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Alguém que ama a vida e odeia as injustiças

22 setembro, 2009

Ponto de Orvalho

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Ponto de Orvalho

Nem se chega a saber como
um inusitado sorriso,
um volver de olhos doentes,
um caminhar indeciso
e cego por entre as gentes,
chamam a si, aglutinam,
essa dor que anda suspensa
(e é dor de toda a maneira)
como o vapor se condensa
sobre núcleos de poeira.
É essa angústia latente
boiando no ar parado
como um trovão iminente,
que em muda voz se pressente
num simples olhar trocado.
Essa angústia universal,
esse humano desespero,
revela-se num sinal,
numa ferida natural
que rói com lento exagero.
Não deita sangue nem pus,
não se mede nem se pesa,
não diz, não chora, não reza,
não se explica nem traduz.
A gente chega, respira,
olha, sorri, cumprimenta,
fala do frio que apoquenta
ou do suor que transpira,
e pronto, sem saber como,
inútil, seco, vazio,
cai na penumbra do rio,
emerge, bóia, soçobra,
fácil e desinteressado
como um papel que se dobra
por onde já foi dobrado.

António Gedeão
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12 setembro, 2009

Em Setembro

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Em Setembro.

Vinham não se sabe de onde. Vinham trazidas pelo vento, novelos de algodão mal embrulhados que, se sentavam no ar, olhando de cima para baixo, à espera não se sabe bem de quê.

Saber, sabia-se, mas esperava-se. Esperava-se então pelos sinais.

Sinais de Setembro.

Entretanto a neblina avolumava-se nas manhãs por acordar, porém displicente esvaía-se logo que o Rei se punha a circular. O vento, esse, porque era traiçoeiro bufava de vez enquando, de mansinho, mas lá ia despindo uma folha aqui, outra ali, ou pior, simplesmente sugando-lhes o resto de seiva. E a terra cobria-se de amarelo de despedida.

Depois, a varinha mágica estremecia e as cores rebentavam de ser. Um esplendor. Uma paleta. Nas árvores, pelos montes ou nos bardos, o vermelho e o rosa velho, amarelo e o laranja, o grená casado com o ouro velho e o verde amarfanhado. Que panóplia! O olhar guloso bebia-as compulsivamente, tal como o bêbado sorve o líquido. Os sentidos acalmavam, por instantes. Em frente no monte que vestia a cidade, a urze tomara tom. Ao longe parecia açafrão. Aquele amarelo bebido de sol da tarde aquecia os olhos. Um aboboral maduro, assim era os amarelos espargidos na terra amornada de luz.

Liquefeitos os sons do vento evocavam a dádiva do tempo, o presente. O espírito jazia ali mesmo na dobra, entre o antes e o depois, soltando-se na despedida e acenando à chegada.

Verão e Outono.

Sol e neblina.

Riso e sorriso.

Respirava-se o ar e bebiam-se os primeiros pingos de chuva. Refrescava-se. Exauridos os cravos-da-índia, amarelos, vermelhos e castanhos cujo odor forte se desprendia no canto do jardim, acordavam da letargia que os tomara e multiplicavam-se numa rapidez apressada. E no dia seguinte já sorriam alegremente. Nas árvores, os figos maduros e leitosos piscavam matreiros o olho às mãos, que os procuravam.

Oferenda mélica entreaberta em gomos amarelos rosados.

Feneciam as folhas. A despedida.

Letargia. Segredo.

Em Setembro.



Aranjuez Mon Amour - Gheorghe Zamfir
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09 setembro, 2009

Sapatos Vermelhos



Sapatos Vermelhos

Olha de um lado para o outro. Não vê, porém olha. O hábito.

Na estrada de asfalto ruço os carros passam, apitam, contorcem-se e deslizam. Chamam-lhe trânsito.

Ela olha. De um lado para outro. Pára mesmo junto á orla do passeio. Na quebra entre a estrada pintada de riscas brancas e a pedra polida. A biqueira dos sapatos vermelhos oscila no ar. O salto prende-se na fenda entre os cubos de basalto, mesmo na ponta da estrela que, azouga o passeio.

Puxa. E puxa de novo. Solta-se, porém a capa ficou. O salto fino ficou despido.

Olha o semáforo. Está verde. Atravessa. O passeio de calcário em ondas de basalto estende-se à sua frente. Percorre-o apressada.

As buzinas mais o bruaá dos carros retumbam memo ao seu lado. A cantiga da cidade. O Retorno. Setembro.

Estuga o passo, porque o tempo urge. Tem que andar mais um bom par de metros.

Sob o cotovelo despido, aperta uma pasta azul. A tiracolo a mala que subtilmente lhe vai dando pancadinhas no côncavo da cintura. A bolsa é vermelha como os sapatos. Os sapatos que começa a arrastar. Os pés estão moídos, apertados e suados.

O dia ainda vai a meio.

Decidida pisa com força. Mais um passo e um carro que passa. O correr escanzelado de vidas.

E ela que tem que caminhar, e o sol quente a apertar. Os sapatos a moerem-lhe os dedos, os calcanhares, a vontade.

Ai a cidade!

Mais uma rua, uma passadeira e um parquezinho, daqueles escondidos, mas tão verdes e sossegados. Ali mesmo, do outro lado da avenida, onde os carros correm em linha recta no asfalto pegajoso do calor. Mas ali sob a sombra do choupo, um banco vazio descansa sereno. Fecha os olhos. Mentalmente vê-se sentada soltando os pés dos calabouços vermelhos.

E se fosse? Ninguém saberia.

Olha por cima do ombro num trejeito inconsciente. Ninguém a olha e todos a vêm. É assim na cidade. Olha-se sem se ver. Desvia-se.

Na pequena alameda os canteiros triangulares espreitam meio assustados os sapatos vermelhos. E as canas da índia vestidas de vermelho ou açafrão espremem-se todas para os ver. Uma novidade.

No banco vermelho senta-se. Tira os pés morenos dos sapatos, remexe os dedos libertando-os e graciosamente traça a perna. Um sapato tomba, o outro direito e alinhado arrecada a ponta do pé que se senta no seu calcanhar.

O alívio é grande. De novo olha em redor. Sossego. Para onde foi o barulho, o sol, o fumo?

Bah, que importa. Que bem se está ali! Espreguiça-se de forma lenta e deliberada. Sorri.

Uma brisa e um abanar de folhas fá-la acordar para o tempo. Olha o pulso e pensa. “Tenho que ir. Já tenho os pés mais aliviados”

Calça os sapatos. Levanta-se. Pega na pasta. Coloca a mala ao ombro. Olha em frente por entre o arvoredo.

Os sapatos vermelhos calcam a alameda. Há de novo um murmúrio nos canteiros. A balada antes do sono. Visão quente dos últimos dias de luz. Suspiram os canteiros que se arrecadam em slow motion.

A cidade surge crua e amarela aos seus olhos. A luz violenta da tarde ofusca-lhe o olhar. Nem os óculos a protegem. A canícula envolve-a numa onda. Gotas perlam-lhe o pescoço empapando os cabelos negros.

-Maldita cidade! Que calor! Pensa.

Desce o olhar. Tem que atravessar. De novo junto ao semáforo os sapatos vermelhos equilibram-se nos seus saltos agulhados. A biqueira já não oscila, calca pesadamente o traço primeiro da passadeira. Quase se arredondou. A transpiração e o palmilhar afearam-na.

Sapatos vermelhos.

Entra no edifício. Sobe no elevador. Abre a porta. Atira-se para a cadeira. Joga no ar os sapatos.

Depois, poisa a pasta, a mala. Despe a saia e a blusa. Veste a bata. Pega na esfregona e no balde vermelho.

No chão a água vestida de espuma refresca-lhe os pés. Murmura:

-Livre!

Do outro lado, abocanhados no chão os sapatos vermelhos gotejam o peso da caminhada




PEEPING TOM Theme -- Brian Easdale __ 1959 (Michael Powell, UK) -





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28 agosto, 2009

Cálice

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Cálice

Um vestidinho branco. Umas fitas azuis. Uns sapatos brilhantes que teimam em baloiçar nuns pés maravilhados pela vaidade. Um rosto cândido. Uns olhos cor do mar saltitando entre um narizito meio arrebitado. Menina.

Levanta-se. De mãos em prece, olha de viés. As campainhas já tocaram. É tempo de comungar. Direitinha e serena, a menina pisa com os sapatos novos o chão gasto da igreja. Sorve o cheiro das velas que mareia o ar, mais as flores, mais as orações. Tudo. E a menina de vestidinho branco caminha leve e serena de mãos em prece. Enlevo de emoção.

Por entre os vitrais bailam os raios, que logo se escoam em feixes azuis, vermelhos e amarelos, quais tochas de farol alumiando as almas nos corpos estáticos Já no altar trajado de branco, o cálice refulge, a menina olha, pestaneja, vai segura, ajoelha então. No olhar azul há devoção. Ergue-o para o alto em cântico de inocência.

A menina freme.

O vestidinho branco espraia a saia no sangue dos degraus. Vermelho veludo. Entreabre os lábios doces. Toma Cristo. Suave, suavemente plasma-o na língua. A saliva envolve-o. Temerosa deglute o Senhor.

Corpo de Cristo

A menina recolhe-se.

Cá fora os sinos repicam por entre o aguado da manhã. O sol recatado desembrulha a luz num sorriso imenso num céu trémulo de intenção.

Hoje menina, amanhã…será.

Na viela esconsa de luz e podre de sentir, a mulher aperta em trejeito os lábios vermelhos túrgidos de baton. O passeio suporta-lhe o escambo carnal.

A cabeleira fulva de raiz negra caída em desatino pelas costas, deixa escapar mais uma madeixa tapando um olho azul macerado de negro. A tinta esboroada de uma lágrima rolada. Há crueza no rosto pintado em alarido, há lascívia num corpo que suspira agoniado de sexo. Há um distanciamento no olhar, há premência de gestos.

Mulher.

Acena erguendo a mão. As unhas vermelhas lembram o sangue. Corpo de Cristo. Corpo de mulher. Cálice exaurido.

E sorve apressada. O Homem e a luxúria. A premência. O vermelho do momento. E engole, e deglute, e traga. Solavancos do corpo. Átimos de vida. Fusão de ser e não ter. A venda.

Mais um. Deita as mãos às entranhas. Corpo de Mulher aberto. Corpo do Senhor em Dor.

Amanhã será. Hoje mulher.

A luz amortalha-se por detrás da janela, ali junto das camas brancas. Três, apenas. No meio a mulher, a menina, ou a menina e a mulher?

Exangue, vazia, saqueada resvala o gesto num requebro de vida. Ali, a prece não alimenta, o ódio não acalenta. Ali, a vida esvai-se em cada suspiro. E a língua rola seca e cortada nuns lábios embebidos de pústulas. O ar que se some, o calor que abafa. O mundo que se acoita na tempestade de um corpo que se senta já nos degraus da morte. Do outro lado, para além do tabique dos sentidos jaz amortecida a fé, outrora menina inocente.

O dia apaga-se no quadrado de vidro por detrás das camas brancas. A luz, clarão branco, inunda a face da Mulher que veste o olhar de um azul avassalador e o poisa nos outros rostos que debruçados a perscrutam mórbidos de interrogação.

Não sorri, seráfica ergue lenta, dolorosa e devotamente as mãos. Em prece entrega o corpo aguilhoado.

Corpo de Cristo. Ámen.





Lacrimosa - Mozart


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