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Alguém que ama a vida e odeia as injustiças

15 outubro, 2007




Bêlaflô

- A va safy va lomo…

Melopeiando e dengando ,Bêlaflô dobra o corpo ,no ritmo compassado dos braços, que esfregam o meio coco seco,no soalho de madeira ,fazendo os círculos de brilho espreitarem. Naquele sobe e desce de canela, toda ela estremece. São os pequenos figos de S. João que saltam no decote meio aberto do vestido de florinhas vermelhas, as coxas esguias dobradas que estremecem, o traseiro duro e bem espetado que dança ritmado. Uma linha divide-lhe as nádegas revelando a nudez de interiores, uma cintura breve, umas as ancas redondas mas esguias, umas pernas compridas e torneadas que terminam nuns pés largos de dedos curtos onde as solas são rosadas e grossas. Está descalça O rosto é oval, risonho, de olhos negros, as narinas são palpitantes como se fora potro em trote, a boca é cheia, sensual em riso de pequenas pérolas brancas., o cabelo em pequenas trancinhas que pespontam no lenço vermelho com dobra e atado em três pontas que lhe tapa a cabeça, mas revela a esbelteza de um pescoço longo. Caem-lhe das orelhas duas argolas quase cobertas de missangas. Faltam os sapatos, coisa que não gosta. Nem sapatos nem cueca. Aperta.

Bêlaflô, moleca flor-fruto de quinze anos, vive e trabalha na casa de patrão Alberto. Quase nascera lá. Lembra dos tempos em que ía à escola e brincava no jardim e no quintal com os mininos mais velhos. Quando a mangueira do quarto da menina Zinha ainda era bem pequenina. Hoje já cobre a varanda e dá fruto. Agorinha, não ligam não, a Bêlaflô. A mãe Rosa bem lhe diz:”- Bêlaflô te enxerga tu és nêguinha os mininos são brancos”

Inda agora viu o minino Carlos entrar em casa, olhou-a de soslaio e foi para o quarto. Nem uma boa tarde…gente assim faz, doer. Morde o lábio inferior, dilata as narinas, ergue-se e suspira. Já acabou, pode ir descansar até à hora do jantar. Foi às compras com a senhora de manhã, arrumou a casa, e agora até ao jantar, descansa. Arruma o coco e o pano no armário, dá uma espreitadela enviesada a mãe Rosa que labuta na roupa.Branco gosta de comer e de tomar banho. Todo o dia é assim. Mãe Rosa bem diz que a casa tresanda de roupa e de sabão. Sai pela porta da cozinha e vai até fundo do quintal, para debaixo da acácia florida de rosa. Linda. Tem perfume doce. Como o ar quente que não mexe, tá calor, mesmo, Janeiro, o mês da quentura e da moleza. Deita-se no chão, abre as pernas, ergue o vestidito ligeiramente, coloca as mãos sob a nuca e vê o céu por entre os ramos da acácia florida. O sol está lá cima mandando a luz forte, pisca e fecha as pálpebras ao brilho, e matreira tenta abri-los lentamente, como que a enganar, mas não consegue, então solta um gorjeio forte e rebola-se na terra. Aquieta-se para aspirar o vento que traz a maresia, e o marulhar das ondas, mesmo do outro lado, da estrada. Nem cinquenta metros a separam da praia. Sabe bem, lá ir, ao fim da tarde, no finzinho da luz forte, quando tudo é rosa e laranja. É quando o dia é mais bonito, e se sente calma, sem aquela coceira que a traz, meia sem jeito. Não sabe bem o que é, vem mesmo de dentro, fica arrepiada e meia tonta. Será maleita, mau-olhado? Mãe Rosa anda de olho nela e está mais áspera. Que coisa! O velho Tião abana a cabeça e diz: -“ Ah Bêlaflô vucê tá flô”. Domingo, o cozinheiro olha-a dengoso, mas não gosta dele, não, é velho. Domingo, negro como ela, inté é bem-parecido, gosta de rir e de tocar a viola feita de lata de azeite vazio. Ao domingo veste a roupa nova e vai gingar com os amigos. É a tarde de folga. Todo o dia está agarrado às panelas e inté usa farda, avental e chapéu, tudo branco. Coisa da senhora, mas se soubesse, que ele, quando tem calor e coceira, mete a colher de pau da panela, na cabeça, coça - coça, e logo mexe o cozinhado. Xi! Põe a mão na boca e sorri faceira nas comissuras dos lábios. Os patrões não sabem tanta coisa! Uma leve aragem murmura entre a folhagem, e fá-la soerguer-se, para espiar a dança dos ramos. Espreguiça-se, senta-se e olha a casa, silenciosa no seu descanso. Parece não ter gente, mas tem. Estão escutando as ideias. É, branco gosta de escutar os pensamentos. Fica calado, sem luz na cara, de olho mortiço e amarelo. Aí fica sempre amarelo, porque a cor foge para as ideias. É quando a casa e o quintal se calam. Os meninos pequenos estão no colégio, a senhora está de livro aberto ou ao telefone, o patrão no escritório, a minina Zinha com os amigos, e o minino Carlos, no quarto. Tá sempre no quarto, inté tem cheiro. As persianas estão corridas, tudo a meia-luz para refrescar. Mas não refresca, não. Calor é calor e só vai com a noite.

Dirige-se para o quartinho dos fundos que partilha com mãe Rosa. Pega no fato de banho, que não veste e na toalha. Vai até à praia refrescar. Cruza o quintal, e sai pelo portão do quintal. O jardim é à frente, e para os patrões, eles usam os fundos. Sai para a rua, atravessa a estrada e ei-la no areal branco ponteado de palmeiras. O Índico, azul, morno e espesso marulha no areal. As sombras da noite já tingem o branco da praia. As palmeiras crescem no entardecer e bolem ligeiramente no verde-escuro das folhas. Está tudo vazio, um barco repousa ainda molhado. Ninguém. Estende a toalha, aninhada à proa, do outro lado, escondida. Despe o vestido e corre para o mar, mergulha-o e inunda-se da sua tepidez fresca. O sal morde-lhe a pele mas sente-se flutuar de leve, de livre de feliz, o corpo vibra no interlúdio de água Á laia de despedida, faz das mãos cutelos e corta as águas em lâminas translúcidas que lhe salpicam os olhos em lágrimas de riso. Corre para o areal junto à proa vazia e deita-se. O ventre tem ritmo de sobe e desce da corrida. Fecha os olhos e abandona-se ao prazer do momento.

Um arrepio de toque percorre-lhe os sentidos, sustem a respiração. Tem coisa aí. Mas os olhos mantêm-se fechados. Está expectante. Os dedos continuam na sua viagem lenta, gulosos, tocam a lisura de veludo e chegam aos seios que se encarrapitam. Tá gostando. Abre um olho e espreita devagarinho, é minino Carlos. Sorri e enrosca-se nele atraindo-o para si com toda a fragrância da sua canela de fêmea em desejo. Ele monta-a sem delongas, rápido em impulsos secos de compasso simples. Bêlaflô ri, ri, seguindo o ritmo esplendorosamente. Carlos levanta-se e olha-a, já em pé murmura: -’és linda, negrinha!”

-Iiii minino Carlos., Bêlaflô gostou, gostou mesmo.

Respiram e olham-se. Ele serenado de desejo, ela saciada de tremuras, uma onda quente que os varreu desaguada no ventre de vida. Agarra no vestido de florinhas vermelhas que dançam a marrabenta do amor e deixa-o descer pelo corpo quente de florido. Flor sobre flor em pau de canela. De novo os personagens da vida têm que ser preenchidos, ela, Bêlaflô nas tarefas de moleca neguinha, ele, Carlos no “minino” de sua mãe e varão de seu pai. Juntos e separados regressam à casa, um pelo portão do jardim, a outra pela porta do quintal. Bêlaflô rápida enfia-se no quartinho e dali na casa de banho. Lava-se sob o duche frio, sente-se zonza e inundada. Veste-se, cueca, bata amarela e sapato. É hora de jantar. Apanha as trancinhas num novelo e coloca o lenço na cabeça. Senhora não deixa que sirva à mesa de cabeça ao léu. Esquisitice…

Já na casa de jantar, observa os patrões e a prole. De soslaio, vai olhando para o “minino Carlos. É bonito. É alto, forte, tem olho claro como o pai ,deve andar pelos vinte. Ela era assim de pequenina ,e ele já era grande. Depois está a estudar no “Puto” há dois anos, só vem a casa no Natal e nas férias de Junho.

-Carlos, eu já comprei a passagem de avião. Na próxima sexta -feira, tu, e a Zinha, embarcais de regresso. O voo é bem cedo. Ouve o patrão dizer.

-Ó pai ,podia ter dito antes, tenho os meus amigos… Zinha que sempre fora bem palavrosa, e explicada, recalcitra logo, revirando os olhos bem à moda da época.

-Pois tem uma semana para se despedir. E depois, sempre quero ver, o que vai fazer este ano, o outro foi para esquecer…Tem o exemplo do seu irmão, veja lá se o segue., senão regressa a casa e acabou-se a Universidade, percebeu?

-Sim, pai. Também…

Pondo ponto final na conversa, o pai dirige a sua atenção, para os mais novos, que sob a toalha se beliscavam.

-Quietos Leninha e Miguel! Ou vão já de castigo para o quarto que depois vou lá!

A calma volta à mesa e Bêlaflô serve o peixe assado, que cheira divinamente. “Domingo tá ficando um bom cozinheiro!” pensa a neguinha.

-Bêlaflô! Acorda! Ouve a voz da senhora…

-Sim, senhô.

-Não sei o que lhe deu hoje. Está meia parva. Faz o favor de me servir, e como deve ser, percebeste?

Rápida, coloca o peixe-dourado com tirinhas de cenoura, as batatinhas redondinhas e o molho no prato da senhora, do patrão e dos meninos. Treme-lhe a mão quando serve o minino Carlos. Ele, calmamente vai roçando -lhe a coxa com o cotovelo... xi que calor! O patrão Alberto olha-a fixamente e ao minino também. Poisa a travessa e vai para a cozinha, onde mãe Rosa e Domingo já lavaram as panelas todas

- Tu tem Flô? – Pergunta mãe Rosa, perscrutando-lhe o semblante e o corpo.

-Ora, nada, mãe Rosa.

A velha nega, não se convence, e olha-a, remira-a e funga. Já viu muita coisa e pressentiu muito mais. Sabe da vida, do que é ser neguinha em casa de patrão. A sua Flô, também não escapou.

Olha a noite, com os olhos vidrados de sonho partido. Foi há tanto tempo, também fora flô, depois o patrão novo enrabichara-se e servira-se dela. Por algum tempo enquanto a pétala não murchou. Logo, fora recambiada para a “terra”. Silvestre fora o homem da sua palhota, até que tinham vindo para a cidade e fora trabalhar para o porto, junto dos barcos, ela, viera para a casa de patrões Lacerda. Um dia, Silvestre fora ter com os antepassados, só ela e Flô ,tinham restado.

A vida era sempre igual. Tinha que arranjar a trouxa e ir embora de volta para a palhota. Era tempo…Flô que não era flô, tinha que arranjar homem e depressa, antes de as chuvas chegarem, antes das águas do mar trazerem as algas de volta, antes do sol dormir mais na terra, antes de a palmeira dobrar no vento. Antes de Flô apanhar o jeito… de branco.






12 outubro, 2007

Outra Vida…


Debruçado sobre a secretária de madeira já bichada de velha, assente sobre um chão de tábuas desbotadas e cinzentas de pó varrido, Lacerda escreve aplicadamente o Deve e Haver da Companhia de Algodão. Os óculos descansam-lhe na ponta do nariz afilado, o rosto está vazio como se a monotonia do serviço lhe roubasse qualquer expressão A cor é pardacenta, amarela e desviada, igual à sala onde se senta. Tudo é mofado, velho e decrépito. A fronte generosa encolhe-se perante o ritmo rabiscado do aparo arranhando o papel grosso em tinta violeta. É um homem ainda jovem. Cabeça farta de cabelos claros puxados atrás no óleo da brilhantina. A camisa branca descansa sob uns suspensórios perdidos no excesso de pano. Entre os cotovelos e os pulsos, vestem-no os manguitos já rasos do coçar da mesa. O olhar, quando erguido é opaco de monótono como se algures o tempo tivesse parado, surge entre círculos azulados de sono e de sonhos desfeitos. Os ombros estão descaídos num abater de comiseração. Nota-se a magreza do corpo longo. Flagela-se no dever da escrita dos números, na dança a dois tempos do comprou e vendeu. Filas alinhadas de desatino.

Lacerda herói de noitadas perdidas e de mulheres já gastas. Intelectual provinciano em roda de amigos dedicados ao brilho da palavra e às artes de palco. Católico convicto mais de dogmas do que de actos, recatado nos gestos, solitário de ternuras, misantropo de sorrisos, orador solto entre amigos, senhor de nariz altivo perante os ignorantes, sorridente entre os ilustrados, cáustico no retorquir, sibilino no argumentar mas jovial no derriço são as características do óleo que lhe fazem o retrato

É terça-feira, de um mês qualquer, num ano já ido. O nosso herói olha para o relógio redondo e amarelado e reflecte nas horas marcadas. Já falta pouco para acabar. Lentamente poisa a caneta de aparo estridente, confere a escrita, passa-lhe o mata-borrão cor-de-rosa já vomitado de azul, fecha o livro comprido de capa negra, tira os manguitos que cuidadosamente coloca na gaveta meio aberta, bate os pés calçados em botina pretas já gastas mas muito bem polidas, a enganar os tempos, arrasta a cadeira no soalho despido, levanta-se, sacode poeiras perdidas nas calças vincadas. Vai ao bengaleiro e retira o casaco que veste, ajeita o nó da gravata, alisa o cabelo num gesto perdido e murmura um até amanhã. Cá fora, o dia já vestiu o capote, e pôs o chapéu preparando-se para a noite que lhe dá o braço. Alberto Lacerda respira fundo. O ar húmido do mês das castanhas dá-lhe as boas noites, pingado de gotículas escondidas sopradas na onda de vento cantado. Curva-se, enfrenta-o, e dirige-se para o café da praça. Lá estão os amigos. Uma conversa, saber das últimas da cidade e da política, um desentorpecer mental, de ideias libertas em palavras, é isto que lhe faz suportar o cinzento dos dias, do amarelado do escritório e da pobreza envergonhada da vida.

Alberto, filho de gentes educadas mas de bolsos vazios, desde pequeno que soubera sempre o que era tapar, esconder ,e sorrir ao pouco, poucochinho, ao quase nada. Na escola primária, a bata sempre tapara os calções puídos, a camisa já passajada, a camisola de cores diferentes, acrescentos que os ossos iam pedindo, e que as agulhas iam tecendo esquecidas da cor primeira. Depois fora crescendo, muito em altura e quase nada em largura. A mesa também não o permitiu. Tudo muito frugal tocando quase sempre a raia da fome. Não o era, porque havia pão e sopa. Mas pouco mais. Também não se falava nisso porque afinal tinham casa, alguma roupa, uns ordenadinhos e eram educados. A dita cuja, era só para quem pedia, era rude de espírito e roto de bolso. Os outros eram remediados, como se o saber enchesse as barrigas, cobrisse os corpos e alimentasse os seres. E foi neste credo perdido de sabores de substância que ele se foi tornando um quase "vermelho" como chamavam ao grupo de" rapazes " a que pertencia. Tinha orgulho em sê-lo, a sua razão animal dizia-lhe que a vida que sempre tivera era medíocre, o seu intelecto segredava-lhe ideias de partilha ,e melhores dias para todos os homens. Cinco rostos ébrios de ideais tingem-se de cor, e de suor, á medida que se empolgam na discussão de "O Capital". As vozes de início sussurradas ,elevam-se desprotegidas , e espalham-se por entre as paredes tal como os rolos de fumo que se elevam no ar, esbatendo-se ,finalmente no vazio do tecto. As mãos gesticulam breves, desenhando arabescos no espaço como se tentassem exprimir para além das palavras, os sons da luta, em ímpetos de movimento. Sobre a mesa pouco mais de que duas chávenas vazias de café, copos de água, e um cinzeiro atulhado de beatas. A cinza cujo cheiro se avilta nas narinas parece ser o pó das quimeras esmagadas entre a realidade do hoje e o hipotético do amanhã. Alberto, de soslaio, olha o relógio e maquinalmente ergue a gola, afasta a cadeira e levanta-se. Despede-se, com um até logo ,e sai para a praça. Cruza-a com os passos largos e elásticos. Sente pequenas gotas de água no rosto que lhe lavam os pensamentos ainda incandescentes,qual brasas a crepitar, que lhe enchem os sentidos de seiva quente. Chega a casa ,dá um beijo solto na mulher, que lhe diz:

- Vens tarde, a sopa já está fria.

- Entretive-me na conversa no café. Vá lá, anda, aquece-a outra vez, que vou sair.

-Sempre o mesmo. E eu fico aqui, sozinha? Também sou gente, sabes?

-Era o que faltava ir para a reunião com a mulher atrás. Só tu tens destas manias!

-Mas…

Maria Luísa cala-se. Leva a colher de sopa á boca e sorve-a lentamente. Olha ao seu redor. A casa de jantar é simples mas aconchegada. Na mesa uma toalha alva bordada por ela, os pratos e os talheres dispostos a preceito, os copos brilhantes, os guardanapos à esquerda, o cesto do pão, a terrina da sopa que já fumega de novo, uma pequena fruteira com algumas maçãs reinetas que perfumam a mesa e o jarro do vinho. É mais o atavio do que o conduto, mas é assim a vida. Há que ter preceitos mesmo no pouco. Sorvida a sopa, Alberto descasca a sua maçã e é entre as cascas e os quartos que se dispõe a conversar um pouco. Relata-lhe sumariamente e sem grandes adjectivos as últimas novidades da política, os convites "a férias" de uns tantos, o desaparecimento de outros e tece uma série de impropérios sobre o governo e seus pares. O costume de sempre.

Ei-lo que já está de pé. Desta vez recorre a uma velha gabardine bege ,já meio desbotada, diga-se da chuva, ou talvez dos tempos. Veste-a pensando para com os seus botões. "Bem preciso de uma nova, mas não dá, terá que esperar., como …. Sempre"

-Até logo, não esperas por mim, deita-te, hoje temos reunião.

Áspero e contido, porque não sabe exprimir ternura. O sentimento dedilha-o nas cordas da verborreia política. Não sabe, não quer, não deseja qualquer intimidade com o seu sentir. Era expor demais o seu eu, era derrubar a parede da sua força argamassada no vazio da ternura. Fora despida a sua infância de carinhos e bens. Criara-se no silêncio dos gestos. Hoje, explodia na palavra, nas ideias, nas injustiças, qual fogo contido, porém gelava no contacto humano. Era um solitário o nosso Alberto .Penetra na noite, desloca-se ao sabor dos passos na rapidez das pernas. Os pensamentos fogem-lhe de velozes. Já sabe o que lhe cabe esta noite. Terá que distribuir a "encomenda ". É a sua vez. Já é madrugada quando retorna a casa. Vem exausto de ansiedade. Espera não ter sido visto, é sempre uma interrogação. Amanhã terá que estar no escritório, calmo e sereno, como se o mundo lhe passasse ao lado e não dentro dele. Deita-se e adormece.

E o dia seguinte nasce na sua rotina. De novo à sua secretária, de caneta em punho preenche as colunas. O rosto está impassível, a cadência apossou-se, o espírito voou para fora da sala cinzenta onde o sol se despede cada manhã na esquina da janela. Alberto suspira, a pequenez, agonia-o, a hipocrisia sorridente do faz de conta também. Nada está bem, mas todos se vergam. Os que estão em cima deixam as barrigas engordar, os do meio dobram-se na imaginação de também engordarem, e muitas vezes conseguem-no, e os pequenos… bem esses ou se calam e ficam mais pequenos ou lutam conforme as armas que possuem. Lutam com as palavras.

E foi assim que Alberto foi parar ao Aljube. Depois dali partiu para as colónias, na busca de vida melhor. Por lá ficou muitos anos. Tornou-se uma referência e a família também. Soube criar respeito a par de riqueza. Nunca voltou à sua terra natal, por revolta e asco. Amou excessivamente esse pedaço tropical ao qual votou todas as suas forças e deu-lhe as raízes que criou. Mas um dia…Um dia de Primavera, o tal dia tanto anos antes sonhado, chegou. O seu eco foi forte, muito. Fez suspirar e antever mil promessas. Alberto festejou, muito mesmo, sobretudo dentro de si.

Os tempos de mudança nasceram da premência do momento ,mais do que na verdade da realidade. Alberto regressado, tem que fazer face á vida, não é fácil e a idade é outra. Os filhos cresceram. Tem que provir o pão-nosso de cada dia ,e mais ,o amanhã. Uma família de seis. Os mais velhos têm que deitar a mão ao trabalho e parar os estudos., uma revolta para quem não sabia nada de sacrifícios e de pouco ter. Uma lição de vida amarga em anos já de flor-fruto. São mais dez anos de e mais luta. Mas no fim, sente-se glorioso. Conseguira vencer, conseguira mudar o carimbo de remediado que o perseguira desde o primeiro vagido, e subir o degrau de "desafogado" a hierarquia social recebera-o na sua enorme barriga de preconceitos de Teres e Haveres

Hoje sentado no seu canto preferido lê o "pasquim"nacional. Como mudaram os tempos. As vidas são mais lisas, mais coloridas, perdeu-se o cinzento de outrora se bem que, ele ande por aí … qual pombo gordo e anafado à procura de outros mas brancos e incautos…

10 outubro, 2007





Ó beleza! Onde está tu
a verdade?

(Shakespeare - Tróilo e Cressida)


.
.

Mikhail Baryshnikov Marianna Tcherkassky Les Sylphides Waltz

Pelo sonho é que vamos


Pelo sonho é que vamos,
comovidos e mudos.
Chegamos? Não chegamos?
Haja ou não haja frutos,
pelo sonho é que vamos.
Basta a fé no que temos.
Basta a esperança naquilo
que talvez não teremos.
Basta que a alma demos,
com a mesma alegria,
ao que desconhecemos
e ao que é do dia a dia.
Chegamos? Não chegamos?
- Partimos. Vamos. Somos.

(Sebastião da Gama)


07 outubro, 2007


Fui agraciada com o PRÉMIO VISITANTE pelo blogue amigo: CValente a quem agradeço sinceramente.
Embora não tenha por hábito fazer escolhas, e apenas porque me foi solicitado, de forma a não quebrar a cadeia, aqui vão os meus escolhidos. No entanto, no meio ficam todos os outros que me lembro, e considero também amigos.


Aqui vos deixo os meus blogues premiados:
http:// un-dress .blogspot.com/
http://cantochão.blogspot.com/
http://abonecadeporcelana.blogspot.com/
http://velhariasetraquitanas2.blogspot.com/
http://avano2006.blogspot.com/
http://magnoliaschuva.blogspot.com/
htntp://encadernador-borboletas.blogspot.com/
http://vitorespadinha.blogspot.com/
http://rituinha.blogspot.com/
http://vidadevidro.blogspot.com
http://pensamentossgps.blogspot.com/
http://casademaio.blogspot.com/
http://fragmentosdanoitecomflores.blogspot.com/
http://selosdifusos.blogspot.com/
http://voandoai.blogspot.com/
http://mararavel.blogspot.com/
http://shelyak.blogspot.com/
http://www.letrasdebabel.blogspot.com/
http://novosvoos.blogspot.com/
http://www.aguarelast.blogspot.com
http://velasardemsempreateaofim.blogspot.com/

Cada um dos contemplados deverá continuar a corrente copiando a imagem e escolhendo os comentadores que pretende ver distinguidos.

04 outubro, 2007


Uma vida…

Senta-se sob a velha oliveira no remanso do seu quintal. Sopra da montanha a aragem fluida das manhãs de ouro e vinho. É Outono, a sua estação. Sente os ossos picarem sob a camisa mas a paisagem come-lhe a dor. A sua terra é o seu mundo. Dura, rude, bravia mas de promessas rubras entre folhedos da cor do sonho. As memórias cospem-se-lhe nos olhos já gastos. Fora assim a vida, recorda lentamente, vê-se…

Mineiro -menino de bota rota e dedo saído, calça curta de fundilho remendado de uma só alça, camisa desbotada de manga já curta, camisola enrolada e larga no corpo miúdo onde espreitam redondos de fio já ido as pupilas tristes de outro branco meio sujo, boné cinzento onde os quadrados de um dia são linhas partidas de hoje, corre saltitando nas pedras do caminho encaracolado de vinhedos despidos. Vai zurzindo em cada salto as agruras do tempo de ontem e mais as do amanhã porque a de hoje, ele, malha-as na sua labuta de mineiro-menino…

Seis horas de um dia ainda por nascer. O sol não despregou ainda as pálpebras no céu de um azul meio desbotado pelo alvor que chega lento. O ar é gélido, sopra frio e cortante dos montes em concha. Lá pelos altos uiva como se fora loba ciada, e aqui em baixo, como gente esfaimada. Os cepos de vinhas não bolem aconchegados à terra, apenas o pó de xisto voa encosta abaixo no rolo de névoas pingadas. Lá pelos baixos, na planura das Gatas, onde a urze e o tojo amaciam as pedras, e o granito se senta nos caminhos vestido de cinzento triste e duro, para esquecer a solidão do mundo, a terra abre a boca em túneis de volfrâmio .É ali que, Agostinho de doze anos frescos e vivos ,faz pela vida. É magro quase seco, cabeça de pente zero, pernas ágeis, olhos pretos vivos, sorriso de luz nuns lábios cheios. As orelhas são pequenas mas em alerta constante, captam os sons dos pássaros, do rio, das folhas, dos bichos companheiros de carreiro. As mãos são fortes, de dedos articulados onde as unhas partidas e sujas lhe revelam a labuta amarga de cada dia. Ainda há pouco deixara os bancos de escola. Gostava do ar morno, da ardósia, do quadro negro borrifado de letras a giz, dos lápis aguçados, de escrever e ler, nem tanto das contas, mas mais ainda, gostava do professor, e das brincadeiras nas traseiras, e da fatia de broa que trocava ou recebia nos dias de aperto. Gostava de lá.

Agostinho era o único macho no meio de seis fêmeas. Um disparate. Tinha dureza dobrada. O pai, homem pequeno de tudo menos na garganta seca de vinho, a mãe ,figura azeda desde que botara cá para fora o primeiro vagido até aos dias de hoje, mourejava-o de trabalho ,e às irmãs essas coitadas, crivava-as de lides sem lhes dar um sorriso, um afago. Agostinho recorda. Não se lembra desses trejeitos. Cresceu no amor do trabalho, no esforço da labuta, na raiva do não ter, no ódio da desigualdade. Trabalhou nas Gatas por tuta e meia, trouxe muito vagão para a superfície, carregou muito balde. Depois, depois partiu. E partiu para longe e foi marçano. Conheceu o mundo da cidade. Plasmou-se a ela. Passou fome, carregou a cama e a maleta, fez-se finório e ajeitou-se como operário. Foi um mundo, o mundo das ideias que lhe varreu os sentidos. Aprendeu que não estava só, que o mundo era o lugar onde se lutava, e onde não se cuspia, mas se escrevia. Palavras fortes e de igualdade, palavras de união. Palavras que sentia no peito e lhe erguiam a mãos. Os colegas e amigos passaram a ser os seus camaradas de sonhos e ideais unidos na revolta da pobreza, e no desejo de um amanhã de certeza. O segredo, o compartilhar, o unir, passaram a ser parte de si. Na luta pelo pão, pela justiça, pela liberdade, Agostinho achou-se a jeito. A sua natureza sofrida fez eco de tudo o que apreendia.

Já jovem, bem-parecido e esbelto, de falas ricas e fluentes faz o rente às camaradas ,mas não se envolve. Alto lá, é magano suficiente, sabe bem o que quer, sabe que a luta vai ser dura, e no fim, logo se verá, o que lhe caberá. Não tem tempo para lamechices. O estudo, as reuniões, o trabalho forram-lhe o tempo. É um homem novo, desenvolto e curioso, poupado e equilibrado. Um só viciozito, o cigarrito, e o chapéu mais a gabardine que compõe-lhe a imagem ao domingo. Durante a semana é o fato-macaco azul, as nódoas de óleo, as mãos de unhas negras como se ainda fora menino nas Gatas. O seu volfrâmio mudou, agora são as máquinas que ribombam, chiam e assobiam. Um mundo de sons que lhe martelam os ouvidos como se fora melodia fadada. Agostinho-operário, de alma quente e cabeça coalhada de liberdade ri forte e dobrado do mundo que o acolhe. Sente-se dono de si, e dos outros, da vida e do futuro. Julga que já conquistou o seu lugar ao sol. Pobre menino-mineiro-operário!

-Ó Inácio dá aqui uma mão. Esta gaita não engrena, filha dum…

-‘Pera aí,pá. Não posso, mas já i vou…o chefe quer isto pra daqui a uns minutos.

-Ora, que espere., a gente tamém não pode fazer mais. Vá lá explorar pró raio c’u parta.

-É ‘Gostinho, fala baixo… cuidado, que ele anda de olho em ti… o Pereira…

-Que se lixe!

Naquela mesma tarde foi despedido. Seca e sem mais. Assim de frio. O estômago deu-lhe um salto que quase lhe veio à boca. Agostinho sentou-se na borda do divã no quartito nu que dividia com o Inácio e pensou, pensou., fumou e fumou …e … decidiu-se. Havia tempos que lá no fundo da cabeça lhe batia a ideia de ir para a França. Já tinha um ofício e depois nas reuniões diziam-lhe que ele podia ajudar os camaradas lá fora, que tinha jeito, que podia ser líder. Aceitou e mergulhou. Passou a salto. A raia era de gentes caladas mas guichas. Fala mansa pela frente, mas nas costas, a Guarda era pantominada, e no embuste ,os camaradas davam o salto para o outro lado. Ainda se lembra dos rostos. Não eram macios, tinham o ar do tojo que cobria campos de liberdade.

Lá chegara a outras terras e, rapidamente os contactos tinham-no levado até Montmartre à rue de l' Espoir, e por aí ficou durante um par de anitos. Trabalhou de limpeza, de varredor, e finalmente como operário. Lado a lado embrenhou-se nos ideais que conhecera. Havia camaradas, companheiros e amigos. Hoje, figuras de proa do seu país, esquecidos já do móbil da sua luta. Sentam-se tal como ele, não sob velhas oliveiras, mas em suaves e cómodas poltronas. São a elite que renegavam palavrosamente. O homem é mesmo bicho inconstante sem tino. Assobiem-lhe meia dúzia de promessas, de bem-estar, e ei-lo que esquece o passado, promessas, ideais. Ouve amiúde: -Ó amigo, os tempos eram outros, éramos jovens. A vida é assim! Como se fora vento passado em sopro.

Veio Abril. Tanto recordar, tanto frémito, clamor e arrepios. Gritou, chorou, rodopiou e sentiu-se livre. Entre camaradas houve promessas, gritos cavados nas entranhas de luta. Foi um sonho, liberdade, esperança e alegria, muita, tanta que não se recorda mais de a ter sentido igual. Regressou. Era o seu país, o seu mundo. Ficou na cidade, mas ajudou nas aldeias. Foi revolucionário. Não o fora sempre? E depois os tempos eram ágeis de mudanças. Muitas ,com e sem sentido. Muitas foram pétalas abertas sorvendo a seiva da justiça, outras, foram picos em cardos de monte. Nem tudo pode ser perfeito. Depois é que veio a injustiça. Nesse outro tempo, o tempo que já não era dele, afastou-se. No peito cabia-lhe a alma de homem novo, e não, deste outro que criavam em ondas de poder subido ou descido como se tudo não fora mais do que um carrossel de feira. Desligou-se e foi à sua vida. Casou, na aldeia que o vira nascer e com moça de lá, uma tal Adelaide filha da doce Júlia Papas. Vieram os filhos que educou e instruiu. A vida continuou no seu curso ora áspero ora leitoso. Os anos deslizaram na carne e no espírito criando-lhe sulcos de sabedoria e hiatos de memória. Por vezes já se confundia, mas logo se recompunha. Não reconhecia nos tempos a trova cantada de um dia, de uma vida, apenas as vozes quase sussurradas das gentes que subiam e desciam o monte, como ele fizera aquando menino-mineiro. Agora não dançavam as vozes em gorjeios nem tremiam em soluços pois era tudo mais fácil mas também mais breve, como que aflorado. Até parecia que os cachos dos vinhedos se tinham tornado maiores, mais lindos, mais dourados, ofereciam beleza aos olhos mas quando os trincava, eles, tinham perdido a doçura da ilusão.

-Agostinho, ó homem vem para dentro que está frio. Lá estás a sonhar!

-Já vai, já vai… Um homem nem pode estar com os seus pensamentos … ora.

Como se a vida fora um sonho de quimeras ou de uvas doces… como dizia o seu Torga que ele ainda tivera a alegria de conhecer. Recorda sempre a frase que já não sabe se leu ou ouviu mas que cada manhã repete na boca vazia de ilusão ” “O que é bonito neste mundo, e anima, é ver que na vindima de cada sonho fica a cepa a sonhar outra aventura. E que a doçura que não se prova se transfigura noutra doçura muito mais pura e muito mais nova “

Suspira, ergue-se e murmura:

-Oxalá que as cepas comecem a abrolhar bem cedo, que bem precisamos…!

E o ar ligeiro rodopia por entre os vinhedos fartos varrendo-lhe o pó dos tempos.

28 setembro, 2007

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A M É L I A

Amélia é figura e pessoa de artifícios. Brinca com os dedos esguios de unhas vivas no sussurrar das palavras escolhidas. A boca cheia, húmida e gulosa espraia-se num sorriso de dentes alvos. O tom da pele é mate condizente com o negrume da cabeleira longa e tratada Figura de ondulados requebrados e lisuras quentes, ela deixa no trejeito balanceado da anca, o adivinhar de promessas quentes e suadas. Passa lenta e bamboleada. Sobeja-lhe carne na tira de pano, as nádegas duras não estremecem no meneio. Deixa atrás de si o cheiro de fêmea em mil promessas sonhadas. Pé aqui, passo acolá ,e ei-la em frente do carro. Deita um olhar enviesado para trás e sorri. Sabe que os olhares a seguiram. Devagar, devagarinho, baixa o tronco, as pernas, mantém-nas hirtas ,realçando-as. Os seios num semi decúbito espreitam no decote redondo. São frutos maduros de carne acetinada que estremecem em cada suspiro de encanto.

Amélia de proficiente geóloga, no dia-a-dia torna-se em gloriosa acompanhante, ao fim-de-semana. Duas etapas que lhe preenchem as semanas, e lhe vão forrando a carteira bem como os hábitos de vida. Tudo começara há já tanto tempo, parecia-lhe.

Devia andar pelos seus dezassete anos e já era um traço como a chamavam. Tudo nela vibrava desde o cabelo ondulante aos pés esguios e morenos. O corpo, o seu cartão-de-visita, que a mãe queria tapado gritava-lhe de ânsia no côncavo dos dias. Tudo começara de uma forma simples e linear. Um convite para uma festa, um convite para um brinde, um semi-cerrar de olhar, uma mão quente na nádega morna descaindo ligeira para a púbis e…. Todo o resto girou em volta. Depois nem sequer houve lágrimas, antes o desejo incontrolável de mais e mais. Nunca tivera dons especiais mas naquela arte tudo lhe vinha em jeito, era só colocar o desejo do corpo nas mãos e nos lábios, roçar e ondular, envolver, e sentir, sentir tudo. Tornara-se verdadeira artista do amor, sabia pintá-lo nas pregas do desejo em tons de paixão. Era procurada, invejada e adorada

O seu jeito não colidira nem impedira que o curso fosse iniciado e concluído. Deste ao emprego e á carreira foi um salto. A mente e a carne numa dicotomia de géneros. A sua arte subsidiou-lhe o curso, pagou-lhe a integração em meios que nunca sonhara, e fez dela uma referência de bem vestir. Longe do olhar inquisitivo materno e da pequenez do meio que afogava, Amélia lançou-se na profissão mais velha do mundo, mas cheia de classe. A sedução passou a ser mais do que nunca a arte, por excelência. Depois veio o saber estar, pisar, falar, sorrir, comer. Tudo nela é perfeito. Hoje entra no carro com o triunfo da vitória na boca húmida. Aqui é uma desconhecida, no seu meio, uma senhora. Todo o fim-de-semana, ela, Amélia, apanha o avião, o comboio ou simplesmente senta-se ao volante do seu carro percorre milhares de quilómetros, aloja-se em belíssimos hotéis, pousadas, mansões e vive as vidas de sonho que um dia imaginou. Os companheiros, breves condutores de momentos e molas reais dos seus caprichos, sejam eles carnais ou materiais, não contam na sua jogada de vida. São meros epitáfios. Acompanha-os a festas, recepções. Sorri, passeia a sua beleza e guarda a sua inteligência. Ri sobre um chabblis ou sorve delicadamente um cointreau. Mordisca graciosamente um aperitivo. Sussurra amiúde ao ouvido do seu par que invariavelmente assente e lhe sorri do fundo dos olhos. Quando o tempo se arrasta em conversas demasiado pesadas, tem a graça de torcer um salto, entornar ligeiramente o ouro de algum balão ou simplesmente deixar cair algo. Aí é voluptuosa no baixar e no erguer. Rapidamente o silêncio se impõe, e lesta a acompanhante sorri, domina o braço, o olhar, e a vontade do seu par. Depois é levá-lo sendo conduzida para o lugar dos quereres. Aí, qual rainha domina o seu súbdito. A máscara deixa de ser gentil para se tornar ávida e gulosa, feita natureza em labareda.

Um destes dias, numa daquelas vernissages tão em voga e tão decrépitas em si, enquanto acompanhava uma digníssima figura da nossa praça, da arte da escrita, e passeava o seu olhar em redor na tentativa de minorar o aborrecimento, premissa da função, reparou naquela sombra que descrevia em si força, e uma certo ar blasé. Rapidamente, como predadora que é, sentiu a necessidade de se apoderar dela, e pé ante pé, de sorriso e olhar doce, tanto a olhou que, um belo quarentão maduro lhe devolveu o sorriso num olhar bem azul. Com segurança de quem conhece o género, aproximou-se, cumprimentou, trocou as trivialidades habituais e, estabeleceu de imediato a empatia necessária. Aquele fim-de-semana foi excessivo em tempo. O escritor adulado, de sorriso aberto era afinal, um ser quase abjecto, tratando-a como se fora algo descartável. Tivera que cumprir o contracto e nada mais. No dia seguinte já liberta da névoa pesada da noite, e tendo sempre no fundo da cabeça o sorriso azul tratou de utilizar todos os artifícios e artefactos ao seu alcance para o localizar. O nome do seu dono era Fernando. Fernando Cerveira e pronto, telefonou. O encontro foi marcado algures, num restaurantezinho simples e saboroso. O que comeu, bebeu ou falou não recorda, apenas uma sensação de calma e tranquilidade, um compartilhar que não sentira nunca. Não precisou de se utilizar Conversaram sobre tudo e nada, acharam pontos em comum, riram dos nadas e falaram dos muitos. Os encontros sucederam-se durante a semana. Lenitivos da sua vida. Era feliz. Não tinha, pela primeira vez, vontade de partir em aventura. Mas o seu amigo, estava ocupadíssimo ao fim de semana.

-Amélia, os fins-de-semana são sagrados para mim. Não nos podemos encontrar. Estou ocupadíssimo.

-A família talvez? pergunta Amélia

-Ah, ah, ah, minha querida, não de modo nenhum. O eterno feminino. Não apenas a minha profissão…

Aceitou, havia os outros dias da semana, e eles eram tão preenchidos pelos dois. Fernando começara por subir até sua casa, depois a jantar, conversar, e finalmente a amarem-se.

Tudo acontecera naturalmente no leito do seu quarto. Entregavam-se calmamente, sorriam no jogo leve de sedução, respiravam em uníssono na entrega e riam felizes na consumação. Era a descoberta. Diferente, uma doçura viva e não uma labareda atiçada em cavacos de desejo. Seriamente começou a descuidar os seus fins-de-semana, a entreter-se com coisas diferentes da sua pessoa, a prestar atenção às pequenas coisas em seu redor. O mundo era mais próximo.

É domingo. Está em casa e abre a janela, respira o ar que a brisa do mar espalha Enche os pulmões e pensa no que vai fazer.

-É isso, diz para os seus botões, vou dar um passeio pelo velho Porto. Uma visitinha cultural. Já faz tempo.

Veste-se ligeira de forma solta mas coquete. Desce e entra no carro. Conduz alegre cantarolando livremente. Brinca-lhe nos lábios o sorriso da vida e nos gestos o calor do encantamento.

Já no adro da Sé percorre-o lentamente, e olhando em redor de pálpebras semi-cerradas abrange as colinas debruçadas no rio ziguezagueante que se perde na boca do mar. As cores alargam-se nas margens crepitando de vidas. É a sua cidade. É bela, velha e sábia.

Dá meia volta e vê a velha Sé. Imutável no tempo, sólida na amargura e doce no amparo. Hesita. Não é lá muito de igrejas…é só uma visita. Entra. A penumbra varre-lhe o corpo e aflora-lhe o espírito. Está quase vazia. Percorre a ala lateral e lentamente ajoelha-se. Não sabe porque o faz. Ergue o olhar e fixa-o na imagem de Cristo crucificado Entabula um solilóquio que a recolhe profundamente. De tão absorta não ouve o os passos, nem o rangido do banco. Sente a mão no ombro…a voz pressente-a no seu interior. Ergue a cabeça e olha sem ver. Uma cegueira não de sol mas de negação. Olha uma vez e outra… e outra. A seu lado uma sotaina, um colarinho branco e um olhar azul, dizem-lhe que a igreja vai ser encerrada.

-Tu?! Tu?!

-Oh, Amélia!

Salta e corre para o exterior. Atrás de si vem a batina… a batina!

-Oh meu Deus! És mesmo padre? És padre?

-Sim.

- Como…pudeste…?

-Pude, fiz, e sou aquilo que vês. O meu voo começa e acaba aqui. O corpo leva-me mas o espírito traz-me. Perdoa-me, se puderes.

-É só…? Nada mais?

-Sim!

Amélia baixa-se lentamente como se fora cair. Mas apenas se acocora. Abana vivamente a cabeça, os cabelos espalham-se finos e revoltos no rosto. Tapam-lhe as narinas quase impedindo-a de respirar O olhar é negro, dorido, partido e sofrido. Desapareceu o brilho e há a luz do ódio. Os punhos cerrados golpeiam o muro…Não grita, porque o som desapareceu perdido no peito latejante.

Já de pé corre para o carro. Conduz rápida e arfante. Não chora, não soluça, não treme. O seu voo começara, as asas estavam abertas e ela planava livre, livre… no azul do seu espírito…