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21 março, 2009

Confissão



Confissão



Maria desce a ladeira. Na cabeça uma braçada de vimes ainda à pouco apanhados. Pega na ponta esquerda do avental riscado, fino dos tempos, e limpa o aguado dos olhos. Depois passa-o ao de leve pelo rosto vincado. Perto do carrapito, ainda acobreado, os vimes acamam-se. Larga a ponta do velho avental e, roda os ombros na procura do equilíbrio. Lá vai ladeira abaixo. As pernas jogam os passos, mais as canseiras, no ar. O corpo, magro, liso de formas, onde os seios descaídos percebem as maternidades mais os trabalhos de quartilho e muito de século, arrebata o ar à medida que caminha. Maria não sorri. Maria não chora. Maria respira fundo e olha em frente.

Foi ainda ontem que ela e o seu Amílcar se casaram, lá em cima na capelinha da Senhora da Aparecida, onde as vistas se alagam e o sonho se serve. Foi ainda ontem, que pariu a sua Rosália e depois veio o João, e o Paulo, e a Irene, e a Laura, e o Ricardo agora, agora não sabe bem se este virá. Não sabe não. Tantos trabalhos, tantas canseiras.

Está gasta, roída. A chama da vida consome-a. Os dias são de luta. Ora a casa, ora um trabalho de jeira aqui e além. Aquelas bocas entreabertas, os olhos mudos, os corpos secos. O pedir calado de quem tem sempre falta, falta de comida, falta de aconchego, falta de amor.

Falta, falta.

E os dias sempre a correrem. Hoje um jeito aqui, amanhã ali. As barrigas que pedem sempre mais, as pernas que crescem, os corpos que se formam, os pés que saltam. E o maldito dinheiro, sempre curto. E ela? Parou no dia em que se casou. Deixou de contar. Eles não têm culpa, mas ela também não. O seu Amílcar é assim, serve-se e pronto, não quer saber. Bota-se na cama, puxa-a, cobre-a e depois sai satisfeito. A doutora deu-lhe a pílula mas ela não a suportou. Mandou-a pôr não sei o quê. O seu Amílcar disse-lhe logo, que mulher sua não andava por aí, a abrir as pernas, nos consultórios. Teve também vergonha e conformou-se. Depois os filhos eram criaturas de Deus, como dizia a sua mãe, que tivera dez. Um inferno de pernas e caras numa casa de três quartos. Uma broa para doze bocas. A miséria. A fome e o vento que sempre a acompanhou. Antes de se casar sonhava que a sua vida tomaria outro rumo. Mas afinal o seu destino fora quase igual ao da mãe, da tia, da prima, da avó, das mulheres do seu mundo, tudo a papel vegetal, como o traço do bordado.

Maria foi à escola e até andou no ciclo. Até fez o sexto ano. Queria mais, mas a mãe foi peremptória. –“Ó Senhora professora, a rapariga já sabe demais, e ós depois eu preciso dela em casa pra ajudar cu ranchinho. Os homes na gostam de mulheres a saber muita cosa. E a Maria Rosa tem que casar, e ter a vida dela.”

Pronto fora assim. Aos doze anos acabara-se-lhe a meninice. Depressa criou o sonho de casar. Uma espécie de rebuçado para o dia-a-dia sem doçura, que ia trincando. Lá cresceu espigando os ossos. O Amílcar botara-lhe o olho, e ela, não lhe soube dizer, que não. Depois fez as contas, ele estivera emigrado em França, logo devia ter umas economias. A madrinha deu-lhe o vestido, mais um dinheirito. A boda foi coisa simples e pronto lá se casaram.

No inicio, andava, assim meia zonza, de parva. Sentia-se dona do mundo. Uma casa só para ela mais o seu home. Não era grande, mas parecia-lhe um palácio. Três quartos! Era velha, pois era, mas o Amílcar era muito jeitoso, e, pouco a pouco, deu-lhe um ar concertado quase novo. Não tinha adornos, porém ia vivendo. Os dois primeiros filhos vieram. Tudo bem. Até ficou feliz. A sua Rosália e o João.

Houve um dia, aquele de Maio, quando o seu Amílcar teve o acidente. Ficou debaixo do tractor. Foi uma desgraça. Ficou todo partido. Meses de tratamento, meses de angústia. O dinheirito da França, de trabalho foi todo, todo. Ficaram de bolsos e mãos vazias. Ele não pode trabalhar mais. Ficou aleijado. Uma desgraça nunca vem só. Atrás da doença, veio o álcool e o inferno. Depois foi um eito de filhos, de raivas e dores. Agora acabou. Vai botar este fora. Vai, vai!

Amílcar não sabe e nem vai dizer-lhe, nem à mãe. A ninguém. O corpo é seu, as dores são suas. Mais bocas, mais miséria, mais de tudo e de nada. Está farta, gasta, vazia. Isto não é vida. Maria Rosa não é feliz, e os seus pequenos também não. Revê-os nos seus olhares silenciosas, nas bocas fechadas, nos sorrisos tristes, na cor dos rostos, nos suspiros e nos sonhos que espreitam das pupilas paradas. Revê-os quando olham para a vida a saltitar, revê-os desgostando os livros e a escola. Revê-os num amanhã igual ao dela, que não quer.

Amanhã vai ter com a Tia Amélia a que os traz e a leva ao mundo e do mundo. É parteira. Está reformada. Trabalhava no hospital. Agora faz desmanchos, todos sabem mas ninguém diz. Silêncio O pior é o dinheiro que leva. Lá vai ter que o arranjar. Raios partam, só para os fazer é que é de graça. A vida é mesmo uma coisa sem tino.

Maria está deitada na velha cama de ferro. Arde em febre. Sente-se mal, doente. A boca seca, a fronte húmida e as dores que a violam. As entranhas ardem feridas de vazio. O corpo treme de anseio parido e desventrado. As pernas estão tensas, os músculos doem-lhe. Depois aquela náusea que sobe por ela cada vez que suspira. Não vem das entranhas, vem de dentro, do peito magoado, de uma dor por explicar. Só quer fechar os olhos e dormir, dormir. Talvez tudo passe. Talvez. Amanhã é outro dia.

E a noite avança quente e esfrangalhada. Amílcar meio bêbado como já é hábito espanta-se ao vê-la na cama, mas logo se descuida. O pesar foi breve, os vapores já o adormeceram. Os garotos estão deitados, os mais novos. Rosália, a mais velha, tratou do resto. Ela percebeu. Olhou-a bem no fundo, sem palavras, sem movimento, apenas e só aquela mensagem. “Também sou mulher, Mãe”. Sentiu o seu apoio. Deu-lhe força.

Acorda de uma noite de fantasmas, de delírio, de luta, de dor. Olha para o seu lado direito, vê um homem vagamente familiar, um rosto talhado na rudeza, uns cabelos curtos e ásperos, um ar lerdo. Ressona naquele despudor dos últimos vapores do álcool. Pouco a pouco toma conta do seu corpo. Apalpa-o como nunca fizera. E uma vez, e outra Sente-se. Vem-lhe ao nariz o cheiro do homem. Misto de suor, álcool e tacanhez. Espanta-se consigo. Quer levantar-se sair dali, lavar-se, não olhar, não ver.

Sózinha no meio da madrugada, abre a porta da cozinha, desce para o quintal. O frio fá-la estremecer, aperta o xaile, que colocou sobre os ombros, aspira o ar limpo. Volve o olhar para cima. Respira fundo. Cerra os punhos, abre os olhos ao amanhã que vem tingindo os seus sentidos. Sabe que vai ser diferente. Sabe, finalmente que é dona de si. A única. E sorrindo confessa-se:

-Acordei .Sou mulher!


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