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02 outubro, 2008

Yassin

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Yassin

Yassin, de cócoras, sobre as suas pernas magras, perscruta o horizonte. Na mão a vara, símbolo de pastor, gira lentamente golpeando o vento. Já o sol vai alto. É hora de descanso. As cabras, dispersas por entre a secura das areias e das pedras, esgravatam o solo árido, na procura dos resquícios de erva quiçá cactos, que por ali existiram. O gado é magro e escuro. O balir é esparso de acordo com o alimento. Há que ser parco nos sons e nas atitudes. O silêncio toma o lugar. O rosto de Yassin sobressai da túnica amarelada, que a luz inclemente do sol torna quase alva, o keffiyeh protege-lhe a cabeça. É esquálido na estatura e no porte. O olhar é uma avelã madura. O nariz afilado sai por entre as rugas vincadas que dão ao rosto e ao pescoço as pregas da idade. Os zigomas são vincados, os lábios um traço fino de tonalidade diferente do mate escuro do rosto. As mãos esguias, descarnadas de dedos afilados que se abrem em palma como se tentassem guardar para si um punhado de coisa nenhuma. As unhas são escuras, rasgadas em bicos sujos de suor e terra. Yassin é um chleub. O orgulho corre-lhe nas veias A sua estirpe é altaneira. Os homens mandam, e as mulheres obedecem. São machos. O macho ordena. Assim foi criado. Assim a aldeia viveu. Assim o mundo girou até hoje. Yassin é alto negro de pele e cabelo. Um chleub distingue-se dos outros pelo seu porte, pela sua cor, pela sua voz de comando. As suas ovelhas e cabras apenas lhe obedecem. Naima, a sua mulher, que tem a mania de meter o nariz em tudo, já desistiu de as guardar. Elas não lhe conhecem a voz. Não possui aquele requebro de comando que o homem tem. E os animais são particularmente sensíveis, percebem e não obedecem. É aí que Naima lhe faz a cabeça em água. Com os seus constantes resmungos e arremessos. Naima dirige a casa, que é o seu mundo. Não abre a mão de nada. Naima não é doce., suave e envolvente. Não. Nada disso. É imperiosa, altiva e ríspida. Controla a alma da casa. A sua figura coaduna-se ao seu temperamento. Seca, destituída de carnes, pregueada e lesta. Governa de mão fechada, ele Yassin, mais sete filhos, dois cunhados e a sogra. Que Alá a conserve. Não é fácil para um homem ter que sustentar tanta gente e possuir paz de alma. Nisso a sua Naima tem a mais espinhosa das tarefas, a de olear o reino de casa.

Yassin ergue-se nas madrugadas quentes de verão, quando o sol espreita lá no fundo da aldeia. Escuta o balir das ovelhas no redil e, já de ouvido alerta, esfrega as janelas do seu rosto, salta da cama sem grande alarido, pois que a seu lado, Naima ressona no seu chiado de vagão enferrujado. Enfia os pés nas babuchas, veste o cirwal, a túnica e enfia a abaia, que por ora o protege do frio, e mais tarde do sol inclemente, pese o seu tarbush já estar na ponta do cajado. A madrugada é ainda gélida, sopra do Djebel Toubkal, o ar frio e acutilante que lava os maus pensamentos. Alá na sua divina sabedoria criou a aragem soprada de gelo da montanha para livrar os corações e as mentes do fogo do dia anterior. Varre as cinzas e deixa o lar pronto para uma nova fornada de actos. Alá é misericordioso, sábio e o seu Senhor. Ergue os braços já no exterior e dá uma rápida olhadela no azul que se veste rápido por cima da sua cabeça. Suspira murmurando: Inch-Ala!

Calcorreando o caminho feita de pedra e areia, Yassin entrega-se aos seus pensamentos, enquanto em fila mais ou menos alinhada, as ovelhas e cabras descem paulatinamente, mordiscando aqui e ali ,consoante as ervas ou cardos se apresentam. Pensa na sua família, na sua casa e no seu bairro. A sua fracção é na região de Tafilalet. A terra das tamareiras. Em breve será a festa das tâmaras de Erfoud. Ele sabe que a data tão temida está aí. Suspira. Não admira que Naima ande numa reviravolta, que os nervos estejam em franja, que ande toda eriçada num vai-que-vem sem descanso. O casamento de Aixa, a filha mais velha, está a chegar.

Yassin coça a cabeça, abana-a e, instintivamente puxa os bolsos da sua túnica, vira-os e revira-os. Vazios. Sempre. Por mais que labute estão sempre nus como o deserto. A família consome-o. Este ano é particularmente difícil. As despesas acrescidas pelo casamento que se avizinha, obrigaram-no a vender mais ovelhas. O seu rebanho diminuíra a olhos vistos. As tamareiras, graças a Alá produziram bem, e até deitou mão das rosas que vestem o vale, indo até Erfoud fazer negócio. Mais um tostão, isto é mais dirhams que conseguiu pôr na caixa de metal. Está mais de meia. Espera que chegue. Mas depois da festa, o Inverno ia ser muito duro. Tem que gastar muita moeda, mas não vai ficar mal. Tem que comprar o traje, a prata, a comida para a boda. E ainda o dote. Pai que tem filhas tem sempre esse peso. Mas Aixa merece. Boa rapariga, a sua filha. Doce e trabalhadora. O noivo, primo direito, como manda a tradição leva um tesouro. As tradições são para se cumprir. O rapaz vive em Rabat, não está lá muito contente com o casamento. É macho estudado. Yassin sabe que o futuro genro -sobrinho não vai lá muito incendiado para o casamento. É filho da sua irmã Razhi que vive em Rabat. O marido é comerciante de peles. Vivem bem. A irmã só teve dois rapazes. Nunca percebeu porquê. Alá na sua infinita sabedoria saberá a razão. Mas a sabedoria de Alá estendeu-se à sua Naima que soube mexer os cordelinhos nesta próxima aliança familiar. A Casa será mantida. A sua autoridade e decisão de pai serão cumpridas. A família descansa na sua tradição. Assim será até ao fim dos tempos.

Encontra-se no vale, quase perto do pequeno oásis de Fuguig. Este pequeno recanto, a oeste das montanhas, é o paraíso dos seus olhos, a delícia do seu espírito. É ali, que no Inverno faz o cultivo das suas terras. É ali que esgravata a terra que o alimenta. O verde exuberante enche-lhe sempre a alma conquanto o amarelo árido circundante lhe seca o espírito. Ali crescem a oliveira, o sobreiro, o argão e o lentisco. A palmeira é a rainha. Que bom é, quando o sol se põe, e se senta respirando a brisa que vem embalada pelas suas folhas. Depois é altura da isha a última oração do dia. É ali mesmo que a faz, em profunda comunhão com a terra, esta terra que ama e o viu nascer, que frutifica sempre que a semente do amor lhe é lançada.

Senta-se, respira fundo. Puxa do odre e bebe umas gotas. Um balido e um bafo morno no pescoço fá-lo virar. Duas ovelhas enroscadas na areia descansam sob a luz violenta que já beija o dia. De cócoras Yassin observa-as. E começa o seu assobiar dolente que aprendera com o avô. Deixa as mãos pendentes num descanso de séculos. Uma cabra pequenina negra e peluda coloca-se de permeio e suavemente lambe-lhe o rosto soltando um balido meigo. Yassin sorri dizendo: "Chuaiê, Chuaiêe num gesto de homem puro enterra o rosto no pelo do animal aspirando-lhe a sobrevivência dos pobres.

Depois, depois, Yassin inclina-se, os joelhos sentem o respirar da vida na terra morna, seca e esgravatada de vento. Ergue as mãos, dobra o tronco, recolhe a alma. Ora.

Chuaiê-.devagar.


.Al Baladi - Mario Kirlis
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29 setembro, 2008

Lágrimas Doces



Lágrimas Doces

Cachos loiros, redondos, pingados. Cachos que bebem o sol, mais a terra. Cachos doces de Setembro. Flores de uma terra acre seca, de socalcos redesenhados, bagos translúcidos de néctar. Cachos sombreados de ouro rubro, pétalas sôfregas nos bardos prenhes de doçura. Linhas de pó e xisto pontilhadas de malmequeres minúsculos no seu infindável bem-me-quer, mal-me-quer que o vento trás e leva e a chuva arrasta e semeia. Parras vestidas de sangue rubro e mel doce. Folhas riscadas em seiva quente, que tapam o tesouro ou o desventram, no tempo do colher. Terra embalada no leito macio das águas dolentes, saciando, nos seus requebros, as raízes que se estendem de socalco em socalco.

Berço de sonho e neblina do passado, alforge de riqueza e labuta dorida de corpos curvados pelo peso da esperança. Pão de cada dia trincado no vórtice do amanhã. Xisto erguido em socalcos de néctar. Bagos brancos, bagos vermelhos. Risos e lágrimas. Branco e tinto. Ouro velho, ouro novo. Doçura enrolada de beiços em danças rodadas de sons e cantares. Doce e amargo. Vinho e luta. Terra e pedra. Água e murmúrio. Poesia da manhã embalada nas asas do vento. Vento espargido pelo som ora das matinas, ora das vésperas. E o tempo esconde-se no monte vestindo o socalco de noite. E as uvas repousam. Adoçam-se na noite. Oferecem-se no dia. Pisam-se nas tardes. Maturam-se na noite e renascem em cada lágrima de tempo fecundo.

.Elgar Sonata for Violin and Pi - Maxim Vengerov
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" Liberdade é pouco. O que eu desejo ainda não tem nome."
(Perto do Coração Selvagem)

.Elgar Sonata for Violin and Pi - Maxim Vengerov

23 setembro, 2008



Wagner: Lohengrin (1.Aufzug) - Orchesterstücke
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Tríptico de olhares

Uma porta aberta, um cortinado que esvoaça em movimento ténue, um céu azul carregado de promessas de luz, um arabesco subtil que desenha a onda verde do arroz. Um quadro, ou antes, uma visão feliz. No interior, ainda despido de raios de sol, perpassa o som amortecido do novo dia. A vida refulge lentamente nesta manhã de luz. Um corpo, qual linha quebrada, ergue-se por entre o colorido dos lençóis. A massa de cabelos cor de chocolate encobre o rosto, que de pronto livre, aponta para o ar, cumprimentando-o. Roda o corpo apoiando as palmas das mãos. Gesto maquinal. Depois, os pés calçam o chão e levanta-se. É franzina, uma silhueta quase de criança. Sem sobressalto na lentidão própria de quem conhece as horas, Frederica dirige-se para a porta da varanda do seu quarto. Inspira o ar, aquele cheiro a água e lodo, onde as raízes do arroz se vivificam. O olhar perde-se no horizonte. Para além do verde, onde o azul é apenas uma linha, está o mar. As pupilas verdes dilatam-se como se quisessem albergar nelas o outro lado do mundo , o de aguada azul-verde. Suspira e calmamente retrocede. Porém, como que uma voz a chamasse, volta-se de novo, e olha ao longe. Um som possante, estridente, um grito cavo, propalado no vento, fá-la vasculhar o tempo. A viagem da memória invade-a. …

Um subir e descer agoniado, ora acima, ora abaixo. Um bater constante de corpos, um escorregar, um lacerar de carnes sempre que as vagas a sujeitavam ao chão, às paredes, aos objectos. Os golpes dilatados, o sangue quente escorregando em fios vermelhos, o sal que a queimava em bofetadas de água. Um inferno líquido. Não de chamas, mas de vagas. A luta. A esperança. Na loucura da vida procurara fugir à morte e conseguira-o. Trémula encosta-se ao ferro do varandim. Agarra-o com força. As nós dos dedos pintam-se se da cal branca dos tendões hirtos. Uma dor fina, aguda revolve-lhe o peito. Instintivamente olha o cotovelo esquerdo. A cicatriz vertical é testemunha do rasgar da carne, quando a vaga, mais forte, ainda do que as anteriores, a cuspiu para o exterior, fazendo-a emergir da água para o monte de cordame que jazia junto à amurada. A sua carne arrancada como se fora pele. A dor lancinante, rapidamente ultrapassada por uma maior, quando a água salgada lhe banhou a ferida. Desmaiou. Mas o tempo foi curto. Logo acordou, ainda mais exausta, exangue quiçá nefelibata. Hora após hora, num imenso tropel de agonia, o barco vogou ao sabor da tempestade. Os raios coscurantes cortavam a tapeçaria nua de estrelas. Havia o ribombar do trovão furibundo, o bater possante das ondas, estalando-se contra o barco como desejassem esbofetear as vidas no seu interior. Frederica recorda, o comungar uníssono dos elementos, a obstrução permanente do mar encolerizado ao pequeno vapor, caixa-de-noz à deriva rebolando nos alcatruzes das águas, as ondas. Fora nessa variável de semi-tempo, perdida dentro do grande tempo, que o pai fora varrido pelas águas em sibilo avassalador de fúria. Gritos, uivos dolorosos, arrancados à alma numa fusão de dor e impotência, lágrimas quentes de sal misturando-se com o outro que a abrasava, o erguer de braços, mãos em prece, exponente de fé e clemência. Porém houve surdez, houve esquecimento. Houve desdém. E o mar engoliu-o, em boca vazia de dentes, em golfada prenhe de desejo. Logo, recorda, tudo serenou. Como se as entranhas liquidas se tivessem saciado. Sózinha, sofrendo o ostracismo final dos elementos, Frederica pouco mais relembra. O medo, a dor, o cansaço venceram-na.

Frederica recolhe a lembrança. Entra no quarto. A dança da cortina é compasso de sentir. Volta-se. Olha o quadro na parede em frente. Um rosto, masculino. Um olhar, uma certeza. Um passado, um degrau erodido de passos perdidos. Na tela, o pai, olha-a, sem o distanciamento da sombra que o tempo suportou. Os olhos possuem a luz envolvente do amor. Há um misto de irreverência e ternura como se pretendesse minimizar o caos que o arrebatara para sempre. É o conselheiro mudo das suas manhãs. Frederica sorri-lhe, enviando-lhe um beijo na ponta dos dedos. É assim todos os dias. Uma conversa de sorrisos. O dia recomeça no seu casulo de vivências. Num gesto simples rebola o olhar, gira a cabeça, entrelaça os dedos nos cabelos longos, castanhos e brilhantes, qual moldura vertical de um rosto vivo, onde a vulnerabilidade do passado tem sempre a cancela semi-aberta. Afastar o pesadelo daquela noite sem luar, onde nem o farol da fé brilhou, é método cartesiano de vontade. Já no exterior, no jardim voltado para os arrozais, descalça, pisa a relva onde o orvalho amaciou a dureza da erva, e deu licença à terra húmida para beijar as flores gráceis, ainda meio estremunhadas que limpam os olhos da aurora já recolhida em vitrais de rosácea iridescentes. Inala o ar que lhe traz o odor salgado da sua vida. O verde espraia-se na sua frente. Em breve o grão germinara. Bago branco pespontando na planície viçosa. No horizonte, o limite entre o céu e a terra torna-se difuso. Há uma mistura de tons como se o pastel se tivesse alastrado de uma tela para outra, tomando-lhe a cor. O quadro do tempo azul-verde parece inundar o olhar, e beijar a alma do dia. A beleza da tela, ante os seus olhos, é de tal forma pura e serena que lhe fere os sentidos. E as lágrimas saltam. Duas. Cristais rasgados da saudade, de pena e de solidão. Frederica compara as telas da sua vida. A do passado, forte, azul, branca, vermelha, ladra avara do deu mundo de afectos. A presente, perfeita, verde, branca, azul, dourada, um retalho do seu país em tríptico de uma vida quebrada. A sua.

Logo, quando o sol se puser, o arrozal enterrar-se-á nas suas raízes, tal com ela, no sono das suas memórias e a água deslizará, uma vez mais, nas margens da noite até ao acordar da vida.


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17 setembro, 2008

Zuri me Leva...


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Zuri me leva!

- Zuri me leva, me leva. Maínha não gosta de Thembi, não gosta, não .Maínha matou a Bunmi de Thembi, puquê Zuri, puquê? Bunmi era velhinha e boínha. Bunmi era amiga de mim. Puquê Zuri? Maínha não é boa, não....
Os soluços são profundos, vêm da lonjura do pequenino coração. Thembi leva as mãozinhas papudas aos olhos salpicados de lágrimas . O ranho espreita, a par da baba, que escorre pelos cantos da boquita prenhe de infância. Enterra a tristeza no corpo de Zuri, o irmão. A camisa, farrapo branco, descai-lhe pelo corpo roliço, cor de chocolate. Nas pernas e pés, a areia fina e branca cola-se como se fosse lantejoulas do mar. Thembi está muito triste. Mataram a sua Bunmi. E ainda lhe roubaram o casaco castanho de quadrados cor do velho Tamu. Tamu, o coqueiro ou antes o castelo, onde Thembi e Bunmi descansavam depois das grandes cavalgadas pela praia. Tamu sempre desgrenhado, por causa do vento, que soprava do mar azul-verde. Tamu, que quando estava triste, deixava cair sempre uma grande nyembeti verde e pesada, que ele, Thembi abria e bebia com gula. Ah, que bom e depois aquele cansaço redondo que o deixava zonzo. Afinal, Thembi era só um mininho piquinino.E o olho fechava de mansinho e dormia. Bunmi, ali ao lado, quietinha, com a pata direita mesmo encostadinha à bochecha como numa espécie de cafuné. Como Thembi gostava. Sentia que o azul de cima e o de baixo entravam assim no seu coraçãozinho, enchiam-no de lindeza dando-lhe uma quentura que o fazia feliz. Depois, quando a tarde entreabria a porta à noite, e a lengalenga dos pescadores começava a ouvir-se vinda do mar, bem como o chapinhar dos remos na água lisa, numa canção de despedida ao espírito do azul-verde, que se ía deitar. Thembi abraçava a sua Bunmi, deixava-a olhar bem para ele, e corria para a pequena floresta logo depois da praia. Thembi suspira e de novo as lágrimas espreitam.
Thembi, pedaço de chocolate doce, recorda aquele outro dia, quando ele e Bunmi brincavam nas águas lisas espelhadas de azul-verde, e, de repente, viram “a mulher peixe”. Bunmi, rápida, nadou para perto dele. Mulher peixe é sereia. E sereia encanta. Não fosse ela roubar o seu pedacinho de chocolate quiçá enfeitiçá-lo. Tartaruga tem muitos anos de mundo- água. Viu coisas que gente nem sonha. O paraíso, lá no fundo é de cores vivas, mais lindas que as de cá, mas tem também muitos perigos. E Bunmi sabe o que a “mulher-peixe” já fez aos homens e aos outros meninos quase homens. Não vá ela, desta vez, querer um minino mesmo. Thembi olha para os cabelos verdes e longos da sereia, os olhos são esquisitos, têm o mundo de coral neles, agarram a alma da gente. O minino sente, sente que a sereia o puxa, puxa. Está já rodando o corpinho na sua direcção, atraído pelos cabelos, pelos olhos, pelos seios verdes, cheios e redondos que lhe lembram os de maínha, assim soltos e opulentos. Lambe os beiços pensando no alimento, e mais um pé que mexe, a água faz ondinhas finas, devagarinho. Bunmi, que também de mansinho se tinha aproximado, dá-lhe uma vigorosa patada que o deixa meio zonzo. O encanto quebrou. A mulher-peixe gemendo volta a mergulhar e Thembi fica ali, zonzo, olhando no vazio. O que passou? Bunmi tão boínha bateu nele? O que passou? Depois Bunmi empurrou-o para o areal. Naquele dia não houve brincadeira. Tamu, o castelo ficou vazio, naquela tarde esquisita. Thembi foi para casa. Maínha estranhou vê-lo assim de cedo. Olhou, remirou mas nada disse, quando o viu deitar-se na esteira, e dormir toda a tarde. Maínha desgostava de Bunmi. Maínha enciumava-se da amiga, Thembi sabia. Estava muito quente, lembra, e doía a cabeça. O dia recolheu-se quando sol se deitou no mar. A noite calçou as estrelas e os sonhos vieram brincar na esteira de Thembi lambuzando-o de centelhas doces.
No outro dia, o sol amanheceu dourado na ilha, como todas as manhãs. Ouro líquido derramado no areal branco e nas águas lisas. Thembi saltou da esteira, esfregou os olhitos, coçou a cabeça e chegou-se perto de Maínha que aquecia o mata-bicho. Beberricou o líquido, lambeu o doce no pão, e devagar, devagarinho foi-se escapulindo. Assim que se achou fora da aldeia, desatou numa corrida desenfreada em direcção à praia. Bunmi já o esperava. Não devia ter dormido muito, porque a cabeça estava inquieta, pequenina, rodando de um lado para o outro, e os olhos grandes, redondos, estavam inchados. Bunmi estava em desassossego, sentiu. Ajoelhou-se, pôs os bracitos roliços à volta do pescoço e deitou a cabeça no casaco de quadrados. Assim ficaram ,um longo tempo, ouvindo-se no silêncio do coração.
E Thembi escutou:
“Há muito, muito tempo, quando as tartarugas se passeavam em bandos no azul-verde, e as ostras também vinham brincar com elas numa roda grande, se ouvia as vozes dos peixe-palhaços, dos peixe-anjos e a dança das anémonas e a cor vestia o azul-verde num turbante colorido. Tão lindo. Só quando o peixe-crocodilo vinha, ou o tubarão, é que tudo fugia para se encapotar no muro de coral, bem escondidinhos à espreita. Logo, vinham para cima rindo, outra vez. Era um tempo feliz. Mas um dia, uma sinhôa de nome Bilkis, de um reino de longe, Sabá diziam chamar-se, visitou o Bazaruto. Era bela. A sua pele ébano puro, brilhante, cabelos negros, olhos enormes. Tão bela que as nossas danças e brincadeiras se quedaram ao vê-la. As ostras, meio tontas, abriram a boca e mostraram o seu tesouro. Bilkis ao ver tantas e lindas pérolas, imperiosa, exigiu-as. Ao mar redes e redes foram lançadas, as pobres primas ostras, foram apanhadas, desventradas e depois de roubadas, algumas devolvidas, outras comidas. A raiva tomou conta de nós. E chamámos o espírito do mar. E chamámos o vento, mais a chuva e o trovão. Chamámos toda a noite. Chamámos. E na manhã seguinte quando a bela Bilkis, nua, se veio banhar no azul-verde, os espíritos agarraram-na, amordaçaram-na e levaram-na para o fundo. O castigo foi grande, muito. Já Bunmi era avó, quando viu a nova Bilkis. Já não era bela, já não era mulher, era sereia, era a” mulher peixe.” Desde então ela vem sempre que cheira inocência. Por isso, meu pedacinho de chocolate, por isso eu te bati ontem. Não esqueças nunca: Cucurira chimunanga, manguana chinowiq , que é como quem diz ,se criares uma árvore com espinhos, amanhã picar-te-ás. “
Thembi recordou tudo isto entre soluços, muita tristeza. De cabeça ainda afundada na barriga de Zuri, o belo, Thembi, o forte, despregou o olho lentamente, e olhou. Viu-a nua, despida do seu belo casaco de quadrados castanhos, que desaparecera. Jazia, ali, entre as pernas dos pescadores mais as de Maínha. Até Tamu deixara que os seus cabelos tapassem o areal, uma espécie de cama para a sua amiga Bunmi. Quis gritar, chorar, berrar. Quis tudo, mas o som não saiu. Ficou mudo, trémulo, assim dorido de sentir. E enquanto a tristeza o tomava, uma voz, aquela que Bunmi fazia ouvir, aquela que vinha do coração e lhe dizia:”Pedacito de chocolate estou no teu coração, sempre. Fecha a boca, os olhos, vês… Sorri… Sorri…”
-Zuri me leva!

Estrella - Kitaro



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