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Alguém que ama a vida e odeia as injustiças

30 dezembro, 2009

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Agradeço-vos a palavras amigas e sensíveis que ao longo do ano foram escrevendo nas vossas visitas por este azul, desejo-vos, pois, o melhor para 2010.



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14 dezembro, 2009

Um Conto de Natal

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Um Conto de Natal

A laje fria do degrau acolhe-o, deita-se na cama de cartão que restolha o calor dos jornais sempre que se move. São os acordes na noite fria e solitária. Agostinho cofia a barba emaranhada com uma mão trémula, e com a outra, puxa de mansinho o cobertor desbotado mas ainda quente. Oito anos. Oito anos já lá vão. Suspira e humedece os lábios. Enrola-se nos velhos cobertores. Calor de lã em alma nua. A noite vai fria. Dezembro, o mês de todos os meses. Não ri o azul, nem pirilampam as luzes. Dezembro é o último entre todos. Traz escondido nas entranhas o mito da servidão. Ele conhece bem Dezembro. O dos dias apressados. Que se vestem de cor para fingir. Dias encenados chamam-lhes de festa. E já agora, pensa Agostinho, por onde andará a festa? Há oito anos que a espera.

Oito anos.

O tempo é mesmo água. Foge entre as conchas da mão. Só molha, logo escoa. Mancha húmida de vida. Pulsar breve. É isso mesmo, o tempo é água. Suspira. Depois cruza as mãos encarquilhadas de ilusão sob o cobertor de ramagens grenás. Volta-se de lado e cerra as pálpebras.

Uma sirene uiva apressada. E a gente respira no uivo da noite em compasso. Vergastam-se nos passos ao mesmo tempo que respiram entrecortados. O rumo dilui-se no prumo da rotina. São as marionetas do mundo. Alguém sabe lá quem, manipula cordéis dançantes. Dizem chamar-se Deus. Bah, quem será? Desconhece o Sujeito. Agora a gente, essa, ele conhece. São os moldes. Em gesso liso ou pregueado. O molde é a sua realidade. De Deus dizem a sua percepção. Mas os sentidos sentem-se nauseados. É assim que os vê, é assim que os mede. Observa e divaga, os seus companheiros, chamam-lhe Agostinho, o Filósofo.

Por vezes sente-se ufano do título, uma mão cheia de comiseração feliz. Uma ironia! Dirão os mortais comuns, mas ele não é comum é Agostinho Sem-Abrigo- Filósofo. Um pobre rico. Por isso gosta daquele canto, escuro. Ali entre a lã do cobertor e o papelão deitado em folhas de jornal, viaja no carrossel das suas próprias andanças, os altos e baixos da sua mortalidade. Olha para a feira do mundo, sorri condescendente aos seus moldes. E eles sobem, e descem por entre os cavalos, e duendes na viagem da procura. E giram, giram no carrossel. Agostinho vê, Agostinho pensa, Agostinho recolhe-se.

Oito anos.

A cidade dorme a seu lado, a cidade acorda a seus pés. Poder num homem sem glória.

O sono encavalitou-se nos pensamentos e não quer descer. Humedece os lábios secos. Cobre o rosto com o cobertor de ramagens grenás. Escuta o roncar indignado da barriga e sorri. Depois naquela beatitude que o sono provoca embala-se. Mergulha num mundo azul. Sente-se pairar algures entre o céu e a terra. Um silêncio feito de sons vazios. Senta-se displicentemente no outro lado do mundo, expectante, contemplando castelos de algodão estrelados. São belos. Tão belos que os olhos choram. O fardo dos anos e a condição humana despiram-se. Sente-se leve, leve.

Mergulha naquele embalar de vazio. Ali não há tempo nem memórias. Somente o fluir do espaço entre duas mãos de sentidos. Agostinho está leve mas pleno.

A sonolência torna-se a sua realidade. Olha em redor uma vez mais. A imensidão, o espaço fá-lo tremular. Mas quase a seu lado uma figura move-se. Não existem quaisquer espasmos naqueles movimentos. Uma certeza precisa, um controle absoluto. A imponência envolve-a. A figura abre-se e encapa o nosso homem. Agostinho sente o calor que perdera algures numa esquina do tempo. Procura o rosto da figura. Não encontra. Há matéria sem carne. Há vida sem sangue. Há forma plena de vazio. Treme-lhe o corpo, agitam-se-lhe os sentidos. Vê-se na sua posição fetal. Enrolado, temente. A expectativa do esforço invade-o. Tenta esticar os membros, porém uma força impede-o. Retorna à posição primeira. A fetal. A do mundo. A mente flui rebolando-se por entre as escarpas do antes, salta veloz para o presente. Pára antes da porta do futuro. A luz sorri ao momento.

Um amplexo de calor onde os braços se pressentem sem se sentirem. Uma chama, uma onda, um vibrar surpreendente transborda-o. Acorda-o, alenta-o. Sacode a cabeça num movimento forte que rompe tudo Um feixe, um halo e o seu corpo macerado de anos e humilhações desnuda-se. As labaredas vivas ferem-no suavemente. A sua nudez é a sua roupa. A luz perpassou a matéria.

Restolha a alma. Brilham os olhos. Sente o coração. Sente-o crescer. Crescer, redondo, vermelho, forte e belo. Tão belo, tão forte que o cativa. O coração é ele, ou ele é o coração.

Cá em baixo ,o carrossel de luzes continua a rodar. Mais uma volta e outra, e outra ainda. A próxima paragem é já ali na esquina e chama-se Natal.

Então o coração desliza do amplexo e pulsando no seu vermelho sangue, quente e vibrante cai misturando-se entre os homens.

No degrau frio um cobertor de ramagens grenás repousa sentado. Alguém passa, alguém o olha, alguém o colhe.

Amanhã é Natal!

Paz na Terra aos Homens de Boa Vontade!


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08 dezembro, 2009



Poema de Natal

Para isso fomos feitos:
Para lembrar e ser lembrados
Para chorar e fazer chorar
Para enterrar os nossos mortos —
Por isso temos braços longos para os adeuses
Mãos para colher o que foi dado
Dedos para cavar a terra.
Assim será nossa vida:
Uma tarde sempre a esquecer
Uma estrela a se apagar na treva
Um caminho entre dois túmulos —
Por isso precisamos velar
Falar baixo, pisar leve, ver
A noite dormir em silêncio.
Não há muito o que dizer:
Uma canção sobre um berço
Um verso, talvez de amor
Uma prece por quem se vai —
Mas que essa hora não esqueça
E por ela os nossos corações
Se deixem, graves e simples.
Pois para isso fomos feitos:
Para a esperança no milagre
Para a participação da poesia
Para ver a face da morte —
De repente nunca mais esperaremos...
Hoje a noite é jovem; da morte, apenas
Nascemos, imensamente.


Vinicius de Moraes



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07 dezembro, 2009

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Oxalá pudéssemos meter o espírito de natal em jarros e abrir um jarro em cada mês do ano.

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15 novembro, 2009

A Casa

A CASA

A casa senta-se no alto da encosta. Nas paredes pintadas de branco velho, as sombras do dia enroscam-se nas arestas boleadas. Há um silêncio de memórias. Uma janela aberta sobre um jardim de folhas verdes. Uma cabeça que se mexe por entre as cortinas. Um vidro bafejado de alentos. Uma aragem que perpassa e abana a portada. Desliza suave e intermitente contra a parede. Bate o compasso do tempo. O som percute na velha tília de folhas doces. Uma onda de perfume afaga-a. Adoça-lhe o olhar, aquilata-lhe as memórias, contorna-lhe os segredos.

A casa é o livro.

As paredes são a capa, o interior as páginas. Não são escritas numa caligrafia miúda ou dançante, mas sim impregnadas de imagens diluídas nas paredes ou desenhadas na poalha das horas. E as janelas de geometria perfeita reflectem a elipse do passado feito presente.

As páginas do livro movimentam-se ao sopro das memórias. A página rasgou-se naquele. Janeiro de 1975.Um dia húmido e cinzentão. Sem a luz quente do dia. Um dia de Inverno tosco. Foi naquele dia que Maria morreu. Maria da casa branca no alto da colina.

Cá em baixo, no vale, houve quem visse a casa encolher-se. Recolhimento, breve de dor que logo se recompôs. No seu interior mais uma história foi escrita. O livro fechou-se naquele capítulo. Um pequeno conto. Ou uma vida contada? Simples trocadilho? Talvez. Maria foi a personagem mais marcante das paredes daquela casa no alto da colina. A casa viu-a nascer, crescer e morrer.

Nem sempre a viu viver. Maria partiu durante muitos anos. E a casa continuou no seu ritmo. Ao respirar escreveu as suas páginas. As gerações foram indo e vindo e ela alentou quando se amaram, nasceram, cresceram e morreram. Recorda todos os rostos, guarda todos os sorrisos. Uns mais do que outros. Há sempre um que fica e outro que se desvanece mais. Não por falta de espaço mas sim, por falta de emoção. Quatro gerações povoaram os espaços. Os nomes repetiram-se, as fisionomias adensaram-se ou aligeiraram-se de acordo com os genes herdados, porém a marca subsistiu, o estigma diriam, a mancha vermelha escondida sob os cabelos, ali mesmo no inicio da nuca. Pertenciam à casa.

De todos os seus filhos, Maria foi sem dúvida a eleita. A casa escolheu-a. Maria também escolheu a casa. Uma reciprocidade de emoções casadas na razão. Viver para além da memória.

Maria cresceu como toda a gente.

Jeito calado e olhar penetrante. Estava sempre no seu lugar, sem ali estar. Escutava mais do que falava. Fez do silêncio as palavras por dizer. Tragou as respostas desfazendo-as em matéria acre que a queimavam. As achas que alimentaram a sua adolescência. Mas sorria deslavada. Lá por dentro também não ria, não sabia, a seriedade tinha-a tomado muito cedo, no entanto havia um repicar de algo indefinível, um constante ruído, uma nota dissonante. Algo que cresceu na proporção do tempo, que se maturou, que se agigantou. A sua ironia.

Ser irónico não é acessório é antes atributo, e se o é, logo, não é, nem pode ser nato. Em Maria foi a casa que lhe fez crescer o atributo. E a ironia tomou-a.

Tornou-se cáustica, quase truculenta, depois amaciou. Controlou-se e distendeu-se, floresceu como se fosse canteiro em tempo de Primavera. Apossou-se do seu ego e tornou-se diletante.

Maria percorreu a estrada dos adultos entre dúvidas e progressos. Fez o seu trajecto por entre rectas vazias e curvas apertadas. Derrapou, contorceu-se, embateu mas sobreviveu. A estrada do mundo é uma viela apertada, escorregadia em manhã de chuva, mas inexplicavelmente apetecível quando vista em postal. No coruchéu do seu mundo, Maria viu como os seres se amarrotavam na busca de um lugar ao sol, como se anulavam, amesquinhavam, se prostituíam como lutavam pela glória inglória do nada. Maria aí sorria. Não sorriso da alma, mas da ironia. A sua ironia fê-la sobreviver. Poucos se aperceberam. A ironia é um quase estado de graça, que poucos provam. A graça de aquiescer dizendo não, é algo de paradoxalmente inteligente. Um dom. Maria nasceu e cresceu com o dom, todavia só muito tarde o descobriu. Por isso a sua vida teve duas fases distintas. A de Maria recalcitrante, sempre ou quase sempre zangada com o mundo. Maria descrente no seu próximo, Maria lutando por ideais que aos outros serviam somente de chavões momentâneos de interesse, ou pior, de pequenos nichos de importância. Maria revoltada, incrédula de si, sentindo-se preterida, mal aproveitada. Maria de quarenta anos.

Maria simpática e agridoce. Maria dos cinquenta. Maria complacente e serena dos sessenta. Maria risonha de doce ironia e felicidade luminosa no descer da escada da vida. Maria sábia nos seus oitenta.

Naquele Janeiro cinzentão, Maria finalmente descansou a sua ironia. Fechou os olhos. Partiu. Nos canteiros as camélias brancas ousaram chorar o dia. Apareceram perladas de gotículas sem ter chovido. Talvez já saudade ou tristeza e porque não? Quem sabe explicar os mistérios da terra? Quem?

Uma mão firme colheu flores e ajeitou as jarras. Flores brancas para Maria. Camélias doces. A casa tremeu. A casa amava a sua Maria, talvez mais do que qualquer outro filho seu. Mas Maria nunca o soube. As tais palavras, sentires e afectos que ficam por dizer, por mostrar e por espalhar.

Maria, hoje, pendura-se num na parede do salão. Um olhar penetrante, luminoso, bufão contrastando com uma boca séria demais quase imposta, traço que o artista captou em momento de pose convencional. Quem se senta junto da parede no velho cadeirão rosado, naquele ângulo de luz macia, vê reflectir na tela uma luminosidade que lhe desnuda a face tecendo-lhe no olhar uma centelha por demais brilhante. Algo de tão perene e vivo que chega a doer.

Encolho-me e baixo a cabeça. Porém, de novo sou impelida para aquele rosto, para o olhar negro. Uma vez mais a centelha. Quer dizer-me algo, penso. Impossível riposta a razão. Algo me empurra, decidida enfrento o quadro. Os meus olhos marejam-se. O magnetismo está ali. Eterno, envolvente.

Maria sorri-me, ironicamente penso. Abano a cabeça. Revolvo-me. Acordo da minha letargia. Levanto-me. A minha cabeça lateja, mas estou calma. Percepciono uma força, uma firmeza que me distingue. Vejo o mundo, o meu mundo real nem bom nem mau. Uma ironia!

Rio, rio. Os outros olham. Sorrindo junto-me a eles.

Quem sou? Maria!




Madama Butterfly (From the film Fatal Attraction) - Giacomo Puccini

07 novembro, 2009



A consciência é muito bem educada. Deixa logo de falar com aqueles que não querem escutar o que ela tem a dizer.
(Samuel Butler)

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