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Alguém que ama a vida e odeia as injustiças
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29 junho, 2008

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Chariots of Fire - Vangelis.

. Urze e Giesta

(…) VIII

Sente um aperto, como se fora um trago de saliva atravessada. Respira fundo. Daqui a pouco porá os pais minimamente ao corrente. Fá-lo sobretudo por si. Tem que se confrontar a si mesmo. Não é fácil. Não é fácil despir o casaco de uma vida, e ficar-se em mangas de camisa ignorando se a chuva cairá. Nada é fácil neste momento de opção, a ferida que abriu na sua carne tem que ser cauterizada ainda que lhe arda muito. Não sabe bem, a razão, deste golpe que de certo modo, se auto-inflige, porém a sua consciência ordena-lhe que mude, que avance. Nas páginas do seu livro de vida, chegou aquele momento, em que o enredo se deslaçou, perdeu o ritmo, e tornou-se enfadonho. No palco, o acto esvaiu-se, o actor recitou-o em ladainha sincopada e átona de paixão. Porém, o frémito renasceu algures no seu interior, arrebata-o para um outro acto, numa outra ribalta, perante um outro público. Para trás ficou o delinear de situações, o colocar hipóteses, o amassar equívocos, o moldar desejos. Cansou-se. Não, não foi bem isso. Tem a secreta noção da sua falha de objectividade, do seu deixa-que-deixa cómodo e encantador deslizar por entre a vida. Fora assim que sempre se sentira. Fora assim que o conheciam. Encantador. Um tipo que não obstaculizava nem pessoas nem coisas. Fora o seu encanto lasso, algo indolente que o conduzira àquela página rasurada de letras iguais quer no tamanho quer na forma, onde os pontos tinham-se evaporado, as vírgulas descansado e outras exclamações viajado. Monocórdica e insalubre. Letras de uma caligrafia assaz recortada e elegante, arrumada e quase sensaborona de perfeita. A sua caligrafia de vida era insonsa. Era isso. A sua vida era insonsa, monótona, podia chamar-lhe átona também. Até há bem pouco parecera-lhe prosaica hoje, no entanto, causava-lhe um bocejo, daqueles saídos da alma entediada. No dobrar da escolha, queria contar o porquê da sua partida. Não almejava compreensão mas apenas paz de dever observado. Era um daqueles capítulos que a educação o obrigava a cumprir. Como fazer compreender a alguém que a vida deixou de ter encanto, aquela mesma vida que eles sempre tinham sonhado e que ele conseguira, e agora chegar e dizer, estou farto do que tenho, quero outra coisa que nem sei bem o que é. Era incompreensível para a geração dos pais. A existência não morava na essência antes no seu acidente. Era quase como fazer entender a uma criança que o amanhã renasce do ontem. A sua luta, mais do que as palavras que lhe vestem os pensamentos, é um duelo nas suas entranhas. Não consegue verbalizar os sentimentos que o avassalam, que o magoam, que o deixam vergado. Pedro sabe que o caminho é tão obscuro como as manhãs acamadas de neblina. Pensa nos pais. Deslizam pela idade na rapidez do fim. Parecem bem mas vão decaindo. Sabe que a felicidade que almeja, ou talvez sonhe nem sempre morou por ali. Relembra os dias magoados de silêncios e avaros de alegria. Houve, outros, também é verdade, que entornaram de sentir, todavia não quer que os seus passos pisem a mesma calçada de vida, aquele desassossego que o traz inquieto e lhe serve de sonho aos sentimentos cansados.

-Olá, pai. Como vai? E inclina-se para o beijar.

-Pedro, até que enfim. Estávamos à tua espera já vai para uma hora. Ora a minha saúde? Vai indo uns dias melhores outros pior. Cá se vai andando.

-A mãe? Onde está?

-Estávamos no jardim. Lá ficou. Vai lá ter. Já sabes como é a tua mãe, já estava preocupada.

-Apanhei muito trânsito. Já se esqueceu, como é? Isto de andar de carro cada vez está pior. Esta cidade está caótica, digo-lhe isto vai de mal a pior.

- Pois, pois, mas vai dizer isso à tua mãe.

E lentamente ao sabor do claudicar do pai, Pedro desliza também pelo corredor. As paredes trazem-lhe sempre as memórias do outro eu, aquele que se perdeu algures no tempo quando as velas deixaram de ser cantadas com vozes infantis. A outra voz que brota das paredes e se une ao trotar da infância, a de Afonso, o seu irmão do meio. Depois o choramingar de Margarida, seguido do esganiçar peremptório da sua resmunguice. Os sons desvanecem-se mas as imagens dançam-lhe mesmo na frente dos olhos. Correrias, choros, risos, gritos, brisas de um passado revivido nos degraus da memória. Tempos idos que lhe chegam em ondas de nostalgia. A casa dos pais sempre o tornara ora melancólico ora convulsivo. Uma dicotomia inexplicável que o fizera fugir muitas vezes mas agora. Hoje, não o ía fazer. Enfrentaria. Sabia que ía causar mágoa, espanto e estupefacção. Respira fundo e sorri, maquinalmente. Sorri para aligeirar a pressão dentro de si.

Chegado ao pequeno jardim onde pululam os verdes matizados sob os fios de sol que visitam o recanto, Pedro beija a mãe. No olhar de Maria Luísa existe aquela doçura que embala a tristeza e acorda o sorriso sempre que o olhar poisa num dos seus filhos.

-Olá Mãezinha. Como vai?

-Pedro, finalmente. Estás com um ar cansado. A Isabel e os meninos e estão bem?

-Tudo bem. Manda-lhe, aliás mandam-vos beijinhos.

-Há já tanto tempo que não os vejo. Devem estar crescidos e a Isabel, sempre ocupada na ciranda de sempre, não é?

-Sim Mãezinha. O tempo é sempre de correria. Já sabe.

- Senta-te Pedro. Vamos almoçar. O bacalhau já foi aquecido mas ainda deve estar bom, é o que tu gostas.

-Obrigado Mãezinha. Mas ainda não me disse como vai?

-Vou indo, Pedro. Na minha idade dou graças a Deus. Há quem esteja bem pior. Só tenho a tensão um pouco alta mas quanto ao resto está tudo bem. Mas deixemos a minha saúde, conta-me coisas sobretudo dos pequenos. Tenho tantas saudades deles. E pensar que não vivemos assim tão longe uns dos outros.

-Pois é verdade. Mas enfim. Lourenço está na faculdade, como a mãe sabe, e dá conta do recado. Continua responsável como sempre. É tão sério o meu filho mais velho. Muito metido nele. O Caetano, ora simpático ora rabugento e infeliz. Lá vai palmilhando a calçada. Parece que o mundo lhe pesa no olhar. Desde que frequenta a Academia de Santa Cecília tem mais interesse pela escola. Claro está, que a música é o seu mundo. É um rapaz tão altivo mas tão meigo também. A sensibilidade transpira-lhe em todos os poros. É difícil de lidar este meu filho. Perpassa-nos com o olhar como se buscasse sempre a verdade de tudo. Por vezes torna-se mudo de rude. A piolha…essa, está na fase do telemóvel. São mensagens atrás de mensagens. Fecha-se no quarto e passa horas naquilo. Mais não faz porque a mesada já foi cortada bem como os carregamentos. No colégio lá vai indo, podia ser melhor mas também não se maça muito. …Mas a Teresinha vai ser difícil. Lembra-me um pouco a minha irmã…muito senhora do seu nariz.

-Fico contente por estarem todos bem. Tenho que ir a vossa casa. Qualquer dia damos lá um salto. Mas não disseste nada da Isabel. A tua mulher como está?

-Bem, Mãezinha. A Isabel está sempre bem. Muito trabalho lá no Instituto, sempre ocupada com as suas pesquisas, sempre atrasada para tudo, mas está bem

- Oh, ainda bem.

Maria Luísa sem saber porquê muda o tema da conversa. Pressente com aquele sexto sentido de mãe que algo se passa, mas não tem nem quer saber mais do que lhe é dito. Na voz do seu menino ecoaram laivos de aspereza que ela lhe desconhecia. Um certo cansaço que a fez ficar quase em alerta. Porém rapidamente se descansou dizendo-se que o trabalho devia ser excessivo e que o seu Pedro precisava de férias. Esta altura do ano era sempre terrível. Rápida e solta comenta:

-Não dizes nada sobre o bacalhau. Já não gostas?

-Oh mãezinha está sempre divinal, nem precisa de adjectivos. Mas vá lá…e colocando os dedos da mão direita em arco leva-os aos lábios e dá um sonoro chocho…

-Ah, ah, ah… há tanto tempo que não via nem ouvia este gesto, meu filho. Que saudades eu tinha…

Alberto que se mantivera em silêncio pigarreia e diz:

-A tua Mãe não perdoa…já sabes como é… Fico feliz por estarem todos bem. Tu pareces cansado. Muito trabalho? Novos projectos?

- Sim Pai, um pouco de tudo isso.

O silêncio desceu na mesa por entre o ruído seco dos talheres, e o som cavo dos maxilares. A trivialidade simples do lugar-comum também se senta entre o bacalhau e a sobremesa como que aligeirando o travo forte do café que se seguirá servido em tabuleiro de revelação.

-Que rico almoço Mãezinha. Que bem me soube. Estou mesmo cheio.

-Ainda bem, Pedro. Bem podias vir cá mais vezes e trazer a Isabel mais os pequenos. Dava-nos tanta alegria. Tu sabes como nós gostamos da tua mulher e dos pequenos.

-Eu sei, eu sei. Mas isso é impossível com a vida que temos A Mãe e o Pai já o sabem. Depois eu tenho algo para vos dizer.

- Sim?

O olhar de Maria Luísa e Alberto afere-se como se finalmente a cortina do palco se abrisse. Entreolham-se rápidos e expectantes aguardam pelas palavras do filho.

- Tive uma proposta de trabalho irrecusável e vou aceitá-la. Um projecto de construção de um aeroporto . Vou acompanhar a obra.

-Fazes bem. Ai que bom e isso onde é desta vez?

-No Chile.

-No Chile, Chile, mesmo, ao pé dos pinguins?

-É isso tudo. Mesmo na ponta, quase perto do Antárctico.

-Bem … e por quanto tempo?

-Seis messes a dois anos.

-E a Isabel mais os garotos?

-Pois. A verdade é que eu e a Isabel precisamos de um tempo. Há já algum tempo que a nossa relação está doente. Existe demasiado silêncio entre nós Estamos acomodados. Vamos dar um espaço para podermos respirar cada um a seu modo. Não me olhem assim. Nada acabou, mas também não começou. Estamos numa encruzilhada.

-Oh Pedro! Diz Maria Luísa lacrimejante. -Vocês são um casal tão lindo! Meu Deus o que se passa na nossa família? O que se passa tudo de desmorona. Meu Deus!!.

-Calma, Mãezinha. É só uma trégua… uma pausa para repensarmos. Eu preciso, ela precisa, e os pequenos precisam também.

- Mas afinal o que se passa convosco? Estão zangados, infelizes? Têm três filhos lindos, uma boa casa, as vossas carreiras estão bem. O que querem mais? Não, não vos entendo. E um soluço afoga-lhe as palavras que se desfazem na garganta.

-Mãezinha compreenda, precisamos de espaço, precisamos de nos sentir outra vez.

Alberto que se mantivera mudo e quedo. Fala então.

-Filho! Não sei o que te diga. Compreendo-te quando falas na necessidade de te repensares. Compreendo-te e percebo a tua inquietação, o desassossego que te torna taciturno, a necessidade de escape ,a luta interna de busca. Ancestral, imemorável o predador renasce sempre. Compreendo-te muito bem. Sou teu pai mas também sou homem, e já tive a tua idade. Mas, Pedro, num casamento, lembra-te sempre, que mais importante do que olharem um para o outro é olharem sempre na mesma direcção, e depois como diz a sabedoria popular”a coisa mais importante que um pai pode fazer pelos seus filhos é amar a mãe deles”, lembra-te destas palavras e faz-me o favor de ponderares a tua decisão, está bem filho?

-Já está ponderada, porém terei as suas palavras em conta. E não vamos fazer drama, Mãezinha, peço-lhe. Eu até podia ter ficado calado e deixar as coisas correram.

-Filho nem sabes como me sinto. Logo tu de quem eu tinha tanto orgulho…

-Quer dizer… nada, nada. Pronto. Aqui está o que vos queria dizer e também pedir. Dêem uma mãozinha à Isabel enquanto eu estiver fora pelo menos nestes primeiros seis meses. Vamos serenar e tentar achar o que está perdido, está bem? Posso contar convosco?

-Claro que sim filho - responde-lhe Alberto. -Afinal todos somos pais duas vezes, não será? Vai descansado que nós cá faremos o nosso melhor.

Pedro recolhe finalmente a ansiedade.



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