...

E na noite imensa
com as feridas de ambos seguirei.

Pablo Neruda, in "Crepusculário"
Tradução de Rui Lage

09 junho, 2013

Mãos


Mãos,

Redondas, cheias, quentes,

Mãos de amor,

Esguias, elásticas, subtis de encanto,

Mãos de Sentir,

Mãos eternas, sofridas, de amparo, esquecidas

Mãos de Vida

Mãos duras, sujas, gretadas, inchadas

Dão-nos o Pão-nosso de cada dia,

Mãos cúpidas, vorazes, rapaces

As que vendem a Alma!

Mãos que dão, beijam e alagam.

E concebem o Sonho,

Mãos angulosas, retortas, trémulas

Estrada de Idades!

Mãos frementes, prenhes, doces

Sorrisos de Mãe,

Mãos rápidas, precisas, quentes

Gestos brancos.

Mãos desgarradas, feridas, retorcidas

Salivas de ódio

Mãos, nuas, exangues, cruzadas,

Ámen

Mãos, mãos estultas, doces, vibrantes,

Mãos que dão, que tiram, que recebem, que roubam

Amor, ódio, vida, morte

Mãos vividas, por viver, por abrir, por ler.

São mãos tuas, são mãos minhas,

Os gestos de Nós.
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