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24 setembro, 2010

Setembro em Bagos

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Setembro em Bagos

Na manhã vestida com saia de neblina, o corpete azul do céu pesponta enviesado na janela do amanhecer. Setembro. Novelo de tons, fios de alma, chama bruxuleante dos dias em despedida.

Logo, logo, o sol empurra a saia húmida de neblina e, beija a árvore humilde. Pinta-a de luz e sombra. Com verde negro onde mora a teia tecida nas lágrimas do orvalho, com verde doce onde pesponta a folha tenra, depois Senhor, envolve o fruto de cachos maduros pintalgando-os de ouro. Deixa-se escorrer neles em gozo perfeito, em arco de e luz e tons.

Nos lábios da criança, que corre entre os bardos, uma ponta de saliva aloja-se no canto. Escorrega o sorriso, enquanto as mãos se estendem abertas para o cacho mudo, que descansa entre as folhas matizadas de rosas, roxos e castanhos-ouro. Já se enrolam na despedida.

A mulher dobra-se em gesto calado. A mão, concha aberta, recolhe feliz o cacho de bagos roxos. Toca-o no seu fulgor de perfeição, depois joga-o no interior do cesto, onde outros já gotejam a doçura em líquido doce.

Lá em baixo o rio remansa plácido, quente, vivo e dono. Recurva-se nos cantos em toque breve na terra, mulher. O jogo eterno dos amantes. Um desejo cumprido mas não saciado. Retoma o seu curso e adormece cansado no leito.

E Setembro desce nas encostas, enrolando a terra, vestindo -a de matizes. Tela viva de ocres e mostos. A cor do cheiro que mastiga a brisa.

Setembro das neblinas, dos cheiros, da partida. Setembro prenhe de cor e mel. Setembro ébrio de mosto, de cantigas enroladas em gargantas por abrir. Setembro de mãos entrelaçadas, de coxas quentes em toque de movimento, de olhares fulvos de alma, de bagos que se abrem grávidos de seiva, de gente em procissão carregando nos ombros os andores de cachos maduros.

Setembro fruto, Setembro mosto, Setembro Homem, Setembro Terra. Setembro despiu-se. Setembro partiu.


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12 setembro, 2010

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Sorte é aquilo que acontece quando a preparação encontra a oportunidade.

(Elmer Letterman)
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09 setembro, 2010


Um querido amigo de longa data enviou-me este poema de Fernando Pessoa,não resisti em partilhar convosco a verdade do tempo e da vida na mestria das suas palavras .

Fernando António Nogueira Pessoa

Fernando António Nogueira Pessoa


"Um dia a maioria de nós irá separar-se.
Sentiremos saudades de todas as conversas atiradas fora,
das descobertas que fizemos, dos sonhos que tivemos,
dos tantos risos e momentos que partilhámos.


Saudades até dos momentos de lágrimas, da angústia, das
vésperas dos fins-de-semana, dos finais de ano, enfim...
do companheirismo vivido.

Sempre pensei que as amizades continuassem para sempre.


Hoje já não tenho tanta certeza disso.

Em breve cada um vai para seu lado, seja
pelo destino ou por algum
desentendimento, segue a sua vida.


Talvez continuemos a encontrar-nos, quem sabe... nas cartas
que trocaremos.

Podemos falar ao telefone e dizer algumas tolices...
Aí, os dias vão passar, meses... anos... até este contacto
se tornar cada vez mais raro.


Vamo-nos perder no tempo...

Um dia os nossos filhos verão as nossas fotografias e
perguntarão:
Quem são aquelas pessoas?

Diremos... que eram nossos amigos e... isso vai doer tanto!


- Foram meus amigos, foi com eles que vivi tantos bons
anos da minha vida!

A saudade vai apertar bem dentro do peito.
Vai dar vontade de ligar, ouvir aquelas vozes novamente...

Quando o nosso grupo estiver incompleto...
reunir-nos-emos para um último adeus a um amigo.

E, entre lágrimas, abraçar-nos-emos.
Então, faremos promessas de nos encontrarmos mais vezes
daquele dia em diante.


Por fim, cada um vai para o seu lado para continuar a viver a
sua vida isolada do passado.

E perder-nos-emos no tempo...


Por isso, fica aqui um pedido deste humilde amigo: não
deixes que a vida
passe em branco, e que pequenas adversidades sejam a causa de
grandes tempestades...

Eu poderia suportar, embora não sem dor, que tivessem
morrido todos os meus amores, mas enlouqueceria se morressem
todos os meus amigos!"


fernando pessoa

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02 setembro, 2010

ADEUS VERÃO

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Adeus Verão


Um bocejo. Um olhar.

É o tempo da luz que se recolhe.É o Verão que se encolhe.

Cabelos longos, soltos, emaranhados na brisa da tarde, pele doirada do sol e do mar, lábios rubros de adolescente, mãos doces de menina e olhar perdido de mulher. Isabel.

Sob o toldo branco que teima ainda em filtrar a luz macia de Agosto, olha em redor. Uma centelha. Um palpitar. Nada. O olhar desce de novo para a mesa redonda onde os dedos tamborilam o tampo verde de metal. Puxa a cadeira um pouco para trás. Cruza as pernas morenas, despidas. Uns calções curtos vestem-lhe as coxas. Assim leve. Assim solta. À espera.

Sacode a massa castanha que desce pelas costas. Naquele trejeito derrama o olhar em redor. Nada. Vê o pulso. Cinco horas. Atrasado.

Suspira.

Amanhã já é Setembro. Amanhã acaba o tempo. Amanhã é dia de adeus. Amanhã o tempo vai mudar.

E a luz a inundar a praça. A luz que a faz piscar. A luz que lhe rouba o tempo.

O pé direito baloiça nervoso no sincopar dos minutos. Dança na sandália despida. Move-se ao ritmo do palpitar do corpo. Eis que se solta e cai. O pé desliza e busca-a no chão. Enfia-se nela tal como na espera. Voluntariamente.

Chega. Desengonçado. Alto e magro. Com calças a mais e camisa de menos. Sorridente. Lança-lhe um beijo nos dedos que poisa nos lábios. Um trejeito.

Isabel sorri. Feliz. A luz do verão espalha-se nas faces e aninha-se nos olhos de veludo. Sorriem um no outro.

Isabel e João.

Sorriem e estreitam as mãos. Afagam-se no olhar. O tempo está ali. Parou. Amanhã já não é Setembro.

Levantam-se. Entrelaçam os dedos. Partem

O pôr-do-sol desceu na praça.

Fechou-se o último toldo.



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30 agosto, 2010

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Olhando o mar, sonho sem ter de quê.
Nada no mar, salvo o ser mar, se vê.
Mas de se nada ver quanto a alma sonha!
De que me servem a verdade e a fé?

Ver claro! Quantos, que fatais erramos,
Em ruas ou em estradas ou sob ramos,
Temos esta certeza e sempre e em tudo
Sonhamos e sonhamos e sonhamos.
...........................................................
Fernando Pessoa

19 agosto, 2010


Gentleness





























The firste stock-father of gentleness,
What man desireth gentle for to be,
Must follow his trace, and all his wittes dress,
Virtue to love, and vices for to flee;
For unto virtue longeth dignity,
And not the reverse, safely dare I deem,
All wear he mitre, crown, or diademe.

This firste stock was full of righteousness,
True of his word, sober, pious, and free,
Clean of his ghost, and loved business,
Against the vice of sloth, in honesty;
And, but his heir love virtue as did he,
He is not gentle, though he riche seem,
All wear he mitre, crown, or diademe.

Vice may well be heir to old richess,
But there may no man, as men may well see,
Bequeath his heir his virtuous nobless;
That is appropried to no degree,
But to the first Father in majesty,
Which makes his heire him that doth him queme,
All wear he mitre, crown, or diademe.

G.Chaucer
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04 agosto, 2010

O combóio

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O combóio

Com as mãos trémulas e engelhadas abre o jornal. Na página três. Metodicamente percorre as linhas das colunas. O rosto vai-se contraindo, à medida, que mastiga o conteúdo. O olhar salta para a imagem. Lá estão eles sentados no semi-círculo do Teatro Português. As deixas, essas pobres nem rir fazem., são farrapos de ideias com tempo cronometrado. Não são espontâneas. A Infernal Comédia dos Dias. Suspira. Folheia a página seguinte. Nada de novo. A ladainha das palavras repete-se. Cruza a perna magra que se ajusta perfeita no contorno dos ossos. O tecido das calças baloiça na largura. São castanhas da cor do Outono. Olha de soslaio o relógio da estação. Falta ainda quase meia hora. Veio cedo. Fernando chega sempre cedo e parte a tempo. Gosta de sentir as horas a escorrerem.

O casaco de quadrados afaga-o. O vento resolveu soprar. As páginas do jornal agitam-se, mais do que as notícias. Os ponteiros continuam a deslizar de mansinho na manhã de neblina. Ouve o apito do combóio. É o das dez.

O combóio pára. Descem dois passageiros e ninguém sobe. O combóio chega. O combóio parte.

Aquele ranger de ferros, o restolhar do silvo, o chiar e o silêncio. Ajeita o nó da gravata. É verde. Verde. Ele gosta de verde, sempre gostou. Combina com a cor dos campos, da bandeira, e vá lá uma pontinha de vaidade, com a cor dos seus olhos. Estão gastos mas ainda têm um pouco de brilho das folhas macias. É a cor da esperança. Idiota. A esperança não tem cor. Tem luz. Isso, só luz.

Fernando fecha o jornal. Dobra-o cuidadosamente. Alinhado. Baloiça o pé direito calçado no sapato inglês. Castanho. Castanho e verde, as cores da sua idade. A idade, pensa Fernando tem cores. É branca quando nasce, rosada quando cresce, cobre-se de azulão, vermelho e laranja na juventude, aperalta-se de todas as cores quando madura, na descida adoça-se de ocres e verdes, e no fim tapa-se de cinzentos gélidos e brancos tristes.

Fernando olha, uma vez mais, o relógio. Ainda faltam dez minutos. Tem tempo de ir à casa de banho. Na sua idade tudo tem que ser acautelado. Sorri. Recorda outros dias quando de um salto apanhava o combóio. Numa mão o saco, na outra, o movimento do corpo, o gesto dos anos. As horas esperavam-no e, ele trocava-lhes os minutos. Hoje, ele espera as horas, e os minutos fogem-lhe. Levanta-se. Lentamente dirige-se à casa de banho. O cheiro dos urinóis invade-lhe as narinas. Sempre há coisas que não mudam.

Está de pé defronte do pequeno jardim de buxos verdes. Sabe que a carruagem número dois vai parar ali. Já conhece tudo. Já não precisa de saltar. O combóio surge na esquina ao fundo. Ajeita o casaco, coloca o jornal sob o braço direito, apalpa rapidamente o bolso onde está a carteira e espera. O combóio entra na estação suavemente. Sem grande alarde, pára mesmo diante de si. Um só passo e ei-lo que sobe os dois degraus. Empurra a porta e rápido, tanto quanto as suas velhas pernas lhe permitem, senta-se junto à janela. Olha para o exterior e ,só depois para o interior. Já conhece os rostos tal como as suas memórias. Catálogos de imagens

Soa o apito, o combóio mexe-se. Lenta e timidamente. Depois, já longe da estação e, dos múltiplos carris, sózinho, desperta e ei-lo a correr agilmente.

Fernando respira fundo. A viagem de combóio traz-lhe sossego. Gosta daquele correr de paisagem. Lembra-lhe a sua vida. O tal catálogo de rostos. Gosta de os ver assim a correr, a misturarem-se numa amálgama de traços e cores. Folhas da vida que se debulham rápidas e soltas. Passam num arrepio de tempo. O rosto da mãe está junto do canto da janela, sorri-lhe, o do pai cujo dedo em riste o faz suster a respiração, não se lembra já do que fizera. Ele deitado, saciado, no areal morno. Um rosto sorridente divide o sentir. Luísa. Recorda-a. Sorri abertamente. Agora são crianças, crianças que o olham temerosas. Rostos pálidos. Camas. O hospital. Fogem também, ficam para trás. Uma bata branca, murmúrios, luzes, rostos e mais rostos, Silêncio. Uma mesa, adornada de gente com olhos a rir, enche ao vidro da janela. Ele está lá. Mariana de olhos profundos ri, ri e junta as mãos naquele jeito de criança. Mariana a sua mulher. Outra imagem que rebola no vidro e foge rápida. Mariana, fria, a doença levou-a. Não corre, demora-se a visão. Abraços apertados, lágrimas que não saíram. Solidão. Vê-se sentado, as mãos escondem o rosto. As crianças a seu lado seis. Cabeças em movimento, rostinhos de amanhã, olhares doces. Agora em slow-motion uma estrada, solitária, franjada de belos plátanos cujas folhas caem em dança de outono, uma casa ao fundo, bem lá no fundo. Outra imagem, um recanto de flores .Maduras. Serenas. As imagens diluem-se Embrulham-se nos seus traços de carvão. O livro fecha-se.

Cerra os olhos e olha o vidro. Vazio. Lá fora, os campos estremecem com o passar do combóio mas logo serenam. As recordações são humanas, somente humanas, muito humanas. São pedaços de vida gravados na carne da memória.

O combóio respira ruidoso na curva que antecede a estação. Em seguida desliza tranquilo. Pára num suspiro de vida. Fernando desce. É ali o seu destino. Olha em redor, traga a neblina, aperta o jornal, estuga o passo e recomeça o seu caminho. O silêncio empurra-o.

No fim está ainda o presente e, amanhã o combóio também virá.

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